SANTOS, Boaventura de Sousa. Introdução. In: _______ Se Deus fosse um ativista dos direitos humanos [livro eletrônico]. 1. ed. São Paulo: Cortez, 2014, p. 11-17.
Introdução
Direitos humanos: uma hegemonia frágil
A hegemonia dos direitos humanos como linguagem de dignidade humana é hoje incontestável. No entanto, esta hegemonia convive com uma realidade perturbadora. A grande maioria da população mundial não é sujeito de direitos humanos. É objeto de discursos de direitos humanos. Deve, pois, começar por perguntar-se se os direitos humanos servem eficazmente à luta dos excluídos, dos explorados e dos discriminados ou se, pelo contrário, a tornam mais difícil. […]
A busca de uma concepção contra-hegemônica dos direitos humanos deve começar por uma hermenêutica de suspeita em relação aos direitos humanos tal como são convencionalmente entendidos e defendidos (…). […] Por que é que o conceito de utopia teve menos êxito que o conceito de direito e de direitos, como linguagem de emancipação social?
Comecemos por reconhecer que os direitos e o direito têm uma genealogia dupla na modernidade ocidental. Por um lado, uma genealogia abissal. Concebo as versões dominantes (…) a partir de um pensamento abissal, (…) que dividiu (…) o mundo entre sociedades metropolitanas e coloniais (Santos, 2009b, p. 31-83). Dividiu-o de tal modo que as realidades e práticas existentes do lado de lá da linha, nas colônias, não podiam pôr em causa a universalidade das teorias e das práticas que vigoravam na metrópole, do lado de cá da linha. E, nesse sentido, eram invisíveis. Ora, enquanto discurso de emancipação, os direitos humanos foram historicamente concebidos para vigorar apenas do lado de cá da linha abissal (…). (…) esta linha abissal, que produz exclusões radicais, longe de ter sido eliminada com o fim do colonialismo (…), continua sob outras formas (neocolonialismo, racismo, xenofobia, permanente estado de exceção na relação com alegados terroristas, trabalhadores imigrantes indocumentados, candidatos a asilo ou mesmo cidadãos comuns vítimas de políticas de austeridade ditadas pelo capital financeiro). O direito internacional e as doutrinas convencionais dos direitos humanos têm sido usados como garantes dessa continuidade.
Mas, por outro lado, o direito e os direitos têm uma genealogia revolucionária do lado de cá da linha. A revolução americana e a revolução francesa foram ambas feitas em nome da lei e do direito. […] Ernest Bloch entende que a superioridade do conceito de direito tem muito a ver com o individualismo burguês, com a sociedade burguesa que estava a surgir nesse momento, e que, tendo ganhado já hegemonia econômica, lutava pela hegemonia política (…). […] É, pois, fácil ser-se levado a pensar que a hegemonia de que hoje gozam os direitos humanos tem raízes muito profundas, e que o caminho entre então e hoje foi (…) linear de consagração dos direitos humanos como princípios reguladores de uma sociedade justa. Esta ideia de um consenso há muito anunciado manifesta-se de várias formas, e cada uma delas assenta numa ilusão. […] Distingo quatro ilusões: a teleologia, o triunfalismo, a descontextualização e o monolitismo.
A ilusão teleológica consiste em ler a história da frente para trás. Partir do consenso que existe hoje sobre os direitos humanos e sobre o bem incondicional que isso significa e ler a história passada como um caminhar linearmente orientado para conduzir a este resultado. […] Esta ilusão impede-nos de ver que o presente, tal como o passado, é contingente, que, em cada momento histórico, diferentes ideias estiveram em competição e que a vitória de uma delas, no caso, os direitos humanos, é um resultado contingente que pode ser explicado a posteriori, mas que não poderia ser deterministicamente previsto. A vitória histórica dos direitos humanos traduziu-se muitas vezes num ato de violenta reconfiguração histórica (…).
