Publicado em Ciência Política, Estudos sobre Religião, Estudos Sociológicos, Filosofia, Relações Internacionais, Sociologia

Se Deus fosse um ativista dos direitos humanos [Capítulo 4 – Parte II]

SANTOS, Boaventura de Sousa. Os direitos humanos na zona de contato das teologias políticas. In: _______ Se Deus fosse um ativista dos direitos humanos [livro eletrônico]. 1. ed. São Paulo: Cortez, 2014, p. 41-42.

A turbulência entre raízes e opções

A segunda dimensão da turbulência na zona de contato com impacto nos direitos humanos é a turbulência entre raízes e opções. Esse tipo (…) permeia todas as zonas de contato entre os direitos humanos e as teologias políticas (…). […] Esta turbulência particular levanta uma terceira dimensão da justiça no coração da zona de contato, para além da justiça socioeconômica e da justiça cognitiva: a justiça histórica, pós-colonial.

A construção social da identidade e da mudança na modernidade ocidental é baseada numa equação entre raízes e opções. […] O pensamento de raízes é o pensamento de tudo (…) que é profundo, permanente, singular e único, (…) que dá segurança e consistência; o pensamento das opções é o pensamento de tudo (…) que é variável, efêmero, substituível e indeterminado do ponto de vista das raízes.

As raízes são entidades de grande escala. Como sucede na cartografia, cobrem vastos territórios simbólicos e longas durações históricas, mas não permitem cartografar em detalhe e sem ambiguidades as características do terreno. Ao contrário, as opções são entidades de pequena escala. Cobrem territórios confinados e durações curtas, mas (…) com o detalhe necessário para permitir calcular o risco da escolha entre opções alternativas. Devido a esta diferença de escala, as raízes são únicas, enquanto as escolhas são múltiplas. […] (…) não há a opção de não pensar em termos de raízes e opções.

A eficácia desta equação assenta numa dupla astúcia. Em primeiro (…), a astúcia do equilíbrio entre o passado e o futuro. […] Trata-se de uma astúcia porque (…) tanto o pensamento das raízes como o das opções são pensamentos do futuro. (…) o passado permanece largamente sub-representado. Esta sub-representação não significa esquecimento. (…) pode manifestar-se como “memória excessiva” (…) num exercício de melancolia que, em vez de recuperar o passado, neutraliza o seu potencial de redenção ao evocar o passado em vez de lutar contra as expectativas fracassadas.

A segunda astúcia é a (…) do equilíbrio entre raízes e opções. (…) apresenta-se como simétrica: equilíbrio entre raízes e opções e equilíbrio na distribuição das opções. Efetivamente, não é assim. (…) o predomínio das opções é total. […] O equilíbrio é inatingível. Consoante o momento histórico ou o grupo social, as raízes predominam (…) ou, ao contrário, as opções predominam sobre as raízes. O jogo é sempre das raízes para as opções e das opções para as raízes (…). (…) não existe equilíbrio ou equidade na distribuição social das opções. Pelo contrário, as raízes (…) são (…) constelações de determinações que, ao definir o campo das opções, definem também os grupos sociais que lhes têm acesso e os que delas estão excluídos. […]

A sociedade medieval não é necessariamente uma sociedade estática, mas evolui segundo uma lógica de raízes. Ao contrário, a sociedade moderna vê-se como (…) dinâmica que evolui segundo uma lógica de opções. Prova-o ao conceber como raiz fundadora o contrato social e a vontade geral que o sustenta. O contrato social é a metáfora fundadora de uma opção radical – a de deixar o estado de natureza para formar a sociedade civil –, que se transforma em raiz a partir da qual quase tudo é possível, tudo exceto voltar ao estado de natureza. A contratualização das raízes é irreversível, e este é o limite da reversibilidade das opções. […] Esta autodescrição da modernidade ocidental levou-a a conceber não só a sociedade medieval, mas todas as outras culturas e sociedades como baseadas em raízes e concomitantemente na supremacia do primordialismo, status, identidade, comunidade, etnicidade e nação étnica, omitindo o fato de que, em todas as sociedades, a lógica de raízes opera em articulação com a lógica de opções.

(…) a modernidade ocidental procedeu a uma redistribuição brutal do passado, do presente e do futuro dos povos e das culturas na zona de contato. Reservou para si o futuro e permitiu que coexistissem com ele vários passados, desde que todos convergissem num mesmo futuro, o seu. (…) distribuiu aos povos e às culturas dominados passados neutralizados, sem capacidade de produzir futuros alternativos ao da modernidade ocidental. A descolonização e as independências (…) não significaram a ruptura com esta teoria da história. (…) a zona de contato continuou a ser uma zona colonial, apesar de ter terminado o colonialismo político.

[Arte: The Missionary, 1912 por Emil Nolde]

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Se Deus fosse um ativista dos direitos humanos [INTRODUÇÃO]

SANTOS, Boaventura de Sousa. Introdução. In: _______ Se Deus fosse um ativista dos direitos humanos [livro eletrônico]. 1. ed. São Paulo: Cortez, 2014, p. 11-17.

Introdução

Direitos humanos: uma hegemonia frágil

A hegemonia dos direitos humanos como linguagem de dignidade humana é hoje incontestável. No entanto, esta hegemonia convive com uma realidade perturbadora. A grande maioria da população mundial não é sujeito de direitos humanos. É objeto de discursos de direitos humanos. Deve, pois, começar por perguntar-se se os direitos humanos servem eficazmente à luta dos excluídos, dos explorados e dos discriminados ou se, pelo contrário, a tornam mais difícil. […]

A busca de uma concepção contra-hegemônica dos direitos humanos deve começar por uma hermenêutica de suspeita em relação aos direitos humanos tal como são convencionalmente entendidos e defendidos (…). […] Por que é que o conceito de utopia teve menos êxito que o conceito de direito e de direitos, como linguagem de emancipação social?

