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O Futuro é Muito Tempo [21]

Louis Althusser, O futuro é muito tempo, Edições Asa, 1992.

XXIII – IMPROCEDÊNCIA

Um velho amigo médico que nos conhecia havia muito, a Hélène e a mim. Mostro-lhe este texto. E muito naturalmente faço-lhe a pergunta:

«Que se terá passado então nesse domingo 16 de Novembro entre mim e Hélène, para acabar naquele assassínio medonho?»

Eis a sua resposta, exatamente tal como ma deu:

«Eu diria que se verificou uma sobreposição de factos puramente acidentais quanto a uns, não fortuitos quanto aos outros, cuja conjunção era totalmente imprevisível e teria podido ser muito facilmente evitada sem grande esforço justamente se…

«A meu ver três fatos dominam a situação:

«1. Por um lado, como comprovaram os três médicos especialistas, tu estavas em “estado de demência” e portanto de irresponsabilidade: confusão mental, onirismo, ficaste totalmente inconsciente antes e durante o ato, na base de uma crise de melancolia aguda, logo, não responsável pelos teus atos. Daí a inimputabilidade, regulamentar em tais casos.

«2. Mas, por outro lado, houve uma coisa que impressionou no local os investigadores da polícia: não havia o menor sinal de desordem nem nos vossos dois quartos, nem na tua cama, nem nas roupas de Hélène.

«A história da “coberta” que teria protegido o pescoço de Hélène dos sinais visíveis de estrangulamento era uma hipótese de jornalista, destinada justamente a tentar explicar a ausência de vestígios externos de estrangulamento. Ora esta hipótese, que de resto só aparece num artigo isolado, e é rejeitada por vários outros, foi formalmente desmentida pelo inquérito. Não há qualquer sinal exterior de estrangulamento na pele do pescoço de Hélène.

«3. Finalmente vocês estavam os dois sozinhos no apartamento, não só havia uns dez dias, mas também nessa manhã.

«Evidentemente, não havia ninguém para intervir. Mas mais ainda: por uma razão ou outra, Hélène não esboçou o mais pequeno gesto de defesa. Alguém, não sem razão, fez notar o seguinte: no estado de confusão e inconsciência em que te encontravas (e talvez também sob o efeito nefasto dos imaos, na sequência do “choque biológico” que produziu em ti efeitos ‘invertidos”), teria sem dúvida bastado que Hélène te desse uma boa bofetada, fizesse um gesto sério para te arrancar à tua inconsciência, ou pelo menos para travar os teus próprios gestos inconscientes. Então todo o curso do drama teria podido ser diferente. Ora ela nada fez.

«Quererá isto dizer que ela viu chegar a morte que desejava receber de ti e se deixou matar passivamente? Não é de excluir.

«Quererá dizer pelo contrário que nada receou do teu gesto benfazejo da massagem, a que se acostumara de longa data? — não te esqueças de que, se te dermos crédito, nunca antes a massajaras no pescoço, mas na nuca — algo que também não podemos excluir. Como sabes (e todos os anatomista também as artes de combate e os bandidos assassinos o sabem perfeitamente) o pescoço é de uma fragilidade extrema: basta um choque muito leve para quebrar cartilagens e ossículos, e segue-se a morte.

«No fundo, Hélène teria um desejo de acabar com a vida (havia mais de um mês que não parava de falar em matar-se mas tu sabia-la incapaz de o fazer) aceitando passivamente das tuas mãos a morte que te suplicara que lhe desse. Também não o podemos excluir.

«Ou terias tu, como durante toda a tua vida, um tal desejo de a socorrer, de auxiliar o seu desejo mais intenso, mais desarmado, que realizaste, inconscientemente, o seu desejo de acabar com a vida? Caso daquilo a que se chama de “suicídio por pessoa interposta” ou o “suicídio altruísta”, observando-se frequentemente em casos de melancolia aguda como o teu! Também não o podemos excluir.

«Mas como escolher entre estas hipóteses?

«Nesta ordem de ideias, tudo é concebível, ou quase. Mas sobre este pano de fundo da coisa, nunca saberemos nada de absolutamente seguro, tão múltiplos são os elementos acumulados no desencadear do drama, subjetivamente complexos e indecidíveis, e objetivamente em grande parte aleatórios.

«Que se teria passado com efeito se, por exemplo — e isto é perfeitamente objetivo! —, Hélène não tivesse implorado ao teu analista, que queria hospitalizar-te imediatamente, que lhe concedesse uma moratória de três dias e “reflexão”? Por que é que no fundo de si própria suplicou ao teu analista que lhe concedesse essa moratória? E sobretudo, sobretudo, que teria acontecido se a carta-expresso do teu analista, metida no correio na sexta-feira 14 às 16 horas e pedindo a Hélène que lhe telefonasse com a máxima urgência, para provocar a hospitalização imediata apesar do pedido de adiamento dela, tivesse chegado à Ecole não na segunda-feira 17, depois do drama, mas digamos que na noite de 14 ou no sábado de manhã, dia 15 às nove horas? Provavelmente o atraso não se deve aos correios. Mas o porteiro da Escola, que recebe o correio, cartas e pneumáticos, não conseguiu evidentemente falar contigo pelo telefone interno nem fazer com que lhe abrisses a porta tocando à campainha, porque havia pelo menos dez dias — todos os teus amigos o testemunharam (incluindo aqueles que gostariam de ter “forçado a tua porta”) que tu não respondias nem ao telefone, nem a campainha da porta? Se por milagre ou exceção tivesses atendido o telefone ou aberto a porta, Hélène teria recebido a carta-expresso do teu analista e, se o quisesse, teria podido ligar para o teu analista: evidentemente e sem contestação possível, tudo teria sido diferente.

«No vosso drama, o imponderável objetivo e não fantasmático está presente do princípio até ao fim, até ao último momento.

«Tudo o que se pode dizer é que, se desprezarmos estes numerosos imponderáveis — mas como abstrair deles? —, Hélène tenha aceitado a morte sem fazer um gesto para a impedir e se defender dela, como se desejasse a morte, ou recebê-la das tuas próprias mãos.

«O que também se pode dizer é que tu, que lhe deste sem dúvida a morte talvez querendo apenas massajá-la com cuidado, uma vez que não se observou qualquer sinal externo de estrangulamento, terás querido realizar o teu desejo de morte e, ao mesmo tempo que lhe prestavas o imenso serviço de a matar em lugar dela (porque ela era realmente incapaz de se matar), terás ao mesmo tempo querido realizar inconscientemente o teu próprio desejo de autodestruição através da morte da pessoa que mais acreditava em ti, para ficares bem certo de não seres senão essa personagem de artifícios e de imposturas que sempre te obsidiou. De fato a melhor prova que podemos dar-nos de não existir é destruirmo-nos a nós próprios destruindo aquela que nos ama e acima de tudo acredita na nossa existência.

«Sei que há-de haver sempre pessoas, e até amigos, que dirão: a Hélène era a doença dele, ele matou a sua doença. Ele matou-a porque ela lhe tornava a vida impossível. Ele matou-a porque a odiava, etc. Ou, mais elaboradamente ele matou-a porque vivia no fantasma da sua própria autodestruição e porque essa autodestruição passava “logicamente” pela destruição da sua obra, da sua celebridade, do seu analista, e por fim de Hélène que resumia toda a sua vida.

«Ora o que é extremamente incômodo neste tipo de raciocínio (muito difundido porque muito tranquilizador — com ele temos de fato uma “causa” indubitável) é o porquê que introduz nisto uma necessidade sem apelo, sem levar minimamente em conta a acumulação dos elementos aleatórios objetivos.

«Ora todos nós temos, todos nós, fantasmas inconscientes agressivos, ou mesmo de homicídio, de assassínio. Se todos os que alimentam dentro de si tais fantasmas passassem ao ato, tornar-nos-íamos todos, necessariamente percebes?, todos assassinos. Ora a imensa maioria das pessoas pode perfeitamente viver com os seus fantasmas incluindo os de homicídio, sem nunca passar ao ato para os realizar.

«Aqueles que dizem: ele matou-a porque já não podia suportá-la, porque mesmo inconscientemente, desejava desembaraçar-se dela, não compreendera nada do que se passou,  ou não se dão conta do que dizem. Se aplicassem a si próprios esta lógica, eles que alimentam a mesma lógica também neles próprios, fantasmas de agressão e de assassínio (e quem não os alimenta?), que afinal de contas é a da premeditação do inconsciente, estariam todos não no hospital psiquiátrico, mas na prisão e há muito tempo.

«Bem vês, tanto na história de um indivíduo como na história de um povo, já Sófocles dizia e muito bem, não há verdade definitiva senão na morte vista retrospectivamente, quer dizer, num fim irremediável, ao qual já ninguém, e em primeiro lugar o morto, pode mudar nada. E é esta travagem da morte que constitui a retrospectividade a partir da qual se pode decidir (caso de Sófocles) se a pessoa que morreu foi feliz ou não e, no caso de Hélène, aquilo que “causou” a sua morte.

«Ora, na vida, as coisas não se passam assim. Pode morrer-se de um simples acidente, sem que nenhum “desejo se realize com isso”. Mas quando há “desejo” ou se desconfia da sua presença, encontramos uma quantidade de pessoas que, retrospectivamente — e precisam de o fazer porque tem não só que compreender mas que defender a sua ideia para se protegerem a si próprios, protegerem o seu amigo, ou acusar um terceiro, por exemplo certo médico que não teria feito tudo o que se impunha do lado de fora, um lado de fora “supostamente objetivo”, “evidente” — uma quantidade de pessoas que “retrospectivamente”, na retrospectividade do fato consumado e irresistível, fabricam uma “retrospectividade” do fantasma assassino do qual fazem então a “causa” do assassínio, ou até a sua premeditação inconsciente: premeditação, termo carregado de sentido, porque significa em suma previsão e ordenação inconsciente do dispositivo do assassínio na perspectiva inconsciente da passagem ao ato assassino.

«Ora confundem, estes amigos excessivamente bem intencionados em relação ao seu amigo e — ou — a si próprios, a retrospectividade factual e irreversível da vida sem mais, e a retrospectividade da vida psíquica, a retrospectividade do sentido. No primeiro caso, é verdade que para todas as pessoas e para todos os amigos, eles precisam de fato de compor a retrospectividade pessoal que melhor lhes serve (não digo de maneira nenhuma esta palavra numa acepção pejorativa) e lhes permite quer suportar o choque do drama, quer enfrentá-lo publicamente. Mas cada um ou quase tem a sua interpretação, que não deixa de deteriorar as suas relações com o seu amigo assassino e mesmo as suas relações uns com os outros. E agarram-se com unhas e dentes à sua retrospectividade pessoal, em torno da qual constroem a figura de uma personagem assassina e receiam mais ou menos surdamente que a dita personagem venha um dia a desmentir ou a corrigir a interpretação deles pela sua. É nesse sentido que o teu médico tinha razão ao dizer-te que mesmo as tuas explicações podiam, tal como a ausência de explicações da tua parte, fazer-te correr o risco de afastar de ti amigos muito chegados. De todo o coração, espero que isso não aconteça, mas também a esse respeito nada se deixa prever com segurança.

«Na retrospectividade da interpretação interna as coisas não são de maneira nenhuma assim. Primeiro porque ela se exerce na própria vida do paciente. Mas também e sobretudo porque nunca existe fantasma “unívoco” mas fantasmas sempre ambivalentes. O desejo de matar, por exemplo, ou , se autodestruir e destruir tudo à sua volta, é sempre acompanhado por um imenso desejo de amar e ser amado apesar de tudo, de um imenso desejo , fusão com o outro e portanto de salvação do outro. O que me parece, quando te leio, extremamente nítido no teu caso. Como se poderá pretender então fazer sequer da determinação “causal’’ de um fantasma sem invocar ao mesmo tempo a outra determinação “causal”, a da ambivalência, a que se dá no próprio fantasma como o desejo radicalmente oposto ao desejo assassino do fantasma, o desejo da vida, de amor e de salvação? Na verdade, não se trata nem de determinação causal, mas de aparecimento de um sentido ambivalente, unidade dilacerada do desejo, que não se realiza então, na total ambivalência da sua ambiguidade, senão na “ocasião” exterior que lhe permite “pegar”, como tu dizes de Maquiavel. Mas este “pegar’’, ele próprio, que depende terrivelmente de circunstâncias aleatórias (a carta do teu analista que não chega às mãos de Hélène, a total ausência de defesa por parte de Hélène, a vossa solidão a dois igualmente — se tivesses qualquer outra pessoa ao teu alcance, o teria acontecido? — e assim por diante), não pode ter lugar na realidade objetiva a não ser em condições altamente aleatórias. Os que pretendem possuir explicação causal não percebem nada de ambivalência dos fantasmas e, o sentido interno, na vida e não na retrospectividade definitiva da morte, nada percebem também do papel das circunstâncias exteriores objetivas aleatórias que permitem ou o “pegar” fatal, ou (e trata-se da muito grande imensa maioria estatística dos casos) escapar-lhe.