A segunda ilusão é o triunfalismo, a ideia de que a vitória dos direitos humanos é um bem humano incondicional. Assume que todas as outras gramáticas de dignidade humana que competiram com a dos direitos humanos eram inerentemente inferiores em termos éticos ou políticos. Esta noção (…) não toma em conta um aspecto decisivo da modernidade ocidental hegemônica, (…) o seu verdadeiro gênio histórico: o ter sempre sabido complementar a força das ideias que servem os seus interesses com a (…) bruta das armas que, estando supostamente ao serviço das ideias, é, na prática, servida por elas. É, pois, necessário avaliar criticamente as razões da superioridade ética e política dos direitos humanos. […] Basta pensar que os movimentos de libertação nacional contra o colonialismo do século XX, tal como os (…) socialista e comunista, não invocaram a gramática dos direitos humanos para justificar as suas causas e as suas lutas. (…) as outras gramáticas e linguagens de emancipação social terem sido derrotadas pelos direitos humanos só poderá ser (…) inerentemente positivo se se mostrar que os direitos humanos têm um mérito, enquanto linguagem de emancipação humana (…). […]
Esta precaução ajuda-nos a enfrentar a terceira ilusão, a descontextualização. É (…) reconhecido que os direitos humanos (…) provêm do Iluminismo (…), da revolução francesa e da (…) americana. O que (…) não é referido é que, desde então até os nossos dias, os direitos humanos foram usados, como discurso e como arma política, em contextos muito distintos e com objetivos contraditórios. No século XVIII (…) eram parte integrante dos processos revolucionários em curso e foram uma das suas linguagens. Mas também foram usados para legitimar práticas que consideramos opressivas se não mesmo contrarrevolucionárias. […] Depois das revoluções de 1848, os direitos humanos deixaram de ser parte do imaginário revolucionário para passarem a ser hostis a qualquer ideia de transformação revolucionária (…). (…) a mesma hipocrisia (dir-se-ia constitutiva) de invocar os direitos humanos para legitimar práticas que podem considerar-se violação dos direitos humanos continuou (…) e é hoje (…) mais evidente do que nunca. Quando, a partir de meados do século XIX, o discurso dos direitos humanos se separou da tradição revolucionária, passou a ser concebido como uma gramática despolitizada de transformação social, uma espécie de antipolítica. Os direitos humanos foram subsumidos no direito do Estado, e o Estado assumiu o monopólio da produção do direito e de administração da justiça. […] Gradualmente, o discurso dominante dos direitos humanos passou a ser o da dignidade humana consonante com as políticas liberais, com o desenvolvimento capitalista e suas diferentes metamorfoses (…) e com o colonialismo igualmente metamorfoseado (…). Temos, pois, de ter em mente que o mesmo discurso de direitos humanos significou coisas muito diferentes em diferentes contextos históricos e tanto legitimou práticas revolucionárias como práticas contrarrevolucionárias. […]
A quarta ilusão é o monolitismo. […] Consiste em negar ou minimizar as tensões e até mesmo as contradições internas das teorias dos direitos humanos. (…) a declaração da revolução francesa dos direitos do homem é ambivalente ao falar de direitos do homem e do cidadão. […] Desde o início, os direitos humanos cultivam a ambiguidade de criar pertença em duas grandes coletividades. Uma é a (…) supostamente mais inclusiva, a humanidade, daí os direitos humanos. A outra é uma coletividade muito mais restrita, a (…) dos cidadãos de um determinado Estado. […] Ao longo dos últimos duzentos anos, os direitos humanos foram sendo incorporados nas constituições e nas práticas jurídico-políticas de muitos países e foram reconceitualizados como direitos de cidadania, diretamente garantidos pelo Estado e aplicados coercitivamente pelos tribunais (…). Mas