Comecemos por reconhecer que os direitos e o direito têm uma genealogia dupla na modernidade ocidental. Por um lado, uma genealogia abissal. Concebo as versões dominantes (…) a partir de um pensamento abissal, (…) que dividiu (…) o mundo entre sociedades metropolitanas e coloniais (Santos, 2009b, p. 31-83). Dividiu-o de tal modo que as realidades e práticas existentes do lado de lá da linha, nas colônias, não podiam pôr em causa a universalidade das teorias e das práticas que vigoravam na metrópole, do lado de cá da linha. E, nesse sentido, eram invisíveis. Ora, enquanto discurso de emancipação, os direitos humanos foram historicamente concebidos para vigorar apenas do lado de cá da linha abissal (…). (…) esta linha abissal, que produz exclusões radicais, longe de ter sido eliminada com o fim do colonialismo (…), continua sob outras formas (neocolonialismo, racismo, xenofobia, permanente estado de exceção na relação com alegados terroristas, trabalhadores imigrantes indocumentados, candidatos a asilo ou mesmo cidadãos comuns vítimas de políticas de austeridade ditadas pelo capital financeiro). O direito internacional e as doutrinas convencionais dos direitos humanos têm sido usados como garantes dessa continuidade.

Mas, por outro lado, o direito e os direitos têm uma genealogia revolucionária do lado de cá da linha. A revolução americana e a revolução francesa foram ambas feitas em nome da lei e do direito. […] Ernest Bloch entende que a superioridade do conceito de direito tem muito a ver com o individualismo burguês, com a sociedade burguesa que estava a surgir nesse momento, e que, tendo ganhado já hegemonia econômica, lutava pela hegemonia política (…). […] É, pois, fácil ser-se levado a pensar que a hegemonia de que hoje gozam os direitos humanos tem raízes muito profundas, e que o caminho entre então e hoje foi (…) linear de consagração dos direitos humanos como princípios reguladores de uma sociedade justa. Esta ideia de um consenso há muito anunciado manifesta-se de várias formas, e cada uma delas assenta numa ilusão. […] Distingo quatro ilusões: a teleologia, o triunfalismo, a descontextualização e o monolitismo.

A ilusão teleológica consiste em ler a história da frente para trás. Partir do consenso que existe hoje sobre os direitos humanos e sobre o bem incondicional que isso significa e ler a história passada como um caminhar linearmente orientado para conduzir a este resultado. […] Esta ilusão impede-nos de ver que o presente, tal como o passado, é contingente, que, em cada momento histórico, diferentes ideias estiveram em competição e que a vitória de uma delas, no caso, os direitos humanos, é um resultado contingente que pode ser explicado a posteriori, mas que não poderia ser deterministicamente previsto. A vitória histórica dos direitos humanos traduziu-se muitas vezes num ato de violenta reconfiguração histórica (…).

A segunda ilusão é o triunfalismo, a ideia de que a vitória dos direitos humanos é um bem humano incondicional. Assume que todas as outras gramáticas de dignidade humana que competiram com a dos direitos humanos eram inerentemente inferiores em termos éticos ou políticos. Esta noção (…) não toma em conta um aspecto decisivo da modernidade ocidental hegemônica, (…) o seu verdadeiro gênio histórico: o ter sempre sabido complementar a força das ideias que servem os seus interesses com a (…) bruta das armas que, estando supostamente ao serviço das ideias, é, na prática, servida por elas. É, pois, necessário avaliar criticamente as razões da superioridade ética e política dos direitos humanos. […] Basta pensar que os movimentos de libertação nacional contra o colonialismo do século XX, tal como os (…) socialista e comunista, não invocaram a gramática dos direitos humanos para justificar as suas causas e as suas lutas. (…) as outras gramáticas e linguagens de emancipação social terem sido derrotadas pelos direitos humanos só poderá ser (…) inerentemente positivo se se mostrar que os direitos humanos têm um mérito, enquanto linguagem de emancipação humana (…). […]

Esta precaução ajuda-nos a enfrentar a terceira ilusão, a descontextualização. É (…) reconhecido que os direitos humanos (…) provêm do Iluminismo (…), da revolução francesa e da (…) americana. O que (…) não é referido é que, desde então até os nossos dias, os direitos humanos foram usados, como discurso e como arma política, em contextos muito distintos e com objetivos contraditórios. No século XVIII (…) eram parte integrante dos processos revolucionários em curso e foram uma das suas linguagens. Mas também foram usados para legitimar práticas que consideramos opressivas se não mesmo contrarrevolucionárias. […] Depois das revoluções de 1848, os direitos humanos deixaram de ser parte do imaginário revolucionário para passarem a ser hostis a qualquer ideia de transformação revolucionária (…). (…) a mesma hipocrisia (dir-se-ia constitutiva) de invocar os direitos humanos para legitimar práticas que podem considerar-se violação dos direitos humanos continuou (…) e é hoje (…) mais evidente do que nunca. Quando, a partir de meados do século XIX, o discurso dos direitos humanos se separou da tradição revolucionária, passou a ser concebido como uma gramática despolitizada de transformação social, uma espécie de antipolítica. Os direitos humanos foram subsumidos no direito do Estado, e o Estado assumiu o monopólio da produção do direito e de administração da justiça. […] Gradualmente, o discurso dominante dos direitos humanos passou a ser o da dignidade humana consonante com as políticas liberais, com o desenvolvimento capitalista e suas diferentes metamorfoses (…) e com o colonialismo igualmente metamorfoseado (…). Temos, pois, de ter em mente que o mesmo discurso de direitos humanos significou coisas muito diferentes em diferentes contextos históricos e tanto legitimou práticas revolucionárias como práticas contrarrevolucionárias. […]