«Na verdade, para compreender o incompreensível, é preciso ao mesmo tempo levar em conta imponderáveis aleatórios (muito numerosos no teu caso) mas também a ambivalência dos fantasmas, que abre caminho a todos os contrários possíveis.

«Penso que assim estão todas as cartas na mesa. Bastavam algumas de entre elas, as mais óbvias para qualquer observador, para seres declarado não responsável pelo teu ato, no momento em que o cometeste.

«Dito isto, não podes impedir ninguém de pensar de outro modo. Mas o essencial é que te tenhas explicado claramente e publicamente por tua conta. Os outros, melhor instruídos se possível, que façam, se ainda o quiserem, mais uma religião.

«Em todo o caso, eu interpreto a tua explicação pública como uma reconquista de ti próprio no teu luto e na tua vida. Como diziam os nossos antigos, é um actus essendi, um ato de ser.»

Só uma palavra mais: que aqueles que pensam saber e dizer mais a este respeito não receiem dizê-lo. Já não podem senão ajudar-me a viver.

L. A.

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O Futuro é Muito Tempo [20]

Louis Althusser, O futuro é muito tempo, Edições Asa, 1992.

Foi nesta altura que compreendi que o médico não tinha um poder absoluto sobre os seus enfermeiros, que tinha que negociar com eles, ou mesmo fechar os olhos (nunca consegui que me dessem a minha droga da noite a horas, exceto uma vez quando um jovem estudante de medicina muito amável ficou no turno da noite, mas não foi por muito tempo). Cheguei mesmo a pensar, o que era um exagero, que neste serviço, apesar de muito liberal e bem organizado, e sem dúvida a fortiori noutros serviços, menos «avançados», com enfermeiros menos informados, o médico estava com frequência subordinado «à ditadura do corpo dos enfermeiros». Ainda que esta impressão deva ser matizada, acho que contém algo de essencial para a compreensão das relações e da atmosfera que reinam em qualquer regime de encerramento psiquiátrico, e com que efeitos perniciosos!

[…]

Mas acontecia-me muitas vezes ir ter a seguir com uma enfermeira para lhe pôr a seguinte pergunta: «Mas o doutor sabe o que está a fazer? Sabe o que está a dizer? » De novo a dúvida me invadia, e também a angústia: de fato a angústia de estar só, uma vez mais, como sempre, abandonado.

p. 280

O meu analista vinha ver-me uma vez por semana, aos domingos de manhã, ao pavilhão quase sem vivalma (só ficava no seu posto uma vigilante de urgência). Andava sempre às voltas com ele, mas sem nunca me sentir culpado, em torno da razão profunda do meu assassínio. Lembro-me (já a formulara diante dele em Sainte-Anne) de lhe ter apresentado uma hipótese: o assassínio de Hélène teria sido «um suicídio por pessoa interposta». Ele ouvia-me sem me aprovar nem desaprovar. Soube mais tarde pelo meu médico que o meu analista se encontrava periodicamente com ele e o apoiava. Já uma vez, quando eu fora admitido nos serviços de reanimação de Sainte-Anne, o meu analista, que conseguira, à custa de negociações incríveis, visitar-me no serviço de cuidados intensivos e falar com o especialista que me tratava, julgara seriamente que era o fim, que eu não sobreviveria fisicamente à provação. Foi o único momento em que duvidou da minha sobrevivência. Mas, no caso de eu sobreviver, ele nunca pôs em causa a minha cura psíquica. Quando o meu médico se sentia demasiado inquieto com a minha sorte (o que por vezes aconteceu), o meu analista apoiava-o na ideia de que eu acabaria por melhorar — e nunca cedeu. Sem ele o meu médico ter-se-ia talvez (?) resignado definitivamente, e eu poderia ter-me transformado num desses «crônicos» cuja miséria vitalícia me era dado observar entre os que me rodeavam de perto.

p. 280-281

Cheguei a conhecer em Soisy um período de excitação, fui por dois meses para o meu apartamento e, quase sem dormir como em todos os estados maníacos por que antes passara, bati à máquina (entre Novembro de 1982 e Fevereiro de 1983) um manuscrito filosófico de duzentas páginas, que ainda conservo. Não é nada delirante, apenas extremamente descosido. Para dizer a verdade, exprimia nele pela primeira vez um certo número de ideias que guardava cuidadosamente na cabeça havia mais de vinte anos, sem as confiar a ninguém, tão importantes me pareciam (!), e que reservava para uma publicação futura, no dia em que tivessem amadurecido. Fique o leitor descansado: ainda não estão maduras.

[…]

Mas por que era eu tão exigente, tão tirânico (sim, no sentido próprio) em matéria de visitas? Sem dúvida por causa da «onipotência da depressão», e também porque podia exercer essa «onipotência» para pôr provisoriamente fim à angústia da solidão, do abandono, que me sufocava tão intensamente. Quando alguém faltava, quando acontecia que um amigo ou uma amiga me desse a impressão de um abandono, recaía numa forma de depressão agravada.

Tinha um medo atroz do mundo exterior.

Não só pensava que nunca mais poderia sair do hospital e ter de novo acesso ao mundo exterior, como, ainda que lhe conseguisse ter acesso, não poderia entrar no meu apartamento. Decidiu-se que eu iria lá dar uma olhadela. Um enfermeiro de quem eu gostava muito levou-me lá um dia na carrinha do hospital. Fiquei aterrado ao avistar o amontoado dos caixotes até ao teto e recusei-me a entrar. Levei comigo esse terror que então não deixaria de me atormentar, não sob a forma vazia do possível, mas sob uma forma terrivelmente concreta. Decididamente, estava lixado.

p. 281-283

Mas não fui capaz de encontrar nenhum dos livros que queria; portanto tinha que me pôr a arrumá-los, e como realizar essa tarefa infinita? Tinha milhares de livros dos quais só lera algumas centenas, adiando a sua leitura (imaginária) para tempos melhores. Fiquei de novo cheio de terror. Mas a prova de que é possível viver na companhia de livros desarrumados é de fato que, até hoje, ainda não consegui arrumá-los de maneira a saber onde estão, exceto uns tantos, e bem vistas as coisas não me dou nada mal com essa barafunda. Mais uma prova de que tudo «acontece na cabeça».

p. 283

Mas isto não era ainda o pior. E aqui chego a qualquer coisa que é ao mesmo tempo terrivelmente determinada mas também extremamente singular. Certamente, vivi a minha hospitalização como sempre vivera as minhas hospitalizações anteriores: como um refúgio quase absoluto contra as angústias do mundo exterior. Estava ali como numa fortaleza, fechado na sua solidão por muros insondáveis: os da minha angústia, e como sair deles? O meu médico sentia-o muito bem e, compreendendo, entrava assim no meu jogo: no jogo da minha angústia, e ficava ele próprio, por contágio, angustiado, tal como os enfermeiros a quem eu não parava de comunicar a minha angústia. Lembro-me até de um dia em que fiz ao meu médico a terrível pergunta pensando muito precisamente numa amiga cuja base do pescoço contemplara um dia com pavor interrogando-me com angústia: e se eu recomeçasse (a estrangular uma mulher)? O meu médico sossegara-me: claro que não!, sem me dar mais nenhuma razão. Mas soube mais tarde que as enfermeiras tinham medo, depois do cair da noite, de entrar sozinhas no meu quarto, medo de que eu me atirasse a elas e as estrangulasse… como se tivessem «captado» o meu terrível desejo envolvido em angústia. (…) Como é que o médico pode então escapar a este jogo de angústias múltiplas, em que ele é ao mesmo tempo causa e consequência? Condição extraordinariamente difícil, que só se pode resolver por meio de compromissos. O meu médico soube descobri-los, mas não sem efeitos secundários.

Creio poder situar exatamente o lugar do principal destes efeitos secundários: diz respeito à «natureza» ao mesmo tempo objetiva e fantasmática da «fortaleza» que eu vivia como proteção e refúgio contra a angústia do contato impossível com o mundo exterior. Ora esse mundo exterior não existia apenas no meu fantasma: era-me de fato trazido todos os dias pelos meus amigos que chegavam do mundo exterior e a ele voltavam todos os dias. Vou dar um único exemplo: Foucault veio pessoalmente visitar-me duas vezes, e lembro-me que em duas ocasiões falamos de tudo o que se passava a no mundo intelectual, como eu fazia praticamente com todos os meus amigos, das personagens que o povoam, dos seus projetos, obras e conflitos, da situação política. Eu era então perfeitamente «normal», estava perfeitamente ao corrente de tudo, as minhas ideias voltavam, devolvia por vezes com malícia a bola a Foucault, que voltou para casa convencido de que eu estava bastante bem. Noutra ocasião, quando ele me foi ver, eu estava na companhia do padre Breton. Instaurou-se então entre eles, sob a minha própria arbitragem e égide, uma extraordinária troca de ideias e de experiências que nunca na minha vida esquecerei. Foucault falava das suas investigações sobre os «valores» do cristianismo do século IV, e fazia a seguinte observação da maior importância: se a Igreja colocara sempre muito alto o amor, desconfiara sempre vivamente da amizade, que os filósofos clássicos e sobretudo Epicuro colocaram pelo contrário no centro da sua ética concreta. Naturalmente ele, homossexual, não podia [deixar de| aproximar a repulsa da Igreja pela amizade da repulsa, quer dizer (outra ambivalência ainda), da predileção de todo o aparelho da igreja e da vida monástica pela homossexualidade. Foi então que, de maneira assombrosa, o padre Breton interveio, não para lhe dar referências teológicas, mas para lhe comunicar a sua experiência pessoal. Tendo nascido sem conhecer os pais, recolhido pelo padre que, notando a sua vivacidade de espírito, o inscrevera no seminário de Agen, tinha feito ali uma parte dos seus estudos secundários. Entrou aos quinze anos no noviciado, levando por lá a vida cheia da austeridade de um monge — impessoalidade sem mim (não sendo Cristo uma pessoa, mas um impessoal subsumido no Verbo), vida composta de observâncias estritas. Por obediência, esquecia o seu eu [no| superior: «a regra pensava por nós e é porque pensaram por nós que todo o pensamento pessoal se torna um pecado de orgulho». Só mais tarde, dada a evolução dos costumes, se procurou respeitar um bocadinho mais, a favor daquilo a que se chamara o personalismo cristão, a originalidade de cada um, mas ainda assim uma medida limitadíssima! Neste sentido, Breton, retomando uma expressão de Foucault, dizia que «o homem era uma descoberta muito recente nos conventos» Breton não teve um único amigo na sua vida, continuando a amizade a ser suspeita por degenerar em amizade particular, forma larvar de homossexualidade: existia efetivamente na Igreja uma atração recalcada pela homossexualidade, que se explica pela exclusão das mulheres. Nunca se teria insistido tanto no perigo das amizades particulares se a homossexualidade não tivesse sido um perigo e uma tentação constante. As amizades particulares eram a obsessão dos superiores, o terror de um mal espalhado por toda a parte. Além disso existiam tantos casos de padres, de santos até, que sentiam horror pelas mulheres, de onde o seu instinto de pureza, porque a mulher é um ser sujo, numerosos padres julgavam recusar a impureza recusando a mulher e «compensando-se com o rapaz». Como esse padre cheio de santidade que cumpria fielmente todas as observâncias, dizia a sua missa, e que tinha um pequeno acólito delicioso que um dia depois da missa chamou à sacristia, para lhe abrir a braguilha e cortar alguns pelos do púbis guardando-os numa espécie de relicário (cápsula onde se punha a hóstia). A amizade nestes casos é sempre suspeita e compreendia-se o que Foucault dizia. O amor era uma maneira de fugir da amizade, sobretudo no sentido mais lato do termo, quando se dirige tanto ao mais distante como ao mais próximo.

p. 284-286

Publicado em Autobiografias, Ciência Política, Estudos Culturais, Estudos de Gênero, Filosofia, Literatura, Marxismo, Marxismo, Psicanálise, Psicologia, Psiquiatria, Sociologia, Teoria Política

O Futuro é Muito Tempo [19]

Louis Althusser, O futuro é muito tempo, Edições Asa, 1992.

