Publicado em Antropologia, Ciência Política, Estudos Culturais, Estudos de Gênero, Estudos sobre Religião, Estudos Sociológicos, Filosofia, Relações Internacionais, Sociologia

Se Deus fosse um ativista dos direitos humanos [Capítulo 5 – Parte final]

SANTOS, Boaventura de Sousa. Para uma concepção pós-secularista dos direitos humanos: direitos humanos contra-hegemônicos e teologias progressistas. In: _______ Se Deus fosse um ativista dos direitos humanos [livro eletrônico]. 1. ed. São Paulo: Cortez, 2014, p. 55-62.

Sofrimento na carne

A trivialização do sofrimento humano nos nossos dias e a consequente indiferença com que encaramos o sofrimento dos outros – mesmo se a sua presença nos nossos sentidos é avassaladora – têm muitas causas. […] A tradição moderna ocidental, ao separar a alma do corpo, degradou este último ao concebê-lo como constituído por carne humana. (…) a conceitualização (e dignificação) do sofrimento humano passou a ser feita através de categorias abstratas, sejam elas filosóficas ou éticas, que desvalorizam a dimensão visceral do sofrimento, a sua marca visível de experiência vivida na carne.

Este processo de descorporalização por via de classificação e organização encontra-se (…) mesmo nos autores que mais afirmaram a importância do lugar do corpo, de Nietzsche a Foucault (…). Pela mesma razão, (…) nossos sentidos foram dessensibilizados para a experiência direta do sofrimento dos outros. (…) a carne do prazer como a do sofrimento, foi (…) privada da sua materialidade corpórea e das reações instintivas e afetivas que esta provoca e cuja intensidade consiste em estar (…) além das palavras, (…) além de uma argumentação racional ou de uma avaliação reflexiva.

As religiões e as teologias não foram imunes a este instrumento biopolítico. […] (…) levaram ao extremo a repulsa pela carne como lugar do prazer, sempre associada ao sexo e às mulheres. (…) incitaram os crentes a assistir os corpos dos seus próximos sem outra mediação para além da compaixão. Deste modo, permitiram um acesso denso, direto e intenso à carne em sofrimento (…). É, para além disso, um acesso prático que (…) não procura um equilíbrio entre a compreensão e a intervenção. Concede prioridade absoluta à intervenção (…).

Estas são as razões pelas quais as religiões permitiram (…) uma ética de cuidado e de envolvimento baseada nas reações viscerais da intersubjetividade entre o eu e o próximo, ligações (…) pré-representacionais e (…) pré-éticas, constituídas por sensibilidades e disponibilidades (…). O lado negativo deste imediatismo do sofrimento é a sua despolitização. Foi (…) isto que aconteceu no caso (…) de sofrimento na carne numa das religiões (…), o Cristianismo: a crucifixão de (…) Cristo. A natureza altamente política deste sofrimento foi sequestrada pelo dogma da ressurreição, (…) por uma fuga do mundo, (…) que, ao contrário da viagem de Allah ao céu, não teve regresso. A figura histórica do (…) Cristo dos evangelhos cristãos é obviamente diferente do Jesus Cristo do Corão (…) (Khalidi (Org.), 2001). A diferença tem muito a ver com o sofrimento carnal. (…) para os cristãos o que importa é a própria carne de Jesus e o seu sofrimento, (…) ele é a “Palavra incarnada”, para a fé islâmica Jesus é um exemplo de piedade devido à sua proximidade com o sofrimento carnal dos outros (…).

O potencial contra-hegemônico das teologias progressistas reside na articulação que buscam entre a ligação visceral de um gesto assistencial (…) e a luta política contra as causas do sofrimento como (…) tarefa inacabada da divindade. Na sua crítica do secularismo como uma forma velada de pluralismo restritivo (por excluir a religião enquanto modo legítimo de ser), William Connolly fala de “registros viscerais da subjetividade e intersubjetividade” como expressão de experiências muito intensas (…) e aponta (…) os registros de subjetividade religiosa (1999, p. 27).

Uma vontade radical insurgente e um horizonte pós-capitalista

A religião institucionalizada pagou um preço elevado para encontrar um modus vivendi com a modernidade ocidental e com o Iluminismo: a privatização. […] (…) a religião foi banida do sistema político (o que (…) não significou a incapacitação da igreja para interferir na política (…)), mas, por outro lado, foi deixada entregue a si mesma (…). […] uma ligação liberta das mediações políticas, culturais, discursivas e institucionais que dominaram, nos últimos dois séculos, outras mobilizações sociais (seculares) da esfera pública, (…) o movimento operário e o movimento feminista.