A quarta ilusão é o monolitismo. […] Consiste em negar ou minimizar as tensões e até mesmo as contradições internas das teorias dos direitos humanos. (…) a declaração da revolução francesa dos direitos do homem é ambivalente ao falar de direitos do homem e do cidadão. […] Desde o início, os direitos humanos cultivam a ambiguidade de criar pertença em duas grandes coletividades. Uma é a (…) supostamente mais inclusiva, a humanidade, daí os direitos humanos. A outra é uma coletividade muito mais restrita, a (…) dos cidadãos de um determinado Estado. […] Ao longo dos últimos duzentos anos, os direitos humanos foram sendo incorporados nas constituições e nas práticas jurídico-políticas de muitos países e foram reconceitualizados como direitos de cidadania, diretamente garantidos pelo Estado e aplicados coercitivamente pelos tribunais (…). Mas a verdade é que a efetividade da proteção ampla dos direitos de cidadania foi sempre precária na (…) maioria dos países. (…) a evocação dos direitos humanos ocorreu (…) em situações de erosão ou violação particularmente grave dos direitos de cidadania. Os direitos humanos surgem como o patamar mais baixo de inclusão, um movimento descendente da comunidade mais densa de cidadãos para a comunidade mais diluída da humanidade. Com o neoliberalismo e o seu ataque ao Estado como garante dos direitos, em especial os (…) econômicos e sociais, a comunidade dos cidadãos dilui-se ao ponto de se tornar indistinguível da comunidade humana e dos direitos de cidadania, tão trivializados como direitos humanos. A prioridade concedida por Arendt (1951) aos direitos de cidadania sobre os direitos humanos, antes prenhe de significado, desliza para o vazio normativo. […]

A outra tensão que ilustra a natureza ilusória do monolitismo é a tensão entre direitos individuais e coletivos. A Declaração Universal dos Direitos Humanos (…) reconhece apenas dois sujeitos jurídicos: o indivíduo e o Estado. Os povos são reconhecidos apenas na medida em que se tornam Estados. (…) quando a Declaração foi adotada, existiam muitos povos, nações e comunidades que não tinham Estado. Assim, do ponto de vista das epistemologias do Sul, a Declaração não pode deixar de ser considerada colonialista (Burke, 2010; Terretta, 2012).  […] Com o passar do tempo, sexismo, racismo, colonialismo e (…) formas (…) da dominação de classe vieram a ser reconhecidos como dando azo a violações dos direitos humanos. Em meados dos anos de 1960, as lutas anticoloniais tornaram-se parte da agenda das Nações Unidas. (…) tal como era entendida (…), a autodeterminação dizia apenas respeito aos povos sujeitos ao colonialismo europeu. Assim (…) a autodeterminação deixou de fora muitos povos sujeitos à colonização não europeia e colonização interna, sendo os povos indígenas o exemplo mais dramático. […]

Sendo que os direitos coletivos não fazem parte do cânon original dos direitos humanos, a tensão entre direitos individuais e coletivos resulta da luta histórica dos grupos sociais que, sendo excluídos ou discriminados enquanto grupo, não podem ser adequadamente protegidos pelos direitos humanos individuais. As lutas das mulheres, dos povos indígenas, afrodescendentes, vítimas do racismo, gays, lésbicas e minorias religiosas marcam os últimos cinquenta anos de reconhecimento de direitos coletivos, (…) sempre amplamente contestado e em constante risco de reversão. Não existe necessariamente uma contradição entre direitos individuais e coletivos, mais que não seja pelo fato de existirem muitos tipos de direitos coletivos. (…) podemos distinguir dois tipos de direitos coletivos, os primários e os derivados. (…) direitos coletivos derivados quando (…) trabalhadores se auto-organizam em sindicatos e conferem a estes o direito de representá-los nas negociações com os empregadores. (…) direitos coletivos primários quando uma comunidade de indivíduos tem direitos para além dos direitos da sua organização, ou renuncia aos seus direitos individuais a favor dos direitos da comunidade. […] Na sua grande maioria são exercidos individualmente, como quando um policial shik usa o turbante, uma médica islâmica usa o hijab, ou quando um membro de uma casta inferior na Índia, um afrodescendente brasileiro ou indígena se beneficia das ações afirmativas disponíveis nas suas comunidades. Mas existem direitos que só podem ser exercidos coletivamente, como o direito à autodeterminação. Os direitos coletivos existem para eliminar ou minorar a insegurança e a injustiça suportadas pelos indivíduos que são discriminados como vítimas sistemáticas da opressão apenas por serem o que são (…). […] (…) a contradição ou tensão vis-à-vis às concepções mais individualistas de direitos humanos estão sempre presentes.

Ter presentes estas ilusões é crucial para construir uma concepção e uma prática contra-hegemônica de direitos humanos, sobretudo quando elas devem assentar num diálogo com outras concepções de dignidade humana e outras práticas em sua defesa. (…) passo a definir o que considero ser a versão hegemônica ou convencional dos direitos humanos. (…) um entendimento convencional dos direitos humanos como tendo as seguintes características: os direitos são universalmente válidos independentemente do contexto social, político e cultural em que operam e dos diferentes regimes de direitos humanos existentes em diferentes regiões (…); (…) são a única gramática e linguagem de oposição disponível para confrontar as “patologias do poder”; os violadores dos direitos humanos (…) devem ser punidos de acordo com os direitos humanos; questionar os direitos humanos em termos das suas supostas limitações culturais e políticas contribui para perpetuar os males que (…) visam combater; o fenômeno (…) dos duplos critérios na avaliação da observância dos direitos humanos de modo algum compromete a validade universal (…); partem de uma ideia de dignidade humana que (…) assenta numa concepção de natureza humana (…) individual, autossustentada e qualitativamente diferente da natureza não humana; a liberdade religiosa só pode ser assegurada na medida em que a esfera pública esteja livre de religião, a premissa do secularismo; (…) violação dos direitos humanos é definido pelas declarações universais, instituições multilaterais (…) e organizações não governamentais (predominantemente baseadas no Norte Global); as violações (…) podem ser medidas (…) de acordo com indicadores quantitativos; o respeito pelos direitos humanos é muito mais problemático no Sul Global do que no Norte (…).