Foi então que Hélène e eu conhecemos as piores provações da nossa vida. (…) Não sei que regime de vida impunha a Hélène (e sei que posso ter sido capaz do pior), mas ela declarou com uma resolução que me apavorou que já não era capaz de viver comigo, que eu era para ela um monstro e que queria deixar-me para sempre. (…)

(…) Então Hélène começou a desenvolver um outro tema, latente nela havia meses, mas que desta feita assumiu uma forma medonha. Declarou-me que não tinha outra solução, dado o monstro que eu era e o sofrimento inumano que lhe impunha, a não ser matar-se. Ostensivamente, juntava e exibia as drogas necessárias para o seu suicídio, mas falava também de outros meios, incontroláveis: o nosso amigo Nikos Poulantzas não se suicidara recentemente atirando-se, numa crise aguda de perseguição, do alto do vigésimo segundo andar da torre de Montparnasse? Outro atirando-se para debaixo de um caminhão pesado, e um terceiro para debaixo de um comboio? Citava-me estes meios, como se me desse a escolher entre eles. E asseverava-me com a força de uma convicção, e sobretudo num tom que eu conhecia demasiado bem para poder duvidar seriamente dela que aquilo não eram palavras ditas no ar mas uma decisão irrevogável. Simplesmente, escolheria quer o seu meio, quer a sua hora, evidentemente que sem me prevenir.

(…) O cúmulo aconteceu um dia em que ela me pediu muito simplesmente que a matasse eu próprio, e essas palavras, impensáveis e intoleráveis no seu horror, fizeram estremecer todo o meu ser. Ainda hoje me fazem estremecer. Quereria ela assim comunicar-me de certo modo que era de fato incapaz de me abandonar, mas também de se matar pela sua própria mão? (…)

No entanto o meu analista interviera. Devo-o ter visto pela última vez no dia 15 de Novembro, e ele disse-me que aquela situação não podia continuar, que eu tinha que aceitar ser hospitalizado. (…) Ele telefonara para o Vésinet, e eu poderia lá ser recebido dentro de dois ou três dias. Penso que disse que não, mas seja como for não me lembro do que respondi ao certo.

Os dois ou três dias passaram, nada aconteceu. Soube mais tarde que na quinta-feira dia 13 e na sexta-feira dia 14 de Novembro, Hélène esteve com o meu analista e que lhe implorou um prazo de três dias antes de qualquer hospitalização. O meu analista deve ter sem dúvida cedido à sua súplica, e ficou assente que, salvo novidade, eu entraria no Vésinet na segunda-feira dia 17 de Novembro. (…)

No domingo 16 de Novembro às nove horas, saindo de uma noite impenetrável e onde nunca pude mais tarde penetrar, achava-me aos pés da minha cama, em roupão, com Hélène estendida diante de mim e eu continuava a lhe massagear o pescoço, com a impressão intensa de ter os antebraços muito doridos: evidentemente por causa da massagem. Depois compreendi, não sei como, talvez pela imobilidade dos olhos dela e por uma pobre ponta de língua entre os dentes e os lábios, que ela estava morta. Precipitei-me, aos gritos, do nosso apartamento para a enfermaria, onde sabia que ia encontrar o dr. Étienne. O destino abatera-se.

p. 264-267

Eu era então muito conhecido, normalien, filósofo, marxista e comunista, casado com uma mulher pouco conhecida mas aparentemente notável. No seu conjunto, a imprensa francesa (e internacional) foi corretíssima. Mas certos jornais saciaram-se alegremente: não citarei os seus nomes nem as assinaturas por vezes célebres que deram cobertura a artigos ao mesmo tempo malevolentes e delirantes. Cinco temas foram neles desenvolvidos pelos seus autores com uma manifesta complacência satisfeita: a complacência de uma desforra política a que o «crime» proporcionava finalmente ocasião de acertar velhas contas, não só com a minha pessoa, mas com o marxismo, o comunismo e… a filosofia, para já não falar da École Normale. (…) No que foi publicado em França e no estrangeiro, puderam com efeito ler-se artigos sobre os temas seguintes: 1) marxismo = crime: 2) comunismo = crime; 3) filosofia = loucura; 4) o escândalo de que um louco, há muito louco, tenha podido ensinar na Normale ao longo de mais de trinta anos gerações de filósofos que encontramos por toda a parte nos liceus, encarregados dos «nossos filhos»; e 5) o escândalo de que um indivíduo criminoso tenha podido beneficiar da proteção aberta do «establishment»: pense-se na sorte que sofreria um simples argelino que estivesse na sua situação, atreveu-se mesmo a sugerir um jornal «centrista». Althusser escapou a essa sorte graças às «altas proteções» de que goza: o establishment da Universidade e dos intelectuais de toda a casta formaram automaticamente um bloco para fazerem o silêncio à sua volta e para protegerem um dos seus dos rigores da «regra», ou talvez mesmo da lei. Em suma, eu fora protegido pelo AlE do ensino de que era membro.

p. 269-270

Mais tarde soube que, dois dias a seguir ao meu internamento, o juiz de instrução encarregado do caso estivera, segundo as regras, em Sainte-Anne, para me interrogar, mas ao que parece eu estava então num estado tal que ele não conseguiu arrancar-me qualquer declaração.

Não sei se me administraram antidepressivos (além dos imaos) em Sainte-Anne. Só me lembro de ter, todas as noites, ingurgitado enormes doses de cloral, esse velho medicamento que continua eficaz, e que me fazia, para minha grande satisfação, dormir tão bem (…). Mas este prolongamento do sono era-me agradável, tudo o que possa servir para escapar ao brutal retorno da angústia é bem-vindo. Em contrapartida, sei que me administraram uma dúzia de choques: portanto devia estar muito deprimido. Naturalmente choques com narcose e curare, como tinha recebido na Vallée-aux-Loups, e noutras ocasiões até no Vésinet, antes da descoberta dos imaos. Ainda estou a ver o jovem médico de cara rosada que acompanhava a «máquina» elétrica até ao meu quarto e, antes de passar à ação, me dirigia longos e, se assim posso dizer, joviais discursos sobre os choques e as suas vantagens. Assim entrava na «pequena morte» sem demasiada apreensão, apesar de manter por ela o antigo horror.

p. 272

A loucura, o hospital psiquiátrico, o internamento podem assustar certos homens ou mulheres, que não conseguem abordar ou enfrentar essa ideia sem uma grande angústia interior, que pode chegar a impedi-los quer de visitar o amigo, quer de intervir seja no que for. A este propósito, não posso deixar de evocar o heroísmo do nosso querido Nikos Poulantzas, que tinha um terror medonho de qualquer hospital psiquiátrico, e que contudo me visitou sempre regularmente por altura dos meus internamentos, e sempre me animou, quando devia torcer-se por dentro de angústia, coisa que só muito tarde eu soube. E lembro-me até de que ele foi quase o único que eu aceitava receber, no ano que precedeu a morte de Hélène. Eu não sabia então que ele já uma vez tentara matar-se, história que contava como se se tratasse de um mero acidente, durante a noite, numa grande avenida um caminhão pesado colhera-o de lado… na realidade fora ele que se atirara para debaixo das rodas, revelar-me-ia a sua companheira. Ora estive com Nikos não em minha casa, mas na rua perto da École. Soube depois que ele sofria já da terrível crise de perseguição a que poria fim por meio de um suicídio espetacular.

p. 273

Depois do que vivi, acho-me capaz de compreender tudo, mesmo aqueles que, a certa altura, pareceram afastar-se sem apresentarem as suas razões. Mas além deste encontro espantoso com Nikos, a visita que mais me comoveu nesta ordem de ideias, recebi-a um dia em Soisy: um dos meus «antigos alunos» que se tornara um amigo muito querido, um homem extraordinário, veio ver-me. Pediu-me para não dizer nada mas para o escutar. Durante duas horas, só me falou de si próprio, da sua infância terrível, do pai que andara pelos hospitais psiquiátricos, e acabou por me dizer: vim ver-te para te explicar por que é que, é mais forte do que eu, não posso vir ver-te. Um ano mais tarde, em análise, preparou demoradamente um suicídio cujo projeto nunca confiara a ninguém, nem sequer à corajosa jovem com quem vivia e trabalhava, e deitou-se às águas do Larne, com as veias abertas e pesadas pedras a servirem-lhe de lastro.

p. 274

Publicado em Autobiografias, Ciência Política, Estudos Culturais, Estudos de Gênero, Filosofia, História, Literatura, Marxismo, Marxismo, Psicanálise, Psicologia, Psiquiatria, Sociologia, Teoria Política

O Futuro é Muito Tempo [18]

Louis Althusser, O futuro é muito tempo, Edições Asa, 1992.

Gostaria apenas de dizer aqui que o que de mais precioso achei em Spinoza foi a natureza do «conhecimento do terceiro gênero», o de um caso ao mesmo tempo singular e universal (…). Que o meu «caso» tenha sido um «caso» desta ordem, como todo o «caso médico», «histórico» ou «analítico», obriga a que ele seja reconhecido e tratado na sua singularidade; mas que esse caso singular seja universal, é o que ressalta das constantes repetidas (e não das leis verificáveis-falsificáveis à maneira de Popper) que afloram em cada caso e permitem induzir o tratamento teórico e prático de outros casos singulares. Maquiavel e Marx não procedem de outro modo, numa lógica que passou quase despercebida e que será necessário desenvolver.

O que devo também direta e pessoalmente a Spinoza é a sua espantosa concepção do corpo, que possui «potências desconhecidas por nós», e da mens (o espírito) que é tanto mais livre quanto mais o corpo desenvolve os movimentos do seu conatus, a sua virtus ou fortitudo. Spinoza oferecia-me assim uma ideia do pensamento que é pensamento do corpo, ou melhor, pensamento com o corpo, ou melhor, pensamento do próprio corpo. Esta intuição concordava com a minha experiência de apropriação e de «recomposição» do meu corpo em ligação direta com o desenvolvimento do meu pensamento e dos meus interesses intelectuais.

O que devo a Maquiavel é a ideia-limite perfeitamente assombrosa de que a fortuna na sua essência não é mais do que vazio, e por excelência o vazio interno do Príncipe, o que coloca em primeiro plano no equilíbrio e no jogo das suas paixões o papel da raposa, que permite justamente introduzir entre o sujeito-Príncipe e as suas paixões uma distância onde o ser deve poder aparecer como o não-ser e o não-ser como o ser. Esta concepção assombrosa, por pouco que a explicitemos, concorda de fato com a experiência analítica mais profunda, a da tomada de distância perante as próprias paixões, digamos mais exatamente perante a própria contratransferência. O que li em Spinoza e Maquiavel, vivera-o eu concretamente e foi sem dúvida por isso que me interessou tanto «redescobri-lo» neles. Porque no fundo, o que proclamava Maquiavel senão, muito antes de Tchernitchevski e de Lênin, o problema e a pergunta: que fazer? E que nos indicava já Maquiavel, senão o fato capital de, sob a própria figura do Príncipe, os partidos políticos, entre os quais o PCF serem partes integrantes do aparelho ideológico de Estado, o aparelho político ideológico constitucional parlamentar, com tudo o que isso implica na formação ideológica das massas populares que votam e «acreditam», com a ajuda do Partido, no sufrágio universal? É verdade que não há sufrágio universal para Maquiavel, mas há o aparelho ideológico de Estado do tempo, aquele que é constituído pela imagem pública-popular da personagem do Príncipe. Pequena diferença apenas, mas cujo estudo atento é extremamente instrutivo até para os nossos partidos, e antes de mais para os PC que visam, como Gramsci tão bem compreendeu, a hegemonia ideológica, via de acesso à tomada pura e simples do aparelho de Estado — não através do seu cerco pela chamada «sociedade civil», mas através de uma luta monolítica direta das organizações políticas operárias contra o próprio aparelho de Estado.

p. 254-255

Do lado de Hélène, com toda a certeza: as suas entrevistas com o meu analista tinham alcançado nela resultados manifestos aos olhos de todos. Ela estava infinitamente mais paciente, menos cortante, controlava muito melhor as suas reações no trabalho e, só por isso, arranjara por lá amigos que a estimavam e dela gostavam deveras, referindo-se a ela como a uma personalidade de exceção que transformara, pelo seu conhecimento e compreensão dos mecanismos sociais, políticos e ideológicos, os próprios métodos dos inquéritos sociológicos que eram uma das especialidades da casa, a Sedes. Apurara uma modalidade original de investigação de campo que conquistara numerosos adeptos entre os seus colegas de trabalho. Já não era só eu a «mostrar-lhe» os meus amigos, era ela quem me convidava para cada dos dela.

p. 256

Pelo meu lado, as coisas estavam também a melhorar. É verdade que — e sem saber ao certo por que — tinha cada vez mais dificuldade em dar aulas, esforçando-me com tenacidade, mas sem grande efeito. Entrincheirava-me na correção das dissertações e das exposições dos alunos, que para eles comentava em privado, e em certas intervenções pontuais sobre este ou aquele ponto da história da filosofia. Mas as minhas relações com as minhas amigas mulheres tinham mudado seriamente.