a verdade é que a efetividade da proteção ampla dos direitos de cidadania foi sempre precária na (…) maioria dos países. (…) a evocação dos direitos humanos ocorreu (…) em situações de erosão ou violação particularmente grave dos direitos de cidadania. Os direitos humanos surgem como o patamar mais baixo de inclusão, um movimento descendente da comunidade mais densa de cidadãos para a comunidade mais diluída da humanidade. Com o neoliberalismo e o seu ataque ao Estado como garante dos direitos, em especial os (…) econômicos e sociais, a comunidade dos cidadãos dilui-se ao ponto de se tornar indistinguível da comunidade humana e dos direitos de cidadania, tão trivializados como direitos humanos. A prioridade concedida por Arendt (1951) aos direitos de cidadania sobre os direitos humanos, antes prenhe de significado, desliza para o vazio normativo. […]
A outra tensão que ilustra a natureza ilusória do monolitismo é a tensão entre direitos individuais e coletivos. A Declaração Universal dos Direitos Humanos (…) reconhece apenas dois sujeitos jurídicos: o indivíduo e o Estado. Os povos são reconhecidos apenas na medida em que se tornam Estados. (…) quando a Declaração foi adotada, existiam muitos povos, nações e comunidades que não tinham Estado. Assim, do ponto de vista das epistemologias do Sul, a Declaração não pode deixar de ser considerada colonialista (Burke, 2010; Terretta, 2012). […] Com o passar do tempo, sexismo, racismo, colonialismo e (…) formas (…) da dominação de classe vieram a ser reconhecidos como dando azo a violações dos direitos humanos. Em meados dos anos de 1960, as lutas anticoloniais tornaram-se parte da agenda das Nações Unidas. (…) tal como era entendida (…), a autodeterminação dizia apenas respeito aos povos sujeitos ao colonialismo europeu. Assim (…) a autodeterminação deixou de fora muitos povos sujeitos à colonização não europeia e colonização interna, sendo os povos indígenas o exemplo mais dramático. […]
Sendo que os direitos coletivos não fazem parte do cânon original dos direitos humanos, a tensão entre direitos individuais e coletivos resulta da luta histórica dos grupos sociais que, sendo excluídos ou discriminados enquanto grupo, não podem ser adequadamente protegidos pelos direitos humanos individuais. As lutas das mulheres, dos povos indígenas, afrodescendentes, vítimas do racismo, gays, lésbicas e minorias religiosas marcam os últimos cinquenta anos de reconhecimento de direitos coletivos, (…) sempre amplamente contestado e em constante risco de reversão. Não existe necessariamente uma contradição entre direitos individuais e coletivos, mais que não seja pelo fato de existirem muitos tipos de direitos coletivos. (…) podemos distinguir dois tipos de direitos coletivos, os primários e os derivados. (…) direitos coletivos derivados quando (…) trabalhadores se auto-organizam em sindicatos e conferem a estes o direito de representá-los nas negociações com os empregadores. (…) direitos coletivos primários quando uma comunidade de indivíduos tem direitos para além dos direitos da sua organização, ou renuncia aos seus direitos individuais a favor dos direitos da comunidade. […] Na sua grande maioria são exercidos individualmente, como quando um policial shik usa o turbante, uma médica islâmica usa o hijab, ou quando um membro de uma casta inferior na Índia, um afrodescendente brasileiro ou indígena se beneficia das ações afirmativas disponíveis nas suas comunidades. Mas existem direitos que só podem ser exercidos coletivamente, como o direito à autodeterminação. Os direitos coletivos existem para eliminar ou minorar a insegurança e a injustiça suportadas pelos indivíduos que são discriminados como vítimas sistemáticas da opressão apenas por serem o que são (…). […] (…) a contradição ou tensão vis-à-vis às concepções mais individualistas de direitos humanos estão sempre presentes.