[…] A questão pode formular-se deste modo: se a humanidade é só uma, por que é que há tantos princípios diferentes sobre a dignidade humana e justiça social, todos pretensamente únicos, e, por vezes, contraditórios entre si? Na raiz (…) está a constatação, (…) cada vez mais inequívoca, de que a compreensão do mundo excede em muito a compreensão ocidental do mundo e, portanto, a compreensão ocidental da universalidade dos direitos humanos.

(…) tal diversidade só deve ser reconhecida na medida em que não contradiga os direitos humanos universais. Postulando a universalidade abstrata da concepção de dignidade humana subjacente aos direitos humanos, esta resposta banaliza a perplexidade inerente à questão. O fato de (…) ser baseada em pressupostos ocidentais é considerado irrelevante, já que o postulado da universalidade faz com que a historicidade dos direitos humanos não interfira com o seu estatuto ontológico. Embora plenamente aceite pelo pensamento político hegemônico, (…) reduz o mundo ao entendimento que o Ocidente tem dele, ignorando ou trivializando (…) experiências culturais e políticas decisivas em países do Sul Global. (…) é o caso dos movimentos de resistência contra a opressão, marginalização e exclusão que têm vindo a emergir nas últimas décadas e cujas bases ideológicas pouco ou nada têm a ver com as referências culturais e políticas ocidentais dominantes (…). (…) não formulam as suas demandas em termos de direitos humanos, (…) pelo contrário, (…) formulam-nas de acordo com princípios que contradizem os princípios dominantes dos direitos humanos. Estes movimentos encontram-se (…) enraizados em identidades históricas e culturais multisseculares (…). (…) três destes movimentos, com significados políticos muito distintos: os movimentos indígenas, (…) na América Latina; os movimentos de camponeses na África e na Ásia; e a insurgência islâmica. (…) comungam do fato de provirem de referências políticas não ocidentais e de se constituírem como resistência ao domínio ocidental.

Ao pensamento convencional dos direitos humanos faltam instrumentos teóricos e analíticos que lhe permitam posicionar-se com alguma credibilidade em relação a estes movimentos, e, pior ainda, não considera prioritário fazê-lo. Tende a aplicar genericamente a mesma receita abstrata dos direitos humanos, esperando (…) que a natureza das ideologias alternativas e universos simbólicos sejam reduzidos a especificidades locais sem nenhum impacto no cânone universal dos direitos humanos.

[Arte: Cashmere (1908) by John Singer Sargent]

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A morte dos pobres [CXXII]

BAUDELAIRE, C. A morte dos pobres CXXII. In:_______ As flores do mal. Tradução e organização de Júlio Castañon Guimarães; apêndices de J. Barbey d’Aurevilly, Guillaume Apollinaire, Paul Valéry. 1ª ed. São Paulo: Penguin Classics – Companhia das Letras, 2019. p. 334-335.

cxxii
la mort des pauvres

C’est la Mort qui console, hélas! et qui fait vivre;
C’est le but de la vie, et c’est le seul espoir
Qui, comme un élixir, nous monte et nous enivre,
Et nous donne le coeur de marcher jusqu’au soir;

À travers la tempête, et la neige, et le givre,
C’est la clarté vibrante à notre horizon noir;
C’est l’auberge fameuse inscrite sur le livre,
Où l’on pourra manger, et dormir, et s’asseoir;

C’est un Ange qui tient dans ses doigts magnétiques
Le sommeil et le don des rêves extatiques,
Et qui refait le lit des gens pauvres et nus;

C’est la gloire des dieux, c’est le grenier mystique,
C’est la bourse du pauvre et sa patrie antique,
C’est le portique ouvert sur les Cieux inconnus!

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cxxii
a morte dos pobres

A Morte faz viver e é consoladora;
É o intento da vida, é a esperança sem par,
Que, como um elixir, nos inebria e devora,
E dá vigor de até à noite caminhar;

Pela neve, e a geada, e a tempestade afora,
É a luz, em nosso negro horizonte, a vibrar;
É a pousada no livro inscrita, acolhedora,
Onde se poderá comer, dormir, sentar;

É um Anjo que detém nos dedos imantados
O sono e o dom de nossos sonhos extasiados,
E que refaz o leito desses desvalidos;

É dos deuses a glória, abrigo espiritual,
É a bolsa do pobre, é sua pátria ancestral,
É o pórtico que se abre aos Céus desconhecidos!

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[Art: sculpture by Bernard Braun, created in 1715, Kuks castle, Czech Republic]

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Uma viagem a Citera

BAUDELAIRE, C. Uma viagem a Citera CXVI. In:_______ As flores do mal. Tradução e organização de Júlio Castañon Guimarães; apêndices de J. Barbey d’Aurevilly, Guillaume Apollinaire, Paul Valéry. 1ª ed. São Paulo: Penguin Classics – Companhia das Letras, 2019. p. 314-317.

cxvi
un voyage à cythère

Mon coeur, comme un oiseau, voltigeait tout joyeux
Et planait librement à l’entour des cordages;
Le navire roulait sous un ciel sans nuages,
Comme un ange enivré d’un soleil radieux.