Isto explica (…) a razão pela qual as mobilizações religiosas que no nosso tempo reclamam a esfera pública são sustentadas por (…) radicalismo que não encontramos na maioria dos movimentos sociais. Esta energia radical é usada pelas teologias tradicionalistas para recuar no tempo, até (…) em que a igreja controlava as hierarquias sociais e políticas; (…) também é usada pelas teologias pluralistas progressistas para lutar contra todas as hierarquias, opressões e discriminações (…).

A ligação entre a teologia e a crítica radical do capitalismo constituem o núcleo da teologia da libertação. […] Afirmando a necessidade de uma perspectiva teológica do Terceiro Mundo informada pelo Marxismo e pela teoria da dependência, Ellacuría afirma: “é impossível ver a concretização da justiça sem uma revolução básica na ordem social e econômica, ou uma verdadeira realização do homem sem a criação de uma estrutura econômica adequada” (1977, p. 127).

Para as teologias políticas progressistas, a libertação, mais que a resistência ou a salvação, constitui a base de uma vontade radical de lutar por uma sociedade mais justa.

O impulso para a interculturalidade nas lutas pela dignidade humana

(…) as concepções e práticas dominantes dos direitos humanos são monoculturais, e isto constitui um dos maiores obstáculos à (…) uma luta de baixo para cima, real e universal, pelos direitos humanos. A religião (…) apenas existe como uma (…) variedade de religiões, (…) como diversidade entre as principais religiões tanto como (…) dentro de cada religião. No mundo ocidental esta diversidade é uma das consequências inesperadas da privatização da religião. […]

O (…) princípio, o da comunidade, foi (…) negligenciado, (…) concebido como um adjuvante do Estado ou do mercado. Esta negligência permitiu ao princípio da comunidade evoluir livremente fora (…) da burocracia e da estandardização mercantil e (…) de uma forma muito menos monocultural e monolítica. Afastada do Estado e do mercado, a religião refugiou-se na comunidade, um domínio de regulação social menos estandardizado e mais aberto à diversidade.

Apesar dos reveses e das falhas (seletividade arbitrária, tentação de afirmar uma única verdade revelada, ausência de consequências práticas), os diálogos ecumênicos e interreligiosos são o testemunho de um potencial para a interculturalidade no domínio da religião. Se (…) fossem mais coerentes e ativamente praticados, poderiam funcionar simultaneamente como uma poderosa memória e um campo de experimentação para diálogos mais amplos, envolvendo concepções religiosas e não religiosas de dignidade humana.

(…) o pensamento religioso (…) oscilou entre o dogmatismo estrito e a ortodoxia, por um lado, e o questionamento (…) dos textos, práticas, regras e instituições, pelo outro. No tocante ao último, roçaram muitas vezes a heresia e sofreram consequências (…), o mais notável é que (…) foram além dos materiais religiosos familiares, beberam em culturas estranhas outros tipos de conhecimento e filosofias, imergiram (…) nos detalhes das experiências do dia a dia, interagindo com mercadores, artesãos, prostitutas, e retirando consequências teóricas imediatas destas experiências e discursos. (…) quando decidiram ir às raízes das verdades estabelecidas por conta própria, os pensadores religiosos tenderam a ser mais bricoleurs do que quaisquer outros (…), misturando (…) fragmentos de diferentes proveniências com os quais criaram novos sentidos e interpretações.

Raimundo Panikkar, teólogo católico, (…) pode ser (…) considerado (…) exemplo de teólogo e pensador “numa posição limiar”, visto ter desenvolvido um pensamento cristão de expressão hindu. (…) o Cristianismo, para ser realmente “cristão”, “para pertencer ao mundo inteiro”, deveria despir-se dos seus trajes ocidentais coloniais, que fizeram crer que o Cristianismo só seria viável por meio da cultura ocidental. (…) “Ser-nos-á possível admitir que existam limites à compreensão de Deus que recebemos das tradições semítica e greco-romana? Podemos admitir que existam também limites ao nosso entendimento de religião (…) e oração (…)?” (Panikkar, 2011, p. 117-8).

As narrativas de sofrimento e libertação

A linguagem privilegiada das permutas interculturais é a narrativa. Contar histórias gera um imediato e concreto sentido de copresença (…) do qual as experiências sociais que ocorrem em diferentes tempos, espaços e culturas se tornam mais facilmente acessíveis e inteligíveis (…). (…) a memoria passionis (uma categoria judaico-cristã) do mundo reside na lembrança e nas narrativas que recontam lutas exemplares de vida e de morte, de sofrimento e de libertação, de perdas e ganhos, que reforçam os sentimentos de alegria e medo, (…) dos quais emerge de baixo para cima uma (…) sabedoria partilhada do mundo.