Ter presentes estas ilusões é crucial para construir uma concepção e uma prática contra-hegemônica de direitos humanos, sobretudo quando elas devem assentar num diálogo com outras concepções de dignidade humana e outras práticas em sua defesa. (…) passo a definir o que considero ser a versão hegemônica ou convencional dos direitos humanos. (…) um entendimento convencional dos direitos humanos como tendo as seguintes características: os direitos são universalmente válidos independentemente do contexto social, político e cultural em que operam e dos diferentes regimes de direitos humanos existentes em diferentes regiões (…); (…) são a única gramática e linguagem de oposição disponível para confrontar as “patologias do poder”; os violadores dos direitos humanos (…) devem ser punidos de acordo com os direitos humanos; questionar os direitos humanos em termos das suas supostas limitações culturais e políticas contribui para perpetuar os males que (…) visam combater; o fenômeno (…) dos duplos critérios na avaliação da observância dos direitos humanos de modo algum compromete a validade universal (…); partem de uma ideia de dignidade humana que (…) assenta numa concepção de natureza humana (…) individual, autossustentada e qualitativamente diferente da natureza não humana; a liberdade religiosa só pode ser assegurada na medida em que a esfera pública esteja livre de religião, a premissa do secularismo; (…) violação dos direitos humanos é definido pelas declarações universais, instituições multilaterais (…) e organizações não governamentais (predominantemente baseadas no Norte Global); as violações (…) podem ser medidas (…) de acordo com indicadores quantitativos; o respeito pelos direitos humanos é muito mais problemático no Sul Global do que no Norte (…).
[…] A questão pode formular-se deste modo: se a humanidade é só uma, por que é que há tantos princípios diferentes sobre a dignidade humana e justiça social, todos pretensamente únicos, e, por vezes, contraditórios entre si? Na raiz (…) está a constatação, (…) cada vez mais inequívoca, de que a compreensão do mundo excede em muito a compreensão ocidental do mundo e, portanto, a compreensão ocidental da universalidade dos direitos humanos.
(…) tal diversidade só deve ser reconhecida na medida em que não contradiga os direitos humanos universais. Postulando a universalidade abstrata da concepção de dignidade humana subjacente aos direitos humanos, esta resposta banaliza a perplexidade inerente à questão. O fato de (…) ser baseada em pressupostos ocidentais é considerado irrelevante, já que o postulado da universalidade faz com que a historicidade dos direitos humanos não interfira com o seu estatuto ontológico. Embora plenamente aceite pelo pensamento político hegemônico, (…) reduz o mundo ao entendimento que o Ocidente tem dele, ignorando ou trivializando (…) experiências culturais e políticas decisivas em países do Sul Global. (…) é o caso dos movimentos de resistência contra a opressão, marginalização e exclusão que têm vindo a emergir nas últimas décadas e cujas bases ideológicas pouco ou nada têm a ver com as referências culturais e políticas ocidentais dominantes (…). (…) não formulam as suas demandas em termos de direitos humanos, (…) pelo contrário, (…) formulam-nas de acordo com princípios que contradizem os princípios dominantes dos direitos humanos. Estes movimentos encontram-se (…) enraizados em identidades históricas e culturais multisseculares (…). (…) três destes movimentos, com significados políticos muito distintos: os movimentos indígenas, (…) na América Latina; os movimentos de camponeses na África e na Ásia; e a insurgência islâmica. (…) comungam do fato de provirem de referências políticas não ocidentais e de se constituírem como resistência ao domínio ocidental.
Ao pensamento convencional dos direitos humanos faltam instrumentos teóricos e analíticos que lhe permitam posicionar-se com alguma credibilidade em relação a estes movimentos, e, pior ainda, não considera prioritário fazê-lo. Tende a aplicar genericamente a mesma receita abstrata dos direitos humanos, esperando (…) que a natureza das ideologias alternativas e universos simbólicos sejam reduzidos a especificidades locais sem nenhum impacto no cânone universal dos direitos humanos.
[Arte: Cashmere (1908) by John Singer Sargent]