p. 257

Refletindo acerca dos limites estreitos em que tínhamos trabalhado sobre Marx e o marxismo, e para extrair da minha autocrítica antiteoricista as suas consequências práticas, propus a constituição de um grupo de pesquisa para estudar não já uma teoria social ou política dada, mas para reunir elementos amplamente comparativos sobre o tema da relação material aleatória entre por um lado os «movimentos populares» e por outro lado as ideologias que eles se tinham atribuído ou investido, e por fim as doutrinas teóricas que os tinham coroado. Vê-se por aqui que tencionava propor um trabalho de investigação sobre a relação concreta entre o aspecto prático dos movimentos populares e a sua relação (direta, indireta, perversa?) com as ideologias e as doutrinas teóricas que lhes tinham estado ou continuam a estar associadas no decorrer da história. (…) Consegui o apoio da direção da École que me concedeu alguns fundos e a promessa de mais apoios por parte do ministério; obtive o acordo de uma boa centena de historiadores, sociólogos, politólogos, economistas, epistemólogos e filósofos de todas as competências e tendências, promovi na École, em Março de 1980, uma reunião inaugural e diversos grupos começaram a trabalhar. Intencionalmente, queríamos trabalhar sobre «casos» tão diversos como o movimento operário ocidental, o Islão, a China, o cristianismo, os campesinatos, para chegarmos, se possível, a resultados comparativos.

p. 258-259

É preciso compreender em que estado se encontraria Hélène. Durante anos, tivera que suportar o peso e a angústia das minhas depressões e dos meus estados hipomaníacos, não só das minhas depressões mas, o que era ainda infinitamente mais duro, os intermináveis meses (ou semanas) que eu vivia, numa angústia crescente, lutando e recorrendo constantemente a ela, antes de me decidir pela hospitalização. Quando estava hospitalizado, ela vivia na solidão, tendo por único fito ir visitar-me, praticamente todos os dias, e voltando sozinha para uma casa vazia, a sós com a sua angústia (…) E, como sabia que eu estava exposto a recaídas, vivia os intervalos de melhoras como a expectativa repetida da recaída, sobretudo quando eu me achava em estado de hipomania sendo então realmente intolerável para ela de tal maneira as minhas provocações e as minhas agressões ininterruptas eram ofensivas, quase mortais. Isto ela vivia-o sozinha e, indiferença ou falta de tato ou qualquer outra razão, ninguém, com raras exceções, entre os meus amigos a levava aparentemente ou deveras em linha de conta.

p. 261

Depois da morte de Hélène. o meu analista confiou-me uma hipótese que não fora ele a formular, mas recolhera da boca do dr. Bertrand Veil, que eu consultara outrora por complicações aparentemente de natureza orgânica, e que possuía uma vastíssima cultura médica e também biológica. Esse médico pensava que a minha operação, ou seja antes do mais a minha anestesia profunda, teria podido provocar em mim um «choque biológico» cujo mecanismo, que poupo ao leitor, me foi mais tarde explicado em pormenor (em jogo estar a sobretudo o metabolismo das drogas pelo fígado): ter-se-ia tratado de uma grave perturbação dos meus «equilíbrios biológicos», provocada pelo choque operatório e sobretudo pelo choque anestésico, acarretando efeitos invertidos e paradoxais.

Seja como for, entrei num estado de semiconsciência, por vezes mesmo de inconsciência total e de confusão mental. Já não dominava os movimentos do meu corpo, caía constantemente, vomitava a todo o momento, deixara de ver com nitidez, urinava de maneira desordenada; deixara de dominar a minha linguagem, trocando uma palavra por outra, as minhas percepções, que não era capaz nem de acompanhar nem de articular, nem a fortiori a minha escrita, e apresentava formas de discurso delirantes. Além disso, não parava de viver à noite pesadelos atrozes, que se prolongavam demoradamente no estado de vigília, e «vivia» os meus sonhos no estado de vigília, quer dizer, agia segundo os temas e a lógica dos meus sonhos, tomando a ilusão dos meus sonhos pela realidade, e achava-me incapaz de distinguir então em estado de vigília as minhas alucinações oníricas da simples realidade.

Todo este sistema «patológico» era acompanhado por um delírio suicidário. Condenado à morte e ameaçado de execução, só tinha um recurso: antecipar a morte infligida matando-me preventivamente. Imaginei todas as espécies de soluções mortais, e além disso queria não só destruir-me fisicamente, mas destruir também todo o rasto da minha passagem pela terra: em particular destruir até ao último os meus livros e todas as minhas notas e igualmente incendiar a École, e ainda, «se possível», suprimir, já agora, a própria Hélène.

p. 262-263

Publicado em Autobiografias, Ciência Política, Filosofia, História, Literatura, Marxismo, Marxismo, Psicanálise, Sociologia, Teoria Política

O Futuro é Muito Tempo [17]

Louis Althusser, O futuro é muito tempo, Edições Asa: 1992.

Com efeito, se nos sonhos e nas emoções, mesmo as mais dramáticas, o «sujeito» nunca tem a ver senão consigo, quer dizer, com objetos internos inconscientes a que os analistas chamam objetais (diferentemente dos objetos exteriores objetivos e reais), a questão legítima que cada um de nós se pode colocar é então a seguinte: como é que as projeções e os investimentos desses fantasmas puderam desembocar numa ação e numa obra perfeitamente objetivas (livros de filosofia, intervenções filosóficas e políticas) dotadas de alguma repercussão na realidade exterior, e logo, objetiva?

Ou para dizer a mesma coisa noutros termos, muito mais precisos, como é que o encontro entre o investimento ambivalente do objetal fantasmático interno (objetal) pôde ter preensão sobre a realidade objetiva (…)?

p. 240

Gostaria antes do mais de me explicar acerca de um ponto, ao qual o meu amigo Jacques Rancière consagrou um livrinho extremamente penetrante (La Leçon d’Althusser). Aquilo de que ele me acusa, a traços largos, é de ter continuado no interior do Partido comunista apesar dos desacordos explícitos e de ter assim impelido, ou encorajado, numerosos jovens intelectuais, em França e no estrangeiro, a não romperem com o Partido, mas a continuarem lá dentro.

Que esta acusação e esta atitude possam referir-se aos próprios «objetos» internos de Rancière, que estava pessoalmente muito próximo de mim no começo das nossas relações, é verossímil (…) É verdade que ele extraíra muito rapidamente a conclusão da minha «contradição objetiva» saindo do Partido, não para trair a causa da classe operária, mas muito pelo contrário para partir em busca dos seus sonhos, reações e projetos inaugurais, consagrando duas obras notáveis às expressões populares das primeiras formas do movimento operário. (…)

[…]

Em primeiro lugar tive a prova concreta, e de que força!, de que os meus «discípulos» mais chegados, os meus alunos da École, sob a assombrosa direção de Robert Linhart (e não falo já de Régis Debray que muito cedo mas só traçou o seu caminho fora do Partido para se empenhar ao lado do Che na guerrilha boliviana), esses alunos-discípulos, depois de terem conquistado a organização das Juventudes Comunistas por dentro, a abandonaram logo a seguir (sem o meu acordo) para fundarem no exterior do partido uma nova organização, a União das Juventudes Comunistas marxistas-leninistas (UJ m-l) que conheceu uma grande expansão, se organizou em escolas e grupos de formação teóricos e políticos, e passaram à ação de massa, formando em especial os comitês Vietnã de base que tiveram antes de Maio de 68 uma ampla expansão.

O Partido era literalmente ultrapassado entre os estudantes, a tal ponto que, como talvez saibam, em Maio de 68 houve apenas um punhado, digo bem um simples punhado (tendo Cathala ficado naturalmente no seu gabinete), de estudantes comunistas presentes no imenso motim da Sorbonne.

E os rapazes da UJ m-l também lá não estavam. Por quê? Tinham adotado uma «linha» aparentemente rigorosa que foi na altura a sua perda: ir para as portas das fábricas tentar realizar a unidade dos estudantes-trabalhadores com os operários. Ora não competia a estudantes esquerdistas, mas a militantes do Partido irem pedir aos operários das fábricas que se juntassem no Quartier Latin à insurreição estudantil. Aí residia o erro fundamental de Linhart e dos seus camaradas. Os operários, com raras exceções, não apareceram na Sorbonne porque o Partido, única instância que tinha autoridade para isso, não lhes pedira que o fizessem. […] Já Lênin escrevera, como talvez alguns saibam, que no tempo do caso Dreyfus, que nunca deu lugar a motins de massa declarados nem a barricadas, a agitação teria podido abrir caminho a uma verdadeira revolução em França se o Partido Operário não se tivesse posto à margem dos acontecimentos, por Guesde considerar na cegueira do seu «classe contra classe», que o caso Dreyfus era uma questão puramente «burguesa», que de maneira nenhuma interessava à luta da classe operária.

p. 241-243

Toda a gente sabe o que se passou. O Partido, como sempre com vários comboios de atraso e aterrorizado pelos movimentos de massas argumentando que estes estavam nas mãos dos esquerdistas (mas por culpa de quem?), fez tudo o que era possível para impedir a junção, durante os combates muito violentos que ocorreram, dos grupos estudantis e do ardor das massas operárias que realizavam então a mais longa greve de massas da história mundial, chegando para isso ao ponto de organizar manifestações separadas. O Partido organizou de fato a derrota do movimento das massas forçando a CGT (que para dizer a verdade não teve que violentar, dados os laços orgânicos que mantinha com ela) a sentar-se à tranquila mesa das negociações econômicas e, não as tendo os operários da Renault aprovado, adiando-as para mais tarde, ao mesmo tempo que recusava também qualquer contato com Mendes em Charléty, numa altura em que o poder gaullista estava praticamente vacante, com os ministros a abandonar os ministérios e a burguesia a fugir das grandes cidades para o estrangeiro levando consigo os seus bens. (…) Lênin repetiu-o dez vezes, quando no topo já nada funciona e na base as massas partem ao assalto, não só a revolução está na «ordem do dia», mas a situação é efetivamente revolucionária.

Por medo das massas, por medo de perder o controle sobre elas (essa obsessão do primado das organizações sobre os movimentos populares, que continua a vigorar), e sem dúvida também para obedecer (para isso não havia necessidade de instruções explícitas!) aos medos da URSS que, na sua estratégia mundial, preferia a segurança conservadora de De Gaulle aos imprevistos de um movimento revolucionário de massas que podia (e isto não era utópico) servir de pretexto a uma intervenção política ou até militar dos EUA, ameaça a que a URSS não estava em condições de fazer frente, o Partido fez tudo o que pôde, e a experiência provou que a sua força de organização e de enquadramento político e ideológico não era então uma palavra vã para quebrar o movimento popular e para o canalizar no sentido de meras negociações econômicas, «O momento atual, a ocasião» (Lênin), que «é preciso agarrar pelos cabelos» (Maquiavel, Lênin, Trotsky, Mao) e que não pode durar mais do que algumas horas, passaram, e com eles a possibilidade de transformar em revolução o curso da história; De Gaulle, que também ele, e de que maneira!, sabia o que é a política, depois da encenação do desaparecimento, voltou a aparecer, disse algumas palavras graves solenes na televisão, decretou a dissolução da Câmara e convocou novas eleições. Tudo o que a França contava, e Deus sabe por quanto tempo!, de burguesia e pequena burguesia e campesinato conservadores ou reacionários recobrou ânimo, a seguir à manifestação fantástica dos Champs-Élysées. Fora tudo por água abaixo e a prolongada e violenta luta estudantil e a prolongada greve operária que continuou durante meses não puderam mais do que sofrer pouco a pouco a sua própria derrota numa prolongada e dolorosa retirada.

p. 243-244

Fora do Partido, fora de uma experiência algo prolongada das práticas do Partido, não se pode fazer uma ideia do Partido e não são livros anticomunistas como os de um Philippe Robrieux que, no tempo do Conselho Comunal, foi o dirigente mais estalinista de todos e o mais atroz em agitar até à minha célula os horrores das condenações do Conselho Comunal, que podem esclarecer quem quer que seja, exceto lembrando aos que por lá passaram certo número de dados que já conheciam ou de que desconfiavam. Nada substitui a experiência direta e os que não passaram por ela, se lerem os estudos, ou antes, os quase-panfletos raivosos de um jornalista obcecado e sem assunto como Robrieux, adquirirão quando muito um vago conhecimento livresco que não os marcará, se não estiverem já marcados por outras razões. Porque, no fundo, o que pode dizer esse gênero de trabalho, senão o que uns já aprenderam por dentro ou o que outros já ouviram sob formas menos precisas, sem dúvida, da imensa campanha anticomunista […]

p. 245

Ora estou convencido de que nenhuma outra organização em França, digo bem, nenhuma outra organização em França, podia então oferecer a militantes sinceros uma formação e uma experiência política práticas comparáveis às que se podiam adquirir mediante uma prolongada presença militante no Partido. […] Nunca escrevi ou fiz de outro modo campanha pública ou privada para convencer fosse quem fosse a ficar no Partido, e nunca nem publicamente nem em privado desautorizei ou condenei os que saíam ou queriam sair. Cada um deve decidir em consciência: tal era a minha regra de ação.