Quelle est cette île triste et noire? — C’est Cythère,
Nous dit-on, un pays fameux dans les chansons,
Eldorado banal de tous les vieux garçons.
Regardez, après tout, c’est une pauvre terre.

— Île des doux secrets et des fêtes du coeur!
De l’antique Vénus le superbe fantôme
Au-dessus de tes mers plane comme un arôme,
Et charge les esprits d’amour et de langueur.

Belle île aux myrtes verts, pleine de fleurs écloses,
Vénérée à jamais par toute nation,
Où les soupirs des coeurs en adoration
Roulent comme l’encens sur un jardin de roses

Ou le roucoulement éternel d’un ramier!
— Cythère n’était plus qu’un terrain des plus maigres,
Un désert rocailleux troublé par des cris aigres.
J’entrevoyais pourtant un objet singulier!

Ce n’était pas un temple aux ombres bocagères,
Où la jeune prêtresse, amoureuse des fleurs,
Allait, le corps brûlé de secrètes chaleurs,
Entrebâillant sa robe aux brises passagères;

Mais voilà qu’en rasant la côte d’assez près
Pour troubler les oiseaux avec nos voiles blanches,
Nous vîmes que c’était un gibet à trois branches,
Du ciel se détachant en noir, comme un cyprès.

De féroces oiseaux perchés sur leur pâture
Détruisaient avec rage un pendu déjà mûr,
Chacun plantant, comme un outil, son bec impur
Dans tous les coins saignants de cette pourriture;

Les yeux étaient deux trous, et du ventre effondré
Les intestins pesants lui coulaient sur les cuisses,
Et ses bourreaux, gorgés de hideuses délices,
L’avaient à coups de bec absolument châtré.

Sous les pieds, un troupeau de jaloux quadrupèdes,
Le museau relevé, tournoyait et rôdait;
Une plus grande bête au milieu s’agitait
Comme un exécuteur entouré de ses aides.

Habitant de Cythère, enfant d’un ciel si beau,
Silencieusement tu souffrais ces insultes
En expiation de tes infâmes cultes
Et des péchés qui t’ont interdit le tombeau.

Ridicule pendu, tes douleurs sont les miennes!
Je sentis, à l’aspect de tes membres flottants,
Comme un vomissement, remonter vers mes dents
Le long fleuve de fiel des douleurs anciennes;

Devant toi, pauvre diable au souvenir si cher,
J’ai senti tous les becs et toutes les mâchoires
Des corbeaux lancinants et des panthères noires
Qui jadis aimaient tant à triturer ma chair.

— Le ciel était charmant, la mer était unie;
Pour moi tout était noir et sanglant désormais,
Hélas! et j’avais, comme en un suaire épais,
Le coeur enseveli dans cette allégorie.

Dans ton île, ô Vénus! je n’ai trouvé debout
Qu’un gibet symbolique où pendait mon image…
— Ah! Seigneur! donnez-moi la force et le courage
De contempler mon coeur et mon corps sans dégoût!

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cxvi
uma viagem a citera

Meu coração, um pássaro, volteava airoso
E livremente em torno aos cordames planava;
O navio, sob céu sem nuvens, ondeava
Como um anjo embriagado por um sol radioso.

Que ilha é essa, triste e negra? — É conhecida
Como Citera, célebre pelas canções,
Eldorado banal para alguns solteirões.
Mas, vejam — é só uma terra empobrecida.

— Ilha de enredos leves e de festas da alma!
Da Vênus ancestral o espectro luminar
Como um aroma plaina acima de teu mar,
E insufla nos espíritos amor e calma.

Ilha de mirtos verdes e flores viçosas,
E sempre venerada por qualquer nação,
Onde suspiros de almas em adoração
Rolam tal como o incenso em um jardim de rosas

Ou o som de um torcaz para sempre a arrulhar!
— Citera eram desertos pobres, perturbados,
Além de pedregosos, por gritos afiados.
Eu no entanto entrevia um objeto invulgar!

Não era um templo em meio a sombras pastorais,
Onde a sacerdotisa, que adorava flores,
Ia, o corpo queimado de ocultos ardores,
Entreabrindo o vestido às brisas casuais;

Mas como íamos rente à terra, costeando,
Para com as velas brancas perturbar as aves,
Vimos tratar-se de uma forca de três traves,
Contra o céu, tal cipreste, em negro se avultando.

Feras aves pousadas em sua comida
Destruíam um enforcado como que maduro,
Plantando a ferramenta de seu bico impuro
Onde quer que sangrasse a carne apodrecida;

Os olhos, dois buracos; do ventre estripado
Seu intestino pelas pernas lhe corria;
E os carrascos, saciados com a atroz iguaria,
Haviam-no a bicadas de fato castrado.

A seus pés, uns quadrúpedes ambiciosos;
De focinho para o alto, o rebanho rondava;
Um animal maior no meio se agitava
Tal um executor com auxiliares ciosos.

Morador de Citera, filho de céu tão
Belo, em silêncio tu sofrias os insultos,
Como em expiação de teus infames cultos,
Das faltas que proibiram tua inumação.

Ridículo enforcado, as dores com que brigas
São minhas! Senti, vendo teus membros pendentes,
Subir, tal como um vômito, até aos meus dentes,
O longo rio de fel dessas dores antigas;

Diante de ti, meu pobre-diabo tão prezado,
Suportei maxilares e bicos cruciantes
Com que panteras-negras, corvos lancinantes
Trituravam-me a carne de muito bom grado.

— Com um céu sedutor e um mar que reluzia,
Tudo era para mim sangrento, negro, avesso;
Meu coração estava, como que num espesso
Sudário, amortalhado nessa alegoria.

