Louis Althusser, O futuro é muito tempo, Edições Asa, 1992.
XXIII – IMPROCEDÊNCIA
Um velho amigo médico que nos conhecia havia muito, a Hélène e a mim. Mostro-lhe este texto. E muito naturalmente faço-lhe a pergunta:
«Que se terá passado então nesse domingo 16 de Novembro entre mim e Hélène, para acabar naquele assassínio medonho?»
Eis a sua resposta, exatamente tal como ma deu:
«Eu diria que se verificou uma sobreposição de factos puramente acidentais quanto a uns, não fortuitos quanto aos outros, cuja conjunção era totalmente imprevisível e teria podido ser muito facilmente evitada sem grande esforço justamente se…
«A meu ver três fatos dominam a situação:
«1. Por um lado, como comprovaram os três médicos especialistas, tu estavas em “estado de demência” e portanto de irresponsabilidade: confusão mental, onirismo, ficaste totalmente inconsciente antes e durante o ato, na base de uma crise de melancolia aguda, logo, não responsável pelos teus atos. Daí a inimputabilidade, regulamentar em tais casos.
«2. Mas, por outro lado, houve uma coisa que impressionou no local os investigadores da polícia: não havia o menor sinal de desordem nem nos vossos dois quartos, nem na tua cama, nem nas roupas de Hélène.
«A história da “coberta” que teria protegido o pescoço de Hélène dos sinais visíveis de estrangulamento era uma hipótese de jornalista, destinada justamente a tentar explicar a ausência de vestígios externos de estrangulamento. Ora esta hipótese, que de resto só aparece num artigo isolado, e é rejeitada por vários outros, foi formalmente desmentida pelo inquérito. Não há qualquer sinal exterior de estrangulamento na pele do pescoço de Hélène.
«3. Finalmente vocês estavam os dois sozinhos no apartamento, não só havia uns dez dias, mas também nessa manhã.
«Evidentemente, não havia ninguém para intervir. Mas mais ainda: por uma razão ou outra, Hélène não esboçou o mais pequeno gesto de defesa. Alguém, não sem razão, fez notar o seguinte: no estado de confusão e inconsciência em que te encontravas (e talvez também sob o efeito nefasto dos imaos, na sequência do “choque biológico” que produziu em ti efeitos ‘invertidos”), teria sem dúvida bastado que Hélène te desse uma boa bofetada, fizesse um gesto sério para te arrancar à tua inconsciência, ou pelo menos para travar os teus próprios gestos inconscientes. Então todo o curso do drama teria podido ser diferente. Ora ela nada fez.
«Quererá isto dizer que ela viu chegar a morte que desejava receber de ti e se deixou matar passivamente? Não é de excluir.
«Quererá dizer pelo contrário que nada receou do teu gesto benfazejo da massagem, a que se acostumara de longa data? — não te esqueças de que, se te dermos crédito, nunca antes a massajaras no pescoço, mas na nuca — algo que também não podemos excluir. Como sabes (e todos os anatomista também as artes de combate e os bandidos assassinos o sabem perfeitamente) o pescoço é de uma fragilidade extrema: basta um choque muito leve para quebrar cartilagens e ossículos, e segue-se a morte.
«No fundo, Hélène teria um desejo de acabar com a vida (havia mais de um mês que não parava de falar em matar-se mas tu sabia-la incapaz de o fazer) aceitando passivamente das tuas mãos a morte que te suplicara que lhe desse. Também não o podemos excluir.
«Ou terias tu, como durante toda a tua vida, um tal desejo de a socorrer, de auxiliar o seu desejo mais intenso, mais desarmado, que realizaste, inconscientemente, o seu desejo de acabar com a vida? Caso daquilo a que se chama de “suicídio por pessoa interposta” ou o “suicídio altruísta”, observando-se frequentemente em casos de melancolia aguda como o teu! Também não o podemos excluir.
«Mas como escolher entre estas hipóteses?
«Nesta ordem de ideias, tudo é concebível, ou quase. Mas sobre este pano de fundo da coisa, nunca saberemos nada de absolutamente seguro, tão múltiplos são os elementos acumulados no desencadear do drama, subjetivamente complexos e indecidíveis, e objetivamente em grande parte aleatórios.