Não podemos levar em conta apenas a França. Para minha desgraça ou não, eu era também lido no estrangeiro e contudo em que contexto tão diferente! Quantos filósofos e políticos ou ideológicos, peço desculpa de o dizer, se reclamavam de mim e tentavam enveredar pelos caminhos semi-maoístas então rasgados pelos meus escritos críticos. Um único exemplo: uma das minhas alunas, a chilena Marta Harnecker, que esteve em Paris entre 1960 e 1965 se a minha memória me não trai, regressou à América Latina (Cuba) para aí redigir um pequeno manual de materialismo histórico. Saber-se-á que este teve uma tiragem de dez milhões de exemplares? Não era muito bom mas constituía pelo menos — à falta de melhor — a única base teórica e política de formação para centenas de milhar, senão para dezenas de milhões de militantes da América Latina, pois era ao tempo a única obra do seu gênero no continente. Ora o manual retomava à letra, ainda que com frequência as compreendesse mal, as ideias que Balibar e eu tínhamos proposto em Lire «Le Caipital».

p. 246-247

(Mao chegara até a conceder-me uma entrevista, mas por razões «políticas francesas», fiz a asneira, a maior da minha vida, de não comparecer, com medo da reação política do Partido contra mim, mas na realidade que poderia ter feito o Partido, mesmo supondo que a notícia de uma entrevista com Mao fosse objeto de um comunicado público e oficial? apesar de tudo eu não era uma grande «figura»!).

p. 247

Só talvez os que não lidavam de perto comigo e os que não frequentavam os esquerdistas, os expulsos e outros, que me conheciam apenas por intermédio deles, podiam enganar-se. E, de fato, nunca nenhum dos antigos camaradas que tinham sido expulsos do Partido ou o tinham deixado em momentos críticos me acusou de ter ficado; Rancière foi o único a censurar-me publicamente, e muitos dos meus amigos ex-comunistas ou esquerdistas deploraram abertamente na minha presença a sua tomada de posição.

[…]

Talvez não saibam que com frequência aconteceu o Partido, em disputas eleitorais, por exemplo recentemente em Antony — mas o exemplo está longe de ser único —, provocar a candidatura de um militante da CGT ou até mesmo do Partido desconhecido da população local, suscitar sob a etiqueta da extrema direita a sua candidatura para enfraquecer a própria extrema direita, dividindo-a no momento da contagem dos votos. Talvez não saibam que a «chapelada» eleitoral era moeda corrente nos municípios controlados pelo Partido? Os outros faziam o mesmo nos seus municípios.

p. 249

Que experiência, não só da prática do Partido na sua aliança com as camadas «aliadas», mas ao mesmo tempo dessas camadas em si mesmas, e sempre com a vantagem de uma comparação crítica que opunha com uma evidência gritante a imagem oficial que o Partido, na sede da sua Fortaleza de Fabien e das federações vigiadas de perto por membros do Comitê Central ou do Gabinete Político, queria dar de si, e a realidade da ideologia, das atitudes e dos comportamentos destas camadas!

p. 251

E é preciso estabelecer uma diferença considerável entre os desiludidos e ressentidos que saíram do Partido porque a sua experiência do Partido os repelira e aqueles que, sob a influência de um rumor ideológico difuso, foram desde sempre desiludidos, ressentidos e contestatários, sem nunca terem passado pelo Partido.

Um ressentido que é ressentido antes de qualquer experiência do Partido e sem possuir qualquer experiência do Partido não passa de um desiludido e de um ressentido não por experiência mas por humor, que se limita a refletir no conforto da sua consciência isolada, temperada pelos horrores do gulag incrivelmente repercutidos pelos Glucksmann, B.H. I.évy, etc., acerca de quê? acerca da vaga ideologia de que é portador, uma ideologia que lhe chega de fora e dos raros contestatários soviéticos completamente isolados do seu povo, ideologia que aceita como um dado sem a menor crítica, e que o torna incapaz de uma verdadeira reflexão sobre a política tanto do Partido como de qualquer outra organização ou qualquer outro movimento de massas espontâneo, ainda que justo e fundamentado.

p. 252

Mas nunca onde havia quem pensasse encontrá-los sem nunca os ter procurado seriamente: a desestabilização desta ou daquela parte do mundo para abrir caminho a revoluções do tipo marxista-leninista e mesmo maoísta sem qualquer futuro (o Camboja, o Sendero Luminoso do Peru), ou a ditaduras declaradas e torcionárias por delegação do imperialismo dos EUA. Não, os «esquerdistas», isolando-se do Partido que os detestava — em nada quero desculpar o Partido —, privaram-se do único meio então existente de agir politicamente, quer dizer, realmente sobre o curso da história, que passava então pela luta dentro do Partido. Hoje, e mais do que evidente, as coisas mudaram.

p. 253

Publicado em Autobiografias, Ciência Política, Filosofia, História, Literatura, Marxismo, Marxismo, Psicanálise, Psicologia, Psiquiatria, Sociologia, Teoria Política

O Futuro é Muito Tempo [16]

Louis Althusser, O futuro é muito tempo, Edições Asa, 1992.

Num tempo em que o primeiro «filósofo cabelo», «filósofo unha» — como escreveu Marx da «decomposição» da filosofia hegeliana — pensa que o marxismo está morto e definitivamente enterrado, em que reinam os pensamentos mais «estafados» contra o pano de fundo de um ecletismo inverossímil e de uma pobreza teórica, a pretexto de uma chamada «pós-modernidade» onde, de novo, «a matéria teria desaparecido» para dar lugar aos «imateriais» da comunicação (esta nova salada teórica, que naturalmente se vale de índices impressionantes, os da nova tecnologia), continuo profundamente apegado, não por certo à letra — à qual nunca me ative —, mas à inspiração materialista de Marx.

Sou otimista: creio que esta inspiração atravessará todos os desertos e que mesmo que assuma outras formas — o que é inevitável num mundo em plena transformação — há de reviver. E também pela seguinte razão de peso: o pensamento presente é teoricamente tão fraco que só o reavivar das exigências elementares de um pensamento autêntico — o rigor, a coerência, a clareza — pode no devido momento contrariar o espírito do tempo de tal maneira que a sua simples manifestação não poderá deixar de impressionar os espíritos desamparados pelo curso do mundo.

[…] É certo que Debray não vai muito longe, mas o simples recordar de fatos tão patentes contra a imensa ideologia reinante tem uma função, como Foucault gostava de dizer, de «decapagem». E o que é a decapagem? A redução crítica da camada ideológica das ideias permitindo finalmente o contato com o real «sem adições estranhas». Uma simples lição, evidentemente limitada, mas realmente materialista.

p. 236

Não sei se a humanidade chegará um dia a conhecer o comunismo, essa visão escatológica de Marx. O que sei em todo o caso é que o socialismo, essa transição forçada de que Marx falava, é «merda» como o proclamei em 1978 em Itália e em Espanha perante auditórios desconcertados pela violência dos meus termos. Também a este propósito contei uma «história». O socialismo é um rio muito largo, de travessia perigosíssima. Em breve teremos uma imensa barca na areia: a das organizações políticas e sindicais para onde todo o povo pode subir. Mas para transpor os sorvedouros, é necessário um «timoneiro», o poder de Estado nas mãos dos revolucionários, e na grande nave é necessário que reine a dominação de classe dos proletários sobre todos os remadores estipendiados (existe ainda o salário e o interesse privado), senão tudo se vira! — a dominação do proletariado. Põe-se na água a nave imensa, e durante todo o percurso é preciso vigiar os remadores exigindo deles uma obediência estrita, afastá-los do seu posto se desfalecem e substituí-los a tempo, ou sancioná-los. Mas se este imenso rio de merda for finalmente transposto, então até ao infinito será a praia, o sol e o vento de uma jovem Primavera, toda a gente desce, já não há luta entre os homens e os grupos de interesses uma vez que já não há relações mercantis mas profusão de flores e frutos que cada um poderá colher pura sua maior alegria.

p. 237

Creio com efeito — e julgo neste ponto encontrar-me na linha de pensamento de Marx — que a única definição possível do comunismo — se um dia este existir no mundo — é a ausência de relações mercantis, portanto de relações de exploração de classe e de dominação do Estado. Creio que existem deveras no nosso mundo presente numerosíssimos círculos de relações humanas das quais se encontra ausente a mínima relação mercantil. Por que via estes interstícios de comunismo poderão conquistar o mundo inteiro? Ninguém pode prevê-lo — e pelo menos isso não se fará seguindo o exemplo da via soviética. Será através da conquista do poder de Estado? Sem dúvida, mas esse ato empenha-nos no socialismo (de Estado — necessariamente de Estado) que é «merda». […] Se há uma esperança, é nos movimentos de massas, dos quais (graças a Hélène, entre outras pessoas) sempre pensei que detinham um primado sobre as organizações políticas. (…) acredito na lucidez da inteligência e no primado dos movimentos populares sobre a inteligência. A esse preço, porque não é a instância suprema, a inteligência pode acompanhar os movimentos populares, incluindo e sobretudo para evitar que eles recaiam nas aberrações passadas e para os ajudar a descobrir formas de organização realmente democráticas e eficazes. Se apesar de tudo podemos alimentar alguma esperança de ajudar a inflectir o curso da história, é aqui que ela está e só aqui.

p. 238-239

Publicado em Autobiografias, Ciência Política, Filosofia, Literatura, Marxismo, Psicanálise, Psicologia, Sociologia, Teoria Política

O Futuro é Muito Tempo [15]

Louis Althusser, O futuro é muito tempo, Edições Asa, 1992.

Gostei que Foucault fizesse a crítica da noção de «autor», noção inteiramente moderna, e desaparecesse na ação militante junto dos presos como eu nas fileiras da minha célula obscura. Gostava da modéstia profunda de Foucault e sei que Étienne Balibar aprecia em mim «acima de tudo» a feroz luta que travava constantemente contra toda a publicidade em torno do meu nome. Tinha uma reputação de selvagem, enclausurado no meu velho apartamento da École de onde quase nunca saía, e se mantinha todas as aparências desta selvageria reclusa era para tentar entrar no anonimato em que pensava descobrir o meu destino e por acréscimo a paz. E agora que confio ao público que se dispuser a lê-lo este livro pessoalíssimo, é ainda, mas por via paradoxal, para entrar definitivamente no anonimato, não já da pedra tumular da improcedência, mas na publicação de tudo o que de mim se pode saber, ficando de vez em paz perante as solicitações indiscretas.

p. 222-223

Assim, quanto mais penetrava em Marx, mais filosofia eu lia, e mais me dava conta de que Marx pensara, sabendo-o ou não, no quadro de pensamentos de grande importância cujos autores o tinham precedido: Epicuro, Spinoza, Hobbes, Maquiavel (parcialmente para dizer a verdade), Rousseau e Hegel. E convenci-me cada vez mais de que a filosofia de Hegel e Feuerbach servira ao mesmo tempo de «ponto de apoio» e de obstáculo epistemológico ao desenvolvimento dos seus próprios conceitos e até à sua formulação (…) O que naturalmente permite pôr a Marx e a propósito de Marx questões que ele não soubera ou pudera pôr, o que significava que, se queríamos «pensar por nós próprios» perante a assombrosa «imaginação da história» contemporânea, precisávamos por nosso turno de inventar novas formas de pensamento, novos conceitos — mas sempre segundo a inspiração materialista de Marx para «nunca alimentarmos ilusões», permanecendo atentos à novidade e à invenção da história. Bem como a evolução de pensamentos do maior interesse, ainda que não se reclamem em nada de Marx ou tenham a reputação (?) de ser politicamente anticomunistas — penso aqui precisamente no livro notabilíssimo de François Furet sobre a Revolução Francesa, que se situa, a justo título, contra uma tradição puramente ideológica nascida no tempo da própria Revolução, dentro daquilo a que Marx chamava a seu propósito a «ilusão da política», no tempo dos comitês revolucionários parisienses.

p. 223

Encontrara em Spinoza (além do célebre Apêndice do Livro I) uma prodigiosa teoria da ideologia religiosa, esse «aparelho de pensamento» que vira o mundo ao contrário, tomando as causas por fins e pensada inteiramente na sua relação com a subjetividade social. (…)

Descobrira no conhecimento do «primeiro gênero» não um conhecimento, nem a fortiori uma teoria do conhecimento — teoria da «garantia» absoluta de todo o saber, teoria «idealista» —, mas uma teoria do mundo imediatamente vivido (para mim, a teoria do primeiro gênero era simplesmente o mundo, quer dizer, o imediato da ideologia espontânea do senso comum). E sobretudo descobrira no Tratado Teológico-Político, que pelo menos interpretava assim, o exemplo mais fulgurante mas também mais ignorado do conhecimento do «terceiro gênero», o mais elevado, que proporciona a inteligência de um objeto ao mesmo tempo singular e universal (era, devo reconhecê-lo, uma leitura bastante hegeliana de Spinoza — não é por acaso que Hegel considera Spinoza «o maior» — mas não a julgo falsa): a da individualidade histórica singular de um povo (penso que Spinoza visava assim no «terceiro gênero» o conhecimento de toda a individualidade singular e no seu gênero universal), a do povo judeu. […]

Mais tarde, (…) eu insistiria fortemente na existência material da ideologia, não só nas suas condições materiais de existência (o que encontramos já em Marx e, antes e depois dele, em numerosos autores), mas na materialidade da sua própria existência.