Em tua ilha, Vênus, só pude encontrar
De pé a forca simbólica onde minha imagem
Pendia… — Ah! Senhor! dai-me força e coragem
Para sem asco meu corpo e alma contemplar!

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[Arte: Two Women of Nojiri who were robbed, tied to trees, and eaten by wolves, from the series The Post Dispatch Newspaper by Tsukioka Yoshitoshi (1875)]

Publicado em Literatura, Modernismo, Poesia, Romantismo, Simbolismo

A fonte de sangue [CXIII]

BAUDELAIRE, C. A fonte de sangue CXIII. In:_______ As flores do mal. Tradução e organização de Júlio Castañon Guimarães; apêndices de J. Barbey d’Aurevilly, Guillaume Apollinaire, Paul Valéry. 1ª ed. São Paulo: Penguin Classics – Companhia das Letras, 2019. p. 308-309.

cxiii
la fontaine de sang

Il me semble parfois que mon sang coule à flots,
Ainsi qu’une fontaine aux rythmiques sanglots.
Je l’entends bien qui coule avec un long murmure,
Mais je me tâte en vain pour trouver la blessure.

À travers la cité, comme dans un champ clos,
Il s’en va, transformant les pavés en îlots,
Désaltérant la soif de chaque créature,
Et partout colorant en rouge la nature.

J’ai demandé souvent à des vins captieux
D’endormir pour un jour la terreur qui me mine;
Le vin rend l’oeil plus clair et l’oreille plus fine!

J’ai cherché dans l’amour un sommeil oublieux;
Mais l’amour n’est pour moi qu’un matelas d’aiguilles
Fait pour donner à boire à ces cruelles filles!

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cxiii
a fonte de sangue

Sinto às vezes que meu sangue corre exaltado,
Tal uma fonte num soluço cadenciado.
Ouço-o a correr tal longo lento lamento,
Mas é em vão que busco qualquer ferimento.

Pela cidade, como num campo fechado,
Vai-se — cada pedaço de pedra tornado
Ilha —, e alivia a sede de todo sedento,
E à natureza dá rubro revestimento.

Pedi não raro a algum vinho enganador
Que fizesse dormir o terror que me arruína;
O vinho aviva o olhar, e a audição faz mais fina!

Busquei no amor um sono desmemoriador;
Mas o amor é um colchão de agulhas — seu mister:
Só o de a essas mulheres cruéis dar de beber!

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[Arte: The Carmagnole (1901) por Käthe Kollwitz]

Publicado em Literatura, Modernismo, Poesia, Romantismo, Simbolismo

O vinho dos amantes [CVIII]

BAUDELAIRE, C. O vinho dos amantes CVIII. In:_______ As flores do mal. Tradução e organização de Júlio Castañon Guimarães; apêndices de J. Barbey d’Aurevilly, Guillaume Apollinaire, Paul Valéry. 1ª ed. São Paulo: Penguin Classics – Companhia das Letras, 2019. p. 295-296.

cviii
le vin des amants

Aujourd’hui l’espace est splendide!
Sans mors, sans éperons, sans bride,
Partons à cheval sur le vin
Pour un ciel féerique et divin!

Comme deux anges que torture
Une implacable calenture,
Dans le bleu cristal du matin
Suivons le mirage lointain!

Mollement balancés sur l’aile
Du tourbillon intelligent,
Dans un délire parallèle,

Ma soeur, côte à côte nageant,
Nous fuirons sans repos ni trêves
Vers le paradis de mes rêves!

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cviii
o vinho dos amantes

Grandioso está o espaço! cheio
De luz! Sem rédea, espora ou freio,
No vinho vamos a cavalo
Até em céu sublime acabá-lo!

Como dois anjos torturados
Por uns delírios arraigados,
Sigamos na manhã cristal
E azul a miragem casual!

Na asa — embalançadamente —
Do redemoinho atilado,
Por desvairamento adjacente,

Fugiremos, nadando lado
A lado, até ao paraíso
Que nos meus sonhos eu diviso!

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[Arte: Joseph Larusso]

Publicado em Literatura, Modernismo, Poesia, Romantismo, Simbolismo

O irremediável [LXXXIV]

BAUDELAIRE, C. O irremediável LXXXIV. In:_______ As flores do mal. Tradução e organização de Júlio Castañon Guimarães; apêndices de J. Barbey d’Aurevilly, Guillaume Apollinaire, Paul Valéry. 1ª ed. São Paulo: Penguin Classics – Companhia das Letras, 2019. p. 223-226.

lxxxiv
l’irrémédiable

i

Une Idée, une Forme, un Être
Parti de l’azur et tombé
Dans un Styx bourbeux et plombé
Où nul oeil du Ciel ne pénètre;

Un Ange, imprudent voyageur
Qu’a tenté l’amour du difforme,
Au fond d’un cauchemar énorme
Se débattant comme un nageur,

Et luttant, angoisses funèbres!
Contre un gigantesque remous
Qui va chantant comme les fous
Et pirouettant dans les ténèbres;

Un malheureux ensorcelé
Dans ses tâtonnements futiles,
Pour fuir d’un lieu plein de reptiles,
Cherchant la lumière et la clé;

Un damné descendant sans lampe,
Au bord d’un gouffre dont l’odeur
Trahit l’humide profondeur,
D’éternels escaliers sans rampe,

Où veillent des monstres visqueux
Dont les larges yeux de phosphore
Font une nuit plus noire encore
Et ne rendent visibles qu’eux;

Un navire pris dans le pôle,
Comme en un piège de cristal,
Cherchant par quel détroit fatal
Il est tombé dans cette geôle;

— Emblèmes nets, tableau parfait
D’une fortune irrémédiable,
Qui donne à penser que le Diable
Fait toujours bien tout ce qu’il fait!


ii


Tête-à-tête sombre et limpide
Qu’un coeur devenu son miroir!
Puits de Vérité, clair et noir,
Où tremble une étoile livide,

Un phare ironique, infernal,
Flambeau des grâces sataniques,
Soulagement et gloire uniques,
— La conscience dans le Mal!