«Que se teria passado com efeito se, por exemplo — e isto é perfeitamente objetivo! —, Hélène não tivesse implorado ao teu analista, que queria hospitalizar-te imediatamente, que lhe concedesse uma moratória de três dias e “reflexão”? Por que é que no fundo de si própria suplicou ao teu analista que lhe concedesse essa moratória? E sobretudo, sobretudo, que teria acontecido se a carta-expresso do teu analista, metida no correio na sexta-feira 14 às 16 horas e pedindo a Hélène que lhe telefonasse com a máxima urgência, para provocar a hospitalização imediata apesar do pedido de adiamento dela, tivesse chegado à Ecole não na segunda-feira 17, depois do drama, mas digamos que na noite de 14 ou no sábado de manhã, dia 15 às nove horas? Provavelmente o atraso não se deve aos correios. Mas o porteiro da Escola, que recebe o correio, cartas e pneumáticos, não conseguiu evidentemente falar contigo pelo telefone interno nem fazer com que lhe abrisses a porta tocando à campainha, porque havia pelo menos dez dias — todos os teus amigos o testemunharam (incluindo aqueles que gostariam de ter “forçado a tua porta”) que tu não respondias nem ao telefone, nem a campainha da porta? Se por milagre ou exceção tivesses atendido o telefone ou aberto a porta, Hélène teria recebido a carta-expresso do teu analista e, se o quisesse, teria podido ligar para o teu analista: evidentemente e sem contestação possível, tudo teria sido diferente.
«No vosso drama, o imponderável objetivo e não fantasmático está presente do princípio até ao fim, até ao último momento.
«Tudo o que se pode dizer é que, se desprezarmos estes numerosos imponderáveis — mas como abstrair deles? —, Hélène tenha aceitado a morte sem fazer um gesto para a impedir e se defender dela, como se desejasse a morte, ou recebê-la das tuas próprias mãos.
«O que também se pode dizer é que tu, que lhe deste sem dúvida a morte talvez querendo apenas massajá-la com cuidado, uma vez que não se observou qualquer sinal externo de estrangulamento, terás querido realizar o teu desejo de morte e, ao mesmo tempo que lhe prestavas o imenso serviço de a matar em lugar dela (porque ela era realmente incapaz de se matar), terás ao mesmo tempo querido realizar inconscientemente o teu próprio desejo de autodestruição através da morte da pessoa que mais acreditava em ti, para ficares bem certo de não seres senão essa personagem de artifícios e de imposturas que sempre te obsidiou. De fato a melhor prova que podemos dar-nos de não existir é destruirmo-nos a nós próprios destruindo aquela que nos ama e acima de tudo acredita na nossa existência.
«Sei que há-de haver sempre pessoas, e até amigos, que dirão: a Hélène era a doença dele, ele matou a sua doença. Ele matou-a porque ela lhe tornava a vida impossível. Ele matou-a porque a odiava, etc. Ou, mais elaboradamente ele matou-a porque vivia no fantasma da sua própria autodestruição e porque essa autodestruição passava “logicamente” pela destruição da sua obra, da sua celebridade, do seu analista, e por fim de Hélène que resumia toda a sua vida.
«Ora o que é extremamente incômodo neste tipo de raciocínio (muito difundido porque muito tranquilizador — com ele temos de fato uma “causa” indubitável) é o porquê que introduz nisto uma necessidade sem apelo, sem levar minimamente em conta a acumulação dos elementos aleatórios objetivos.
«Ora todos nós temos, todos nós, fantasmas inconscientes agressivos, ou mesmo de homicídio, de assassínio. Se todos os que alimentam dentro de si tais fantasmas passassem ao ato, tornar-nos-íamos todos, necessariamente percebes?, todos assassinos. Ora a imensa maioria das pessoas pode perfeitamente viver com os seus fantasmas incluindo os de homicídio, sem nunca passar ao ato para os realizar.
«Aqueles que dizem: ele matou-a porque já não podia suportá-la, porque mesmo inconscientemente, desejava desembaraçar-se dela, não compreendera nada do que se passou, ou não se dão conta do que dizem. Se aplicassem a si próprios esta lógica, eles que alimentam a mesma lógica também neles próprios, fantasmas de agressão e de assassínio (e quem não os alimenta?), que afinal de contas é a da premeditação do inconsciente, estariam todos não no hospital psiquiátrico, mas na prisão e há muito tempo.
«Bem vês, tanto na história de um indivíduo como na história de um povo, já Sófocles dizia e muito bem, não há verdade definitiva senão na morte vista retrospectivamente, quer dizer, num fim irremediável, ao qual já ninguém, e em primeiro lugar o morto, pode mudar nada. E é esta travagem da morte que constitui a retrospectividade a partir da qual se pode decidir (caso de Sófocles) se a pessoa que morreu foi feliz ou não e, no caso de Hélène, aquilo que “causou” a sua morte.