Ele era um pensador que recusara toda a teoria do conhecimento (de tipo cartesiano ou mais tarde kantiano), (…) recusara o papel fundador da subjetividade cartesiana do cogito, para se contentar com escrever, como um fato: «o homem pensa», sem daí extrair qualquer consequência transcendental. Era (…) um nominalista, e Marx ensinar-me-ia que o nominalismo é a estrada real para o materialismo, ou, para dizer a verdade, trata-se de uma estrada que apenas em si própria desemboca, e não conheço forma de materialismo mais profunda do que o nominalismo. (…) sem esboçar uma gênese do sentido originário, enunciava o seguinte fato: «temos uma ideia verdadeira», uma «norma da verdade» que nos é dada pela matemática — mais uma vez um fato sem origem transcendental, (…) pensava na facticidade do fato: surpreendente no autor que alguns pretendem dogmático deduzindo o mundo de Deus e dos seus atributos! Nada mais materialista do que este pensamento sem origem nem fim. Mais tarde eu extrairia daqui a minha fórmula da história e da verdade como processo sem sujeito (originário, fundador de todo o sentido) e sem fins (sem destino escatológico pré-estabelecido), pois recusar o pensamento do fim como causa originária (no reenvio especular da origem e do fim) era deveras pensar como materialista. (…) um idealista é um homem que sabe ao mesmo tempo de que estação sai e qual é o seu destino; sabe-o antecipadamente e quando apanha o comboio, sabe para onde vai, uma vez que o comboio o leva. O materialista, pelo contrário, é um homem que apanha o comboio em andamento sem saber de onde vem nem para onde vai.

p. 229-231

Mas o que sem dúvida me impressionou mais foi a teoria do corpo em Spinoza. Esse corpo, do qual numerosas potências nos são de fato desconhecidas, esse corpo cuja mens (mal traduzido por alma ou espírito) é a ideia, sendo a própria ideia mal traduzida por este termo. Spinoza pensava-o como uma potentia, ao mesmo tempo como um impulso (fortitudo) e como abertura ao mundo (generositas), como dom gratuito. Nele descobriria mais tarde a espantosa antecipação da libido freudiana, do mesmo modo que a teoria da ambivalência — (…) para Spinoza, (…) o medo é a mesma coisa que o seu contrário a esperança, sendo ambas as coisas «paixões tristes», contrárias ao conatus vital, todo expansão e alegria, do corpo e da alma, unidos como os lábios e os dentes.

Descobriria nela com efeito a minha própria experiência, de um corpo primeiro fragmentado e perdido, de um corpo ausente, todo feito de medo e esperança desmesurados, que se recompusera em mim e como que se descobrira no exercício da apropriação das suas forças, em companhia do meu avô nas lidas físicas dos campos e do campo de prisioneiros! O facto de ser possível redispor-se assim do próprio corpo, retirando dessa apropriação algo com que pensar forte e livremente, portanto pensar propriamente com o corpo, no corpo e por meio do corpo, em suma o facto de o corpo poder pensar, no e pelo desabrochar das suas forças (…).

p. 231-232

De Hobbes a Rousseau, descobria uma mesma inspiração, profunda, a de um mundo conflictual ao qual só a autoridade absoluta do Estado (Hobbes) pode sem contrapartida garantir a segurança dos bens e das pessoas, pondo fim à «guerra de todos contra todos»: antecipação da luta de classes e do papel do Estado, a propósito dos quais sabemos que o próprio Marx declara que os não descobriu, mas foi buscar aos seus predecessores, em particular aos historiadores franceses da Restauração, apesar de estes serem muito pouco «progressistas», e aos economistas ingleses, sobretudo Ricardo. […] Rousseau, que pensava no estado de natureza «desenvolvido» a mesma conflitualidade social, dava-lhe uma outra solução: justamente o fim do Estado, na democracia direta do «contrato» exprimindo uma vontade geral «que nunca morre», o que convida a sonhar para um dia o advento do comunismo! Mas o que também me fascinava em Rousseau era o Segundo Discurso e a teoria do contrato ilegítimo, subterfúgio e astúcia nascidos da imaginação perversa dos ricos para submeterem o espírito dos miseráveis: mais uma teoria da ideologia, mas desta feita referida às suas causas e ao seu papel sociais, quer dizer, à sua função hegemônica na luta de classes. Considero Rousseau o primeiro teórico da hegemonia — após Maquiavel. […] Por fim, encontrava nas Confissões o exemplo único de uma espécie de «autoanálise» sem a menor complacência, onde manifestamente Rousseau se descobria ao escrever e ao refletir sobre os dados marcantes da sua infância e da sua vida e, antes do mais, pela primeira vez na história literária, sobre o sexo, e sobre essa admirável teoria do «suplemento» sexual que Derrida comentou de modo notável como figura da castração.

p. 232-233

Mais tarde, descobriria Maquiavel que, na minha opinião, foi em muitos aspectos muito mais longe do que Marx: justamente ao tentar pensar as condições e as formas da ação política na sua pureza, quer dizer, no seu conceito. Uma vez mais o que aqui me impressionara era o radical levar em conta da faculdade aleatória de qualquer conjuntura e a necessidade, para a constituição da unidade nacional italiana, de que um homem sem escrúpulos partisse do nada e de um lugar qualquer, no exterior de qualquer Estado constituído, para recompor o corpo fragmentado de um país dividido em si próprio, e sem a prefiguração da unidade nas fórmulas políticas (todas elas más) existentes. Julgo que não esgotamos ainda este pensamento sem precedentes e infelizmente sem continuidade.

p. 233

Publicado em Autobiografias, Ciência Política, Estudos de Gênero, Filosofia, Literatura, Marxismo, Psicanálise, Psicologia, Psiquiatria, Sociologia, Teoria Política

O Futuro é Muito Tempo [14]

Louis Althusser, O futuro é muito tempo, Edições Asa, 1992.

Foi por essa altura (1974) que tive ensejo de fazer uma viagem a Moscou para um Congresso Internacional de Filosofia Hegeliana. Só apareci no Congresso para apresentar a minha comunicação, que fora reservada para a sessão de encerramento na imensa sala de cerimônias. Falava nela do jovem Marx e das razões profundas da sua evolução. No final da minha comunicação, (…) alguns estudantes ficaram na sala e vieram fazer-me perguntas; o que é o proletariado? o que é a luta de classes? Manifestamente, não compreendiam que se falasse disso. Fiquei estupefato, mas viria a compreendê-lo bem.

Compreendi-o porque, durante esses oito dias em que não frequentei o Congresso, o meu muito querido amigo Merab, um georgiano filósofo de gênio que nunca viria a querer sair da URSS, (…) deu-me a conhecer uma boa centena de soviéticos de todas as condições, que me falaram tanto do seu país como das condições materiais, políticas e intelectuais de existência, e compreendi uma infinidade de coisas, que tudo o que de sério li depois sobre a URSS me confirmou.

A URSS não é o país habitualmente descrito entre nós. É verdade, qualquer intervenção pública na vida política é proibida e perigosa mas quanto ao resto, que vida! Em primeiro lugar, trata-se de um país imenso que resolveu o problema do analfabetismo e da cultura numa escala desconhecida, mesmo entre nós. (…) um país onde o direito ao trabalho se encontra garantido e é até, se assim posso dizer, planificado e obrigatório: desde que foram suprimidas as cadernetas de trabalho, observa-se uma mobilidade prodigiosa dos trabalhadores. Por fim,  é um país onde a classe operária é tão forte que se faz respeitar e a polícia nunca intervém nas fábricas, essa classe operária que descobre os seus escapes no álcool e no trabalho negro, roubando os bens de equipamentos coletivos para trabalhar para particulares, (…) país sempre duplo, trabalho negro na indústria, no ensino, na medicina e (oficializado) na produção agrícola. Soube entretanto, coisa que ao tempo ignorava, que se formam hoje equipes de trabalhadores que vendem muito caro os seus serviços às empresas, a fim de que estas recuperem o atraso em relação ao plano, algo que não conseguimos imaginar entre nós, apesar do trabalho negro, porque não são os «patrões» que ditam os preços, mas as equipes de companheiros que se organizam para vender os seus serviços às empresas atrasadas. Penso que K. S. Karol, que conhece bem a URSS onde viveu durante muitos anos uma odisseia assombrosa que contou no seu notável livro (SoIik: tribulations d’un jeune homme polonais dans la Russie en guerre), tem razão; com a ascensão das novas gerações ávidas de bens de consumo, contra o pano de fundo de uma aculturação muito nítida e na base de um patriotismo alimentado pela memória dos vinte milhões de mortos da grande guerra patriótica, apesar das práticas carcerárias e psiquiátricas escandalosas, mas que a outra escala temos também em França (embora por razões nem sempre diretamente políticas, mas no fundo que diferença faz?), mas na base também da destruição total do campesinato, do seu modo de vida tradicional e até do seu saber-fazer (é pela rádio que os camponeses sabem quando têm que semear e ceifar!! — que diferença em relação à China) (…) Evidentemente, deparei na URSS com um verdadeiro deserto filosófico. Os meus livros tinham sido traduzidos, como tudo o que é publicado no estrangeiro, mas guardados no «triplo inferno» das bibliotecas, só para especialistas de primeira categoria politicamente seguros. E quando o Deão da Faculdade de Filosofia me acompanhou ao aeroporto (…), a única coisa que arranjou para me dizer foi: «Os melhores cumprimentos da minha parte às miúdas de Paris!!».

p. 201-202

A verdade é que posso dizer que foi em grande parte através das organizações católicas da Ação Católica que tomei contato com a luta de classes e por conseguinte com o marxismo. Mas não indiquei já a surpreendente astúcia da história que, através da exposição da «questão social» e da «política social da Igreja», iniciou no socialismo um sem-número de filhos de burgueses, e de pequeno-burgueses (incluindo camponeses da Juventude Agrária Cristã), precisamente devido ao medo pânico de os ver passarem-se para o campo do «socialismo»? (…) Bem entendido, uma vez reconhecidas a «questão social» e as propostas dos ridículos remédios para ela, pouco bastava, por exemplo, no meu caso, a visão política profunda do «velho Hours», para querermos ver o que se passava «por trás» das fórmulas nevoentas da Igreja Católica e aderirmos rapidamente ao marxismo, antes de entrarmos no Partido Comunista! Tal foi o caminho de dezenas de milhar de militantes das juventudes estudantis, operárias e agrárias cristãs (JEC, JOC, JAC) que travaram conhecimento com quadros da CGT ou do Partido — na maior parte dos casos através da Resistência. Hoje, podemos esperar resultados mais importantes do movimento de massas que apoia a teologia da Libertação.

[…]

Continuei todavia crente até cerca de 1947, até ao momento em que, com Maurice Caveing, François Ricci e outros, organizamos o nosso sindicato ilegal que lutava para ser legalmente reconhecido (situação que não deixava de ligar-se ao meu antigo problema da evasão: como sair do campo ficando lá — mas desta vez era ao contrário e a sério). Frequentava com Hélène, não sei como, o padre Montuclard e as Juventudes da Igreja no Petit-Clamart. Ele dizia a quem quisesse ouvi-lo: «O ateísmo é a forma moderna da religião cristã.» Palavras que tiveram grande êxito no nosso grupo. (…) Todo o Cristianismo se resumia para mim em Cristo, na sua «mensagem evangélica» e no seu papel revolucionário. Contra Sartre que adorava as «mediações», eu considerava que toda a mediação ou é nula ou é a própria coisa por efeito de uma simples reflexão minimamente rigorosa. Se Cristo era o mediador ou a mediação, era apenas a mediação do nada, logo Deus não existia.