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lxxxiv
o irremediável

i

Uma Ideia, uma Forma, um Ser
Saído do azul e caído
Num Estige enlameado, impedido
Mesmo a um olho do Céu qualquer;

Um Anjo, viajante sem temor
— Tenta-o o amor pelo disforme —,
Dentro de um pesadelo enorme
Debate-se tal nadador,

E luta — fúnebre aflição! —
Contra um sorvedouro impaciente
Que canta tal como um demente
E pirueta na escuridão;

Um enfeitiçado deplorando,
A fim de, num fútil esgar,
Fugir aos répteis e ao lugar,
A luz e a chave vai buscando;

Um danado, na escuridão,
Beira um abismo, cujo odor
Trai profundidade e bolor,
Por escadas sem corrimão,

Onde velam monstros viscosos
Que ao negror da noite enegrecem
Com os olhos — só eles aparecem —,
Seus grandes olhos fosforosos;

No polo um navio que em vão,
Pego num cerco de cristal,
Busca pelo estreito fatal
Que o levou a essa prisão;

— Claro emblema, quadro perfeito
De um irremediável destino,
Que só mostra do Diabo o tino,
Pois tudo o que faz, faz bem-feito!

ii

Num claro-escuro, um cara a cara:
Um coração que a si se espelha!
Poço de Verdade, centelha
Negra — e, vaga, uma estrela rara —,

Farol irônico, infernal,
Tocha das satânicas graças,
Refrigério e glória sem jaças
— Toda a consciência que há no Mal!

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[Arte: Philomena Famulok (2021)]

Publicado em Literatura, Modernismo, Poesia, Romantismo, Simbolismo

Spleen [LXXVI]

BAUDELAIRE, C. Spleen LXXVI. In:_______ As flores do mal. Tradução e organização de Júlio Castañon Guimarães; apêndices de J. Barbey d’Aurevilly, Guillaume Apollinaire, Paul Valéry. 1ª ed. São Paulo: Penguin Classics – Companhia das Letras, 2019. p. 207-208.

lxxvi

spleen

J’ai plus de souvenirs que si j’avais mille ans.
Un gros meuble à tiroirs encombré de bilans,
De vers, de billets doux, de procès, de romances,
Avec de lourds cheveux roulés dans des quittances,
Cache moins de secrets que mon triste cerveau.
C’est une pyramide, un immense caveau,
Qui contient plus de morts que la fosse commune.
— Je suis un cimetière abhorré de la lune,
Où comme des remords se traînent de longs vers
Qui s’acharnent toujours sur mes morts les plus chers.
Je suis un vieux boudoir plein de roses fanées,
Où gît tout un fouillis de modes surannées,
Où les pastels plaintifs et les pâles Boucher,
Seuls, respirent l’odeur d’un flacon débouché.
Rien n’égale en longueur les boiteuses journées,
Quand sous les lourds flocons des neigeuses années
L’ennui, fruit de la morne incuriosité,
Prend les proportions de l’immortalité.
— Désormais tu n’es plus, ô matière vivante!
Qu’un granit entouré d’une vague épouvante,
Assoupi dans le fond d’un Sahara brumeux;
Un vieux sphinx ignoré du monde insoucieux,
Oublié sur la carte, et dont l’humeur farouche
Ne chante qu’aux rayons du soleil qui se couche.

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lxxvi

spleen

Tanta lembrança eu não teria com mil anos.

Com gavetas repletas de balanços, planos,
Bilhetes de amor, versos, processos, canções,
Uns cabelos guardados numas quitações,
Um armário não terá rol de segredos tão
Grande quanto meu cérebro — imenso porão,
Pirâmide, que guarda mais mortos que a fossa
Comum. — Sou cemitério onde sequer se esboça
Luar, onde, tal remorso, a vermina se arrasta,
E sempre em meus mais caros mortos se repasta.
Sou um velho budoar só com rosas fanadas,
Onde jaz profusão de roupas desusadas,
E uns dolentes pastéis e os Boucher de ar lavado,
Sós, respiram o odor de um frasco destampado.

Nada se mede aos dias lentos, vacilantes,
Quando o tédio, nos anos de neves constantes,
Sendo o fruto da mais triste incuriosidade,
Assume as proporções de uma imortalidade.
— Daqui em diante não és mais, ó matéria viva!
Que um granito, cercado por suspeita esquiva,
A dormir nos confins de um Saara enevoado;
Velha esfinge ignorada pelo descuidado
Mundo, um ponto no mapa, e cujo humor prudente
Só canta sob os raios de algum sol poente.

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[Arte: Derwentwater (1971) por Robert Leslie Howey]

Publicado em Antropologia, Ciência Política, Ciências Econômicas, Estudos Culturais, Estudos de Gênero, Filosofia, História, História do Brasil, Literatura, Sociologia

Quarto de Despejo [parte sete]

Carolina Maria de Jesus, Quarto de despejo, Ed. Ática, 2014.

Como é horrivel ouvir um pobre lamentando-se. A voz do pobre não tem poesia.

11 DE DEZEMBRO …Começei queixar para a Dona Maria das Coelhas que o que eu ganho não dá para tratar os meus filhos. Eles não tem roupas nem o que calçar. E eu não paro um minuto. Cato tudo que se pode vender e a miséria continua firme ao meu lado.

Ela disse-me que já está com nojo da vida. Ouvi seus lamentos em silêncio. E disse-lhe:

— Nós já estamos predestinados a morrer de fome!