Ao contrário da reconstrução histórica, a memoria passionis colapsa o passado, presente e futuro, vê forças nas fraquezas e possibilidades alternativas nas derrotas. A sabedoria que dela provém é tão contemplativa quanto ativa; é uma reserva mundial de lembrança e visão que converte o passado em energia que reanima o presente e potencia o ainda não ou o talvez do futuro. […] Os contadores de histórias são sempre coautores das (…) que ouviram dos seus predecessores.

Vejo aqui uma possibilidade para outro encontro frutuoso entre os direitos humanos e as teologias políticas progressistas. Narrar e contar histórias está na base da experiência religiosa, seja (…) de textos sagrados ou a de tradições orais sagradas. (…) mesmo a filosofia, a dogmática ou a exegese religiosas apenas se sustentam na medida em que assentam em acontecimentos, ditos e vidas exemplares concretas de pessoas e povos – sejam eles extraordinários ou ordinários, mas nunca anônimos. […] (…) Elie Wiesel: “Teologia não é mais que contar histórias” (1999, p. 94). Todos os profetas se exprimiam por parábolas para que os futuros crentes as pudessem reinterpretar à luz das suas próprias experiências e da sua liberdade intelectual.

A natureza convencional do discurso dos direitos humanos reside não só numa (…) promiscuidade (…) entre a proclamação abstrata dos direitos humanos e a resignação perante as violações sistemáticas (…), como (…) na trivialização do sofrimento humano contido nessas violações. Esta (…) decorre (…) do discurso normalizado (em sentido foucaultiano) das organizações de defesa dos direitos humanos, com (…) forte componente estatístico que reduz ao anonimato dos números o horror (…). Neutraliza-se (…) a presença desestabilizadora do sofrimento (…) na qual seria possível fundar a razão militante e a vontade radical da luta contra um estado de coisas que produz (…) o sofrimento injusto. Pela sua insistência na narrativa concreta do sofrimento das vítimas e da sua luta contra os opressores, as teologias políticas progressistas podem contribuir para tornar o sofrimento injusto numa presença intolerável que desumaniza tanto as vítimas quanto os opressores (…).

A presença do mundo antes ou para além da interpretação

A concepção intercultural dos direitos humanos (…) (Santos, 2006b, p. 433-70; 2014) visa fortalecer (…) a legitimidade das políticas de direitos humanos (…) como radicalizar as lutas que podem ser travadas em seu nome. A noção de interculturalidade destina-se a tornar inteligível a ideia de que o propósito dos intercâmbios interculturais é a interpretação, produção e partilha de significados.

É (…) necessário ir (…) além (…) e demonstrar que, se uma ecologia de diferentes concepções de dignidade humana vai fundamentar uma luta mais abrangente e radical (…), isso pressupõe a criação de momentos (…) intensos de copresença (…) em que a presença precede o significado. A presença é a coisa ou materialidade sobre a qual se constroem os significados. […] É uma forma de ser que, como Gumbrecht afirma (…), “se refere às coisas do mundo antes destas se tornarem parte de uma cultura” (2004, p. 70). É por meio do seu significado que as coisas se tornam culturalmente específicas e muitas vezes também incomensuráveis ou ininteligíveis para outras culturas. (…) estas “coisas” não são exteriores à cultura, são parte dela, mas, paradoxalmente, de uma forma não cultural. Possuem a capacidade pré-representacional de serem exteriores ao pensamento e à consciência, ao mesmo tempo que os fundamentam (…). São materiais e operam no nível do instinto, da emoção e do afeto. […] (…) Gumbrecht é (…) eloquente ao contrapor culturas que são dominadas pela presença (culturas-presença) e culturas que são dominadas pelo significado (culturas-significado) (2004, p. 79). (…) em todas as culturas existe presença e significado, mas a ênfase em uma ou outra varia (…). A cultura moderna ocidental é uma cultura de significado (…). (…) algumas culturas não ocidentais são mais bem compreendidas como culturas de presença.

(…) nas permutas interculturais, o papel da presença consiste em propiciar a geração de sentidos de comunidade, indiferentes à diversidade cultural e imediatamente evidentes. Uma pilha de corpos mutilados num campo de morte, o corpo esquelético de uma criança prestes a morrer de fome, a dor de uma mulher sobre o cadáver do seu jovem filho (…), todas estas presenças são dotadas de um poder que parece relativamente autônomo em relação aos significados que lhe podem ser atribuídos.