«Ora, na vida, as coisas não se passam assim. Pode morrer-se de um simples acidente, sem que nenhum “desejo se realize com isso”. Mas quando há “desejo” ou se desconfia da sua presença, encontramos uma quantidade de pessoas que, retrospectivamente — e precisam de o fazer porque tem não só que compreender mas que defender a sua ideia para se protegerem a si próprios, protegerem o seu amigo, ou acusar um terceiro, por exemplo certo médico que não teria feito tudo o que se impunha do lado de fora, um lado de fora “supostamente objetivo”, “evidente” — uma quantidade de pessoas que “retrospectivamente”, na retrospectividade do fato consumado e irresistível, fabricam uma “retrospectividade” do fantasma assassino do qual fazem então a “causa” do assassínio, ou até a sua premeditação inconsciente: premeditação, termo carregado de sentido, porque significa em suma previsão e ordenação inconsciente do dispositivo do assassínio na perspectiva inconsciente da passagem ao ato assassino.
«Ora confundem, estes amigos excessivamente bem intencionados em relação ao seu amigo e — ou — a si próprios, a retrospectividade factual e irreversível da vida sem mais, e a retrospectividade da vida psíquica, a retrospectividade do sentido. No primeiro caso, é verdade que para todas as pessoas e para todos os amigos, eles precisam de fato de compor a retrospectividade pessoal que melhor lhes serve (não digo de maneira nenhuma esta palavra numa acepção pejorativa) e lhes permite quer suportar o choque do drama, quer enfrentá-lo publicamente. Mas cada um ou quase tem a sua interpretação, que não deixa de deteriorar as suas relações com o seu amigo assassino e mesmo as suas relações uns com os outros. E agarram-se com unhas e dentes à sua retrospectividade pessoal, em torno da qual constroem a figura de uma personagem assassina e receiam mais ou menos surdamente que a dita personagem venha um dia a desmentir ou a corrigir a interpretação deles pela sua. É nesse sentido que o teu médico tinha razão ao dizer-te que mesmo as tuas explicações podiam, tal como a ausência de explicações da tua parte, fazer-te correr o risco de afastar de ti amigos muito chegados. De todo o coração, espero que isso não aconteça, mas também a esse respeito nada se deixa prever com segurança.
«Na retrospectividade da interpretação interna as coisas não são de maneira nenhuma assim. Primeiro porque ela se exerce na própria vida do paciente. Mas também e sobretudo porque nunca existe fantasma “unívoco” mas fantasmas sempre ambivalentes. O desejo de matar, por exemplo, ou , se autodestruir e destruir tudo à sua volta, é sempre acompanhado por um imenso desejo de amar e ser amado apesar de tudo, de um imenso desejo , fusão com o outro e portanto de salvação do outro. O que me parece, quando te leio, extremamente nítido no teu caso. Como se poderá pretender então fazer sequer da determinação “causal’’ de um fantasma sem invocar ao mesmo tempo a outra determinação “causal”, a da ambivalência, a que se dá no próprio fantasma como o desejo radicalmente oposto ao desejo assassino do fantasma, o desejo da vida, de amor e de salvação? Na verdade, não se trata nem de determinação causal, mas de aparecimento de um sentido ambivalente, unidade dilacerada do desejo, que não se realiza então, na total ambivalência da sua ambiguidade, senão na “ocasião” exterior que lhe permite “pegar”, como tu dizes de Maquiavel. Mas este “pegar’’, ele próprio, que depende terrivelmente de circunstâncias aleatórias (a carta do teu analista que não chega às mãos de Hélène, a total ausência de defesa por parte de Hélène, a vossa solidão a dois igualmente — se tivesses qualquer outra pessoa ao teu alcance, o teria acontecido? — e assim por diante), não pode ter lugar na realidade objetiva a não ser em condições altamente aleatórias. Os que pretendem possuir explicação causal não percebem nada de ambivalência dos fantasmas e, o sentido interno, na vida e não na retrospectividade definitiva da morte, nada percebem também do papel das circunstâncias exteriores objetivas aleatórias que permitem ou o “pegar” fatal, ou (e trata-se da muito grande imensa maioria estatística dos casos) escapar-lhe.
«Na verdade, para compreender o incompreensível, é preciso ao mesmo tempo levar em conta imponderáveis aleatórios (muito numerosos no teu caso) mas também a ambivalência dos fantasmas, que abre caminho a todos os contrários possíveis.
«Penso que assim estão todas as cartas na mesa. Bastavam algumas de entre elas, as mais óbvias para qualquer observador, para seres declarado não responsável pelo teu ato, no momento em que o cometeste.
«Dito isto, não podes impedir ninguém de pensar de outro modo. Mas o essencial é que te tenhas explicado claramente e publicamente por tua conta. Os outros, melhor instruídos se possível, que façam, se ainda o quiserem, mais uma religião.
«Em todo o caso, eu interpreto a tua explicação pública como uma reconquista de ti próprio no teu luto e na tua vida. Como diziam os nossos antigos, é um actus essendi, um ato de ser.»
Só uma palavra mais: que aqueles que pensam saber e dizer mais a este respeito não receiem dizê-lo. Já não podem senão ajudar-me a viver.
L. A.