[…]

14 DE DEZEMBRO …De manhã teve missa. O padre disse para nós não beber, porque o homem que bebe não sabe o que faz. Que devemos beber limonada e agua. Varias pessoas veio assistir a missa. Ele disse que sente prazer de estar entre nós.

Mas se o padre residisse entre nós, havia de expressar de outra forma.

p. 89

—Dona Carolina, eu estou neste livro? Deixa eu ver!

—Não. Quem vai ler isto é o senhor Audálio Dantas, que vai publicá-lo.

—E porque é que eu estou nisto?

—Você está aqui por que naquele dia que o Armim brigou com você e começou a bater-te, você saiu correndo nua para a rua

Ela não gostou e disse-me:

—O que é que a senhora ganha com isto?

…Resolvi entrar para dentro de casa. Olhei o céu com suas nuvens negras que estavam prestes a transformar-se em chuva.

p. 90

O senhor Pinheiro, digníssimo presidente do Centro Espirita, saiu para conversar com os indigentes. (…) Passou um senhor, parou e nos olhou. E disse perceptível:

—Será que este povo é deste mundo?

Eu achei graça e respondi:

Nós somos feios e mal vestidos, mas somos deste mundo.

p. 91

Não sei porque é que estes comerciantes inconscientes vem jogar seus produtos deteriorados aqui perto da favela, para as crianças ver e comer.

…Na minha opinião os atacadistas de São Paulo estão se divertindo com o povo igual os Cesar quando torturava os cristãos. Só que o Cesar da atualidade supera o Cesar do passado. Os outros era perseguido pela fé. E nós, pela fome!

Naquela epoca, os que não queriam morrer deixavam de amar a Cristo.

Mas nós não podemos deixar de comer.

p. 91-92

Publicado em Antropologia, Ciência Política, Ciências Econômicas, Estudos Culturais, Estudos de Gênero, Filosofia, História, História do Brasil, Literatura, Sociologia

Quarto de Despejo [parte seis]

Carolina Maria de Jesus, Quarto de despejo, Ed. Ática, 2014.

Creio que um homem só chega para uma mulher. Uma mulher que casou-se precisa ser normal.

Esta historia das mulheres trocar-se de homens como se estivesse trocando de roupa, é muito feio. Agora uma mulher livre que não tem compromissos pode imitar o baralho, passar de mão em mão.

p. 79

Tenho nojo, tenho pavor  
Do dinheiro de aluminio  
O dinheiro sem valor  
Dinheiro do Juscelino. 

…Eu descancei, fiz a sopa de lentilha com arroz e carne. Mandei o João comprar meio quilo de açúcar, o burro comprou arroz.

Ele passa o dia lendo Gibi e não presta atenção em nada. Vive pensando que é o homem invisível, Mandraque e outras porcarias.

p. 79

Uma senhora chamou-me para dar-me papéis. Disse-lhe que devido o aumento da condução a policia estava nas ruas. Ela ficou triste. Percebi que a noticia do aumento entristece todos.

Ela disse-me:

—Eles gastam nas eleições e depois aumentam qualquer coisa. O Auro perdeu, aumentou a carne. O Adhemar perdeu, aumentou as passagens. Um pouquinho de cada um, eles vão recuperando o que gastam. Quem paga as despezas das eleições é o povo!

p. 80

…Percebi que o povo continua achando que devemos revoltar contra os preços dos generos e não atacarmos só a C.M.T.C. Quem lê o que o Dr. Adhemar disse nos jornais que foi com dor no coração que assinou o aumento, diz:

—O Adhemar está enganado. Ele não tem coração.

—Se o custo de vida continuar subindo até 1960 vamos ter revolução!

p. 81

Comecei sentir fome. E quem está com fome não dorme.

Quando Jesus disse para as mulheres de Jerusalem: — “Não Chores por mim. Chorae por vós” — suas palavras profetisava o inverno do Senhor Juscelino. Penado de agruras para o povo brasileiro. Penado que o pobre há de comer o que encontrar no lixo ou então dormir com fome.

Você já viu um cão quando quer segurar a cauda com a boca e fica rodando sem pegá-la?

E igual o governo do Juscelino!

p. 83

O dono da loja de sapatos auxiliou-me a por o guarda-roupa no carrinho. Caiu porque o carrinho deslisou-se. Tinha uns homens da Light trabalhando. Surgiu um e deu-me uma corda. Comecei a amarrar. Mas não conseguia. Começou afluir pessoas para ver-me. O João ficou nervoso com os olhares. Eu olhava os empregados da Light e pensava: no Brasil não tem homens! Se tivesse ageitava isto aqui para mim. Eu devia ter nascido no Inferno!

Eu puis o colchão dentro do guarda-roupa. Piorou. Os homens da Light olhavam a minha luta. E eu pensava: para olhar eles prestam. Pensei: eu não vim ao mundo para esperar auxilios de quem quer que seja. Eu tenho vencido tantas coisas sosinha, hei de vencer isto aqui! Hei de ageitar este guarda-roupa. Não estava pensando nos homens da Light. Eu estava suando e sentia o odor do suor.

Assustei quando ouvi uma voz no meu ouvido:

—Deixa, que eu ageito para a senhora.

p. 84

Ele disse-me que quer casar-se comigo. Olho e penso: este homem não serve para mim. Parece um ator que vai entrar em cena. Eu gosto dos homens que pregam pregos, concertam algo na casa.

Mas quando eu estou deitada com ele, acho que ele me serve.

p. 85

…Hoje eu estou triste. Deus devia dar uma alma alegre para o poeta.

A tarde na favela foi de amargar. E assim as crianças ficaram sabendo que os homens fazem… com as mulheres.

Estas coisas eles não olvidam. Tenho dó destas crianças que vivem no Quarto de Despejo mais imundo que há no mundo.

p. 86