[…]

Espantoso Feuerbach, esse grande desconhecido, que porém se encontra na origem real da fenomenologia (a sua teoria da intencionalidade da relação sujeito-objeto), de certos pontos de vista de Nietzsche e de Jacob von Uex-küll, esse extraordinário biólogo filósofo, muito apreciado por Canguilhem, que retomou de Feuerbach o conceito de Welt enquanto Lebenswelt, etc. (…) Bem entendido, lia também as obras de juventude de Marx, mas rapidamente compreendi: elas eram, essas maravilhas então consideradas como o pensamento originário e portanto definitivo de Marx, feuerbachianas de ponta a ponta, até à «ruptura da nossa consciência filosófica de outrora» que A Ideologia Alemã anuncia de modo um tanto sumário, mas extraindo já em todo o caso um certo número de consequências revolucionárias sobre o modo de produção e os elementos da sua «combinação». Isso é algo que não encontramos em Feuerbach e nem sequer em Hegel.

p. 217-220

Ataquei então o surpreendente manuscrito de 1858 (primeira Crítica da Economia Política) onde se encontra a seguinte fórmula lapidar: «Não é a anatomia do macaco que explica a do homem, mas a anatomia do homem que explica a do macaco.» Surpreendente por duas razões: porque nega antes do seu aparecimento todo o sentido teleológico da concepção evolucionista da história, e porque é, em termos precisos, embora evidentemente sob uma aparência diversa, a antecipação da teoria freudiana da retrospectividade: o sentido de um afeto anterior dá-se apenas em e através de um afeto ulterior que ao mesmo tempo o assinala como tendo existido retrospectivamente e o investe no seu próprio sentido ulterior.

p. 220

Em contrapartida, qualquer obra literária, mesmo a mais modesta, guarda para sempre o nome do seu autor. Ora, Breton soube-o por um dos seus colegas, medievalista de grande erudição, o padre Chatillon, que São Tomás, numa acesa controvérsia contra os averroístas, pronunciara-se outrora contra o tema da impessoalidade (quer dizer, do «anonimato») de qualquer pensador singular, argumentando mais ou menos nos seguintes termos: todo o pensamento é de fato impessoal, uma vez que é obra do intelecto agente. Mas devendo todo o pensamento ser pensamento de um «inteligendo», deve ser por isso o retomar de um pensamento impessoal por um «inteligendo» singular. E de direito, pode usar o nome desse singular… Estava longe de supor que em plena Idade Média, quando imperara, como nos dizia Foucault em Soisy, a lei da impessoalidade literária, tinha havido um São Tomás, sem dúvida para satisfazer as exigências da controvérsia contra os averroístas, a justificar em direito filosófico a necessidade da assinatura do autor…

p. 222

Publicado em Autobiografias, Ciência Política, Estudos de Gênero, Filosofia, Literatura, Marxismo, Marxismo, Psicanálise, Psicologia, Psiquiatria, Sociologia, Teoria Política

O Futuro é Muito Tempo [13]

Louis Althusser, O futuro é muito tempo, Edições Asa, 1992.

Não concebia que se pudesse ser um filósofo pensando pela própria cabeça na École e um cãozinho pela trela de «Casa» no Partido. A unidade da prática e da teoria, essencial para o marxismo e para os comunistas (Courrèges!) excluía para mim — o que será óbvio para toda a gente — a existência da dupla verdade que me lembrava as práticas tão certeiramente criticadas aos padres por Helvétius e d’Holbach no século XVIII.

p. 191

Mas em 1945-1960 estávamos muito longe disto. Tínhamos que nos «arranjar» com o que havia. Havia Descartes, é verdade, mas através de que interpretações espiritualistas! com a exceção das de Étienne Gilson, de Émile Bréhier, e também de Henri Gouhier; Gouhier polemizando contra Alquié, que interpretava Descartes em termos espiritualistas. Havia sem dúvida Martial Guéroult, esse erudito sem concessões na sua leitura dos autores, para dizer a verdade o único grande historiador do nosso tempo, do qual descendem Jules Vuillemin e Louis Guillermit. Mas Guéroult era então somente um grande «comentador», e ninguém adivinhava que tinha na cabeça uma teoria estrutural dos sistemas filosóficos. Vuillemin e Guillemin e Guillermit eram praticamente desconhecidos.

[…]

Julgo saber que Bouveresse me acusou (e talvez me continue a acusar ainda) de ser o responsável pela decadência filosófica francesa, do mesmo modo que no seu último livro cobriu de lama Derrida, esse gigante apelidado, como Hegel outrora, de «cão morto» (se as palavras não são as mesmas, é-o a coisa). Também entre os filósofos há delírios declarados.

p. 193

Quanto a mim, que sentia a necessidade de intervir em filosofia por razões de ideologia e política, tinha de me «arranjar» de facto com o que havia e com os conhecimentos de que dispunha: um pouco de Hegel, muito Descartes, pouco Kant, bastante Malebranche, um pouco de Bachelard (Le Nouvel Esprit scientifique), muito Pascal, um pouco de Rousseau ao tempo, um pouco de Spinoza, um pouco de Bergson e a História da Filosofia de Bréhier, meu livro de cabeceira, e ainda, naturalmente, um pouco mais tarde bastante Marx, o único capaz de nos arrancar à confusão dos gêneros.

p. 193-194

Até ao dia em que, depois do meu artigo sobre «Contradição e sobredeterminação» e de uma resposta virulenta de Gilbert Mury sobre o «monismo», inspirada por Roger Garaudy então ainda todo-poderoso, Cogniot organizou um «processo teórico» nas instalações do laboratório «Henri Langevin» de Orcei que presidiu às sessões, rodeado da «nata» filosófica e política de La Pensée. Era, por comparação com o Conselho Comunal, uma comédia insignificante (…) Como de costume desenhei no quadro alguns esquemas e respondi às críticas. Ao fim de seis semanas, vi Cogniot começar a sorrir: no fundo, eu era um normalien como ele e percebi que, se não o convencera, pelo menos o desarmara. Da última vez que fui convocado, passado um mês e meio, respondi simplesmente: «Penso ter mais ou menos respondido, e creio que as instâncias teóricas do Partido, que têm muito de que se ocupar, fariam bem ao interromper este processo e tratar de questões mais urgentes.» E não compareci.

p. 194

Graças a Jacques Martin, descobri finalmente dois pensadores aos quais devo quase tudo. Em primeiro lugar Jean Cavaillès, do qual me contentava apenas com certas fórmulas («o processo não de uma dialética mas de um conceito), e Georges Canguilhem, homem com a fama de ter um feitio impossível como o meu avô e como Hélène, mas de fato como ele e como ela um homem maravilhoso de inteligência e de generosidade. Acabou, ante a insistência dos seus amigos, por aceitar apresentar a sua candidatura ao ensino superior. Escrevera um livro de inspiração nietzscheana sobre o normal e o ilógico. (…) Aprendi assim com ele várias lições decisivas: primeiro que a chamada epistemologia à qual eu parecera consagrar-me absurda fora da história das ciências; em seguida, que esta história, longe de obedecer à lógica das Luzes, podia desembocar nas suas descobertas a partir daquilo a que ele chamava, quase como nós, «ideologias científicas», representações filosóficas atuando sobre a elaboração, as concepções e até mesmo conceitos científicos, e com frequência de maneira absolutamente paradoxal. (…) O seu exemplo deu-me, afastou-nos (porque Balibar e Macherey e Lecourt seguiram-no mais de perto do que eu) do projeto idealista que inspirava as minhas primeiras definições teoricistas da filosofia como teoria da prática teórica. Dizer, da prática das ciências, concepção quase positivista em que a filosofia é como que a «ciência das ciências», definição que me apressei a retificar no prefácio da edição italiana de Ler o Capital (em 1966).

p. 195

E quando chegou a moda da ideologia «estruturalista», que apresentava a vantagem de romper com todo o psicologismo e todo o historicismo, pareceu então que eu seguia esse movimento. Não encontrávamos em Marx a ideia não de combinatória (de elementos arbitrários) mas de combinação de elementos distintos de molde a constituir a unidade de um modo de produção? (…) Ora, desde o início, insistíramos na diferença estrutural entre combinatória (abstrata) e combinação (concreta), âmago de todo o problema. Mas quem o viu? Ninguém atendeu à diferença. Fui acusado em toda a parte de estruturalismo, de justificar a imobilidade das estruturas na ordem estabelecida, e a impossibilidade da prática revolucionária, quando afinal eu fizera mais do que esboçar a propósito de Lênin uma teoria da conjuntura. (…) O espírito do tempo, reforçado se possível pelos equívocos esquerdistas da prodigiosa revolta de 68, eram as demagogias do coração e do vivido, e de modo nenhum a teoria. Raros eram os que aceitavam compreender quais os meus objetivos e as minhas razões. E quando o Partido abandonou a ditadura do proletariado, como se abandona um cão, nada mudou. Tive contra mim não só a matilha de filósofos que escreviam contra Foucault e contra mim livros «pelo bem» (Mikel Dufrenne e outros), mas também todos os ideólogos do Partido que não faziam segredo de me desaprovarem e de me tolerarem apenas por não poderem, dada a minha notoriedade, expulsar-me. Tempos maravilhosos! Alcançara por fim o auge do meu desejo: ter razão sozinho contra todos!

[…]

Para dizer a verdade não estava completamente só: encontrava alguma consolação em Lacan. Numa nota dissimulada de um dos meus artigos (…) eu observara que, tal como Marx recusara o «homo oeconomicus», Lacan recusava o «homo psychologicus», daí subtraindo, com todo o rigor, as devidas consequências.

p. 197

Havia muito tempo que eu alimentava a ideia de que existem sempre e em toda a parte, como dizia Marx, «falsos custos de produção» ou «desperdícios», perdas sem razão nem remédio. Descobrira-as antecipadas em Malebranche, quando evoca «o mar, as areias e os grandes caminhos» sobre os quais a chuva cai, sem qualquer fim determinável. Foi então que meditei a minha «história» do filósofo materialista que «apanha o comboio em andamento» sem saber de onde ele vem nem para onde vai. E pensei nas «cartas» que embora deitadas no correio nem sempre chegam às mãos do destinatário. Ora, li um dia num escrito de Lacan que «uma carta chega sempre ao seu destinatário». Surpresa! Mas a questão complicou-se por causa de um jovem médico indiano que fez uma breve análise com Lacan e que, no final, se atreveu a colocar-lhe a seguinte questão: «Você diz que uma carta chega sempre ao destinatário. Ora Althusser afirma o contrário: acontece que uma carta não chegue ao seu destinatário. O que é que acha da tese dele, a que ele chama materialista?» Lacan refletiu uns bons dez minutos (dez minutos para ele!) e respondeu simplesmente: «Althusser não é um clínico.» Compreendi que ele tinha razão: de fato, nas relações de transferência da cura, o espaço afetivo encontra-se estruturado de tal maneira que não há nele qualquer vazio, pelo que consequentemente toda a mensagem inconsciente realmente dirigida ao consciente do outro, a ele chega necessariamente. Todavia, não me sentia inteiramente satisfeito com a minha explicação: Lacan tinha razão, mas eu também, e eu sabia que ele não merecia ser acusado de idealismo, como o a sua concepção da materialidade do significante. Foi então que descobri a saída. Lacan falava do ponto de vista da prática analítica, e eu do ponto de vista da prática filosófica, dois domínios diferentes que eu não podia, se fosse consequente com a minha crítica do materialismo dialético clássico reduzir um ao outro, nem o domínio filosófico ao analítico nem o contrário, portanto a prática filosófica a uma prática científica ou vice-versa. O que dava razão a ambos, mas nenhum de nós vira com clareza o fundo do nosso diferendo. Em todo o caso, passei a conceber ainda maior apreço pela perspicácia de Lacan que, apesar do equívoco de algumas das suas expressões , fala vazia, (a fala cheia do «Discurso de Roma») tivera o reflexo, talvez não somente refletido, de sentir a diferença, e de a «assinalar».

p. 198-199

Certa manhã, muito cedo, batem-me à porta na École. Era Lacan, irreconhecível, num estado assustador. Mal me atrevo a contar o que se passou. Vinha comunicar-me, «antes que eu o soubesse por boatos que o poriam em causa pessoalmente, a ele, Lacan», o suicídio de Lucien Sebag que estava em análise com ele, uma análise que tivera que interromper uma vez que Sebag se apaixonara pela sua filha Judith. […] Todavia Sebag metera uma bala na cabeça à meia-noite, e depois conseguiu pôr termo à vida por meio de uma segunda e última bala por volta das três horas da madrugada. Confesso que não soube o que dizer-lhe. Mas queria perguntar-lhe se não teria podido «intervir» para pôr Sebag a salvo mandando-o internar. Talvez ele me tivesse respondido que não era essa a «regra» analítica. Pelo menos, não teve uma palavra sobre a proteção de uma hospitalização. […] Este incidente lançou sobre mim estranhas perspectivas sobre as terríveis condições de análise e das suas famosas «regras». Perdoem-me, se possível, tê-lo narrado fielmente, mas através do infeliz Sebag, de quem eu gostava muito e de Judith que conhecia bastante bem (…), tratava-se de mim também: «De te fabula narratur». Mas desta feita a «fábula» era uma tragédia, não só para Sebag, mas sobretudo para Lacan, que então só exibia uma preocupação manifesta com a sua reputação profissional e o escândalo que se abateria sobre ele.

p. 200-201

Publicado em Autobiografias, Ciência Política, Existencialismo, Filosofia, Literatura, Marxismo, Marxismo, Psicanálise, Psicologia, Psiquiatria, Sociologia, Teoria Política

O Futuro é Muito Tempo [12]

Louis Althusser, O futuro é muito tempo, Edições Asa, 1992.

Ficara muito impressionado e continuo a sentir-me impressionado pelas palavras de Marx ao dizer que o filósofo exprime no conceito (quer dizer, na sua concepção da filosofia) a sua «relação teórica consigo próprio». Além do que acabo de dizer, que procurava eu então exprimir de tão pessoal na minha prática e na minha concepção da filosofia? Alguns dos meus leitores e amigos, por exemplo Bernard Edelman que muitas vezes mo disse com perspicácia, notaram em muitos dos meus ensaios, em particular no meu breve Montesquieu e no meu artigo sobre Freud e Lacan, a insistência de um tema: os maiores filósofos nasceram sem pai e viveram na solidão do seu isolamento teórico e do risco solitário que assumiam perante o mundo. Sim. eu não tivera pai, e jogara indefinidamente a ser «pai do pai» para me dar a ilusão de ter tido um, de fato para me dar a mim próprio papel de um pai em relação a mim próprio, uma vez que de todos os pais possíveis ou com que deparei nenhum podia desempenhar esse papel. E eu rebaixava-os desdenhosamente pondo-os abaixo de mim, na minha subordinação manifesta.

p. 180-181

Mas que filósofo, no fundo de si próprio, o mais das vezes abertamente entre os grandes, e sobretudo quando não consente em confessá-lo, não cedeu a essa tentação, filosoficamente orgânica, de manter os olhos postos no que quer mudar, transformar no mundo? O próprio Heidegger diz, é certo que falando apenas da fenomenologia (mas por que apenas ela? Mistério), que esta visa «mudar o mundo». Foi por isso que critiquei as célebres palavras das «Teses sobre Feuerbach», de Marx: «Já não se trata de interpretar o mundo, mas de o transformar», mostrando contra esta fórmula que todos os grandes filósofos quiseram intervir no curso da história do mundo, ou para o transformar, ou para o fazer regredir, ou para o conservar e reforçar na sua forma existente contra as ameaças de uma transformação tida por perigosa.

p. 182

Mas avalie-se então a responsabilidade subjetiva de que o filósofo se sente investido! Responsabilidade esmagadora! Porque ele não dispõe, como nas ciências (que considerei a todas como experimentais), de qualquer dispositivo ou qualquer modo de verificação. Contenta-se com estabelecer teses sem nunca as poder verificar pessoalmente. Tem sempre que antecipar os efeitos das suas teses filosóficas sem saber sequer onde, ou como, esses efeitos poderão deveras manifestar-se! É verdade que não afirma as suas teses arbitrariamente, mas levando em conta aquilo de que se apercebe ou pensa aperceber no Todo e na sua tendência, e contrapondo-as a outros sistemas de teses existentes no seu mundo. Como tem sempre que antecipar e se sente sempre próximo da sua subjetividade histórica, fica todavia muito só diante da sua percepção do Todo (a cada um o seu todo, não é?) e mais só ainda na iniciativa que assume de afirmar, sem qualquer consenso, pois é aí que ele quer também mudar alguma coisa, teses novas. Solidão do filósofo. Descartes no refúgio heroico do seu fogão, Kant no seu tranquilo, ruminador, refúgio de Königsberg, Kierkegaard no refúgio trágico do seu drama íntimo, Wittgenstein no refúgio florestal da sua casa de pastor da Noruega! E eu, como qualquer filósofo no mundo, ainda que rodeado de amigos, eu encontrava-me extremamente só no meu gabinete, quer dizer, no meu pensamento, na minha pretensão e na minha inaudita audácia. Só e, é claro, totalmente responsável pelos meus atos e pelos seus efeitos imprevisíveis, sem outra sanção para além do devir ulterior da história do mundo, esse fato ainda não consumado. Achava-me extremamente só enquanto filósofo e contudo escrevi na Resposta a John Lewis: «Um comunista nunca está só.» Toda a diferença está de fato aí, mas torna-se compreensível quando se pensa que todo filósofo quer efetivamente «transformar o mundo» — o que não pode fazer sozinho sem uma organização comunista, mas realmente livre e democrática e em estreita ligação com a sua base e para além dela com os movimentos populares de massa (…)

p. 183

Basta que se leiam os meus textos: encontra-se neles como uma obsessão o leitmotiv da solidão, e o da responsabilidade. Quantas vezes não repeti que, tanto em política como em filosofia, não fazia mais do que intervir sozinho contra todos — e os adversários longamente mo fizeram sentir — e «por minha conta e risco». Sim, sabia que estava só, que corria grandes perigos, bem mo fizeram sentir mas sempre o soube de antemão. O que ninguém pode, ao ler-me, contestar é que sempre tive consciência quer da minha solidão radical perante a minha intervenção, quer da minha extrema responsabilidade assentando em última análise apenas em mim, quer dos riscos e perigos a que a minha solidão e a minha responsabilidade me expunham. Que tantos leitores se tenham depois reconhecido nesta solidão, a deles, e a responsabilidade que assumiam de aderir às minhas teses, e aos riscos ligados aos efeitos políticos em que incorriam, não surpreenderá ninguém. Mas eles, pelo menos eles, não se encontravam inteiramente sós na circunstância, uma vez que eu me antecipara e podia assim servir-lhes de garante e de mestre (mestre de domínio (maîtrise)), justamente porque fora o primeiro e estivera por conseguinte só na minha iniciativa.

p. 183-184

Único responsável, descobrira finalmente o campo da minha iniciativa, uma iniciativa absoluta, a minha, onde realizava enfim o meu próprio desejo, no limite o desejo de ter enfim um desejo meu (desejar ter um desejo é sem dúvida um desejo, mas um desejo ainda formal, porque é a forma vazia de um desejo, e tomar esta forma vazia de um desejo por um desejo real, tal fora deveras o meu drama, do qual saí vencedor, mas em pensamento, em pensamento puro), apanhado como num destino na realização do puro desejo da minha mãe, até na forma enfim alcançada da sua negação.

p. 184

Muito simplesmente, sustentava a linguagem da verdade quer do que pensava e fazia (afirmando teses, por vezes abertamente, cf. Philosophie et philosophie spontanée des savants). quer do que toda uma filosofia fazia antes de mim, quer o reconhecesse abertamente (São Tomás, Spinoza, Wittgenstein, etc.) ou o calasse. Quando nos sabemos únicos responsáveis tanto pela nossa solidão necessária à verdade que afirmamos em teses, como pela verdade do filósofo que somos, e pela verdade de toda a filosofia, a honestidade mínima não será sustentar uma linguagem conforme, até nas suas formas de intervenção e de interpelação (ver o papel que conferi à interpelação a propósito da ideologia), com a natureza daquilo que fazemos? não será exprimirmo-nos na própria forma que exprime, e sem rodeios, aquilo que pensamos e fazemos?

[…]

Esta recusa violenta de «alimentar ilusões», esta brutalidade sem rodeios, que sentia ser a de um pai que me faltara e, pelo menos, nunca me iniciara nessa atitude, nunca me ensinara que o mundo não é um mundo etéreo mas um mundo de lutas físicas e outras, eis que eu tinha finalmente a audácia e a liberdade de endossar a sua realidade. Não me tornaria assim, por fim e realmente, o meu próprio pai, quer dizer, um homem?

p. 185

Sabia, é certo, por que vias Hegel e Marx haviam sido introduzidos em França; através de Kojevenikov (Kojève), emigrado russo com altas responsabilidades no Ministério da Economia. Fui procurá-lo um dia ao seu gabinete ministerial para o convidar a proferir uma conferência na École. E ele foi, homem de rosto e cabelos escuros cheio de malícias teóricas infantis. Li tudo que ele escrevera e convenci-me rapidamente de que ele — que todos, incluindo Lacan, tinham escutado apaixonadamente antes da Guerra — não compreendera rigorosamente nada de Hegel ou Marx. Nele tudo girava em torno da luta de morte e do Fim da História, a que ele atribuía um espantoso conteúdo burocrático. Terminada a história, quer dizer, a história da luta de classes, a história não acaba, mas nada mais se passa nela a não ser a rotina da administração das coisas (viva Saint-Simon!). Uma forma de associar sem dúvida os desejos do filósofo e o estatuto do grande burocrata.

[…]

Tal era portanto a conjuntura filosófica em que eu me via na obrigação de «pensar». Estava a redigir, como já contei, uma tese sobre Hegel, na qual me orientou o meu amigo Jacques Martin, que possuía uma vasta cultura filosófica. Facilmente me dei conta de que os «hegelianos» franceses discípulos de Kojève nada tinham compreendido de Hegel. Bastava, para se ter a certeza, ler o próprio Hegel. Tinham-se ficado todos pela luta do senhor e do escravo e pelo absurdo total de uma «dialética da Natureza».

p. 188

Em contrapartida, Husserl penetrara um tanto entre nós, através de Sartre e de Merleau. É conhecido o célebre episódio contado pelo Castor. Raymond Aron, o «bom amigo» de Sartre, passara em 1928-1929 um ano letivo em Berlim, que o esclarecera sobre a ascensão do nazismo, mas onde digeria a pálida filosofia e a sociologia alemãs subjetivistas da história. Aron volta para Paris e vai ter com Sartre e o Castor ao seu café de sempre. Sartre está a beber um grande sumo de alperce. E Aron diz-lhe: «Meu bom amigo, descobri na Alemanha uma filosofia que te vai fazer compreender por que é que estás sentado neste café e bebes um sumo de alperce, e por que é que isso te agrada. Esta filosofia era a de Husserl naturalmente o antepredicativo podia dar conta de tudo, incluindo o sumo de alperce. Ao que parece Sartre ficou espantado e começou a devorar Husserl, e a seguir o primeiro Heidegger. Podemos ver o resultado na sua obra: uma apologia subjetivista e cartesiana do sujeito, da existência contra o objeto e a essência, o primado da existência sobre a essência, etc. Mas nada que tivesse muito a ver com a inspiração profunda de Husserl ou de Heidegger, que rapidamente marcaria as suas distâncias em relação a Sartre. Tratava-se antes de uma teoria cartesiana do cogito no campo de uma fenomenologia generalizada e por isso completamente deformada.

p. 188-189

Tudo isto era extremamente instrutivo enquanto a Husserl, que Merleau nunca deixou de meditar para acabar num regresso à mais profunda tradição francesa, a do espiritualismo, mas muito sutil na sua versão, e recheada de perspectivas profundas sobre a criança, Cézanne, Freud, a linguagem, o silêncio e a própria política marxista e soviética (…) Merleau. ao contrário de Sartre, esse romancista filosófico à maneira de Voltaire mas de uma intransigência pessoal à maneira de Rousseau, era realmente um grande filósofo, o último em França, antes do gigante que é Derrida. mas nada esclarecedor quanto a Hegel ou Marx.

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Evidentemente, eu, que graças a Jaques Martin começava a ler diretamente os textos de Marx e a compreendê-lo, aliás indignado pelas pretensões fundadoras humanistas dos seus textos de juventude, não estava de acordo. Nunca estive de acordo com as «interpretações» husserlianas de Marx por Desanti, nem com qualquer outra interpretação «humanista» de Marx. E adivinha-se por quê; porque me horrorizava qualquer filosofia que pretendesse fundar transcendentalmente a priori qualquer sentido e qualquer verdade numa camada originária por muito antepredicativa que fosse. Desanti nada tinha a ver com isto, exceto na medida em que não tinha o mesmo horror que eu pela origem e pelo transcendental.

Muito naturalmente os operários estavam-se lixando para isso.

p. 190