(…) também aqui vejo uma (…) contribuição da experiência religiosa progressista e da reflexividade teológica para fortalecer, expandir e radicalizar as lutas pelos direitos humanos. A presentificação do passado ou do outro por meio de ritos, rituais e sacramentos (…) desempenha um papel central na experiência religiosa (Asad, 1993). […] se gera um sentido intensificado de partilha e presença que, se for colocado ao serviço das lutas de resistência e libertação da opressão, pode (…) fortalecer e radicalizar a (…) transformação social. Não é por um capricho proselitista ou por excesso de zelo que todas as reuniões, encontros, protestos e ocupações de terras organizadas por um dos movimentos sociais mais importantes do nosso tempo – o Movimento dos Trabalhadores sem Terra (MST) do Brasil – começam com aquilo a que chamam a “mística”, um momento de silêncio, oração e canto, com os militantes de mãos dadas, em círculo, corpos físicos individuais transformando-se num corpo físico coletivo.

Canções e cânticos têm uma forte presença histórica nas lutas de resistência e libertação como forma de unir forças, vencer o desespero e ganhar coragem para lutar contra poderosos opressores. […] as religiões dos oprimidos e as teologias da libertação a que deram azo em tempos recentes possuem uma preciosa experiência através da qual os direitos humanos podem ganhar novas vozes, nova vitalidade e novas forças. Já mencionei o papel dos blues e dos espirituais na teologia negra. Outro exemplo (…) na maneira como a teologia caribenha da descolonização usa as canções redentoras de Bob Marley (Erskine, 1998) […].

A espiritualidade das/nas lutas materiais pela transformação social

(…) a distinção material/espiritual é uma distinção de base ocidental. Nas suas análises da epistemologia e da religião na África, Ellis e Haar argumentam (…) que os modelos existentes de relacionamento entre a religião e a política são baseados na presunção de uma distinção estrutural entre o mundo visível ou material e o mundo invisível, considerando que esta distinção rígida não reflete as ideias sobre a natureza da realidade prevalecentes na África. (…) dentre as características (…) marcantes das epistemologias africanas encontra-se a convicção de que os aspetos materiais e imateriais da vida não podem ser separados, embora possam distinguir-se entre si, tal (…) duas faces de uma moeda (…).

Esta nota (…) pode ajudar-nos a ter um entendimento mais profundo das lutas contra-hegemônicas pelos direitos humanos. As lutas contra-hegemônicas pelos direitos humanos visam a mudança das estruturas sociais que são responsáveis pela produção sistemática de sofrimento humano injusto. São (…) materiais no sentido em que o seu ímpeto político deve dirigir-se à economia política subjacente à produção e reprodução de relações sociais desiguais (…).

(…) as lutas contra-hegemônicas pelos direitos humanos são muitas vezes de alto risco, incluindo o risco de vida, lutas contra inimigos muito poderosos e desprovidos de escrúpulos. Têm, portanto, de ser baseadas numa vontade política fortemente motivada, (…) vontade que tem de ser tanto coletiva como individual, (…) não existe ativismo coletivo sem ativistas individuais.

(…) esta vontade não poderá ser construída sem uma visão crítica (…) radical e desestabilizadora da injustiça atual e sem visões credíveis de uma sociedade alternativa melhor. Nos últimos dois séculos, dominaram duas visões muito fortes de uma tal sociedade alternativa: o socialismo e a libertação do colonialismo. Estas (…) estavam (…) relacionadas com duas visões críticas igualmente fortes das sociedades contemporâneas: a crítica anticapitalista e a crítica anticolonial. […] O secularismo moderno impediu a religião de ter qualquer participação significativa nestas visões. (…) no mundo cristão, a religião institucionalizada fez as pazes com as estruturas de poder existentes, por mais injustas, sequestrou a força motivadora contida na espiritualidade e transformou os crentes em indivíduos em busca da salvação individual noutro mundo além da morte. Foi este tipo de religião que Marx tão acertadamente criticou.

No nosso tempo, (…) as teologias políticas progressistas têm partido da crítica da privatização moderna da religião para desenvolver novas concepções de salvação (…) que podem servir de fundamento às lutas pela transformação social, pela justiça e pela libertação. Para estas teologias a conversão a Deus implica uma conversão a um próximo necessitado. […] Reside aqui (…) a razão pela qual (…) muitos dos ativistas dos direitos humanos que pagaram com as suas vidas o empenho que puseram nas lutas pela justiça social eram adeptos da teologia da libertação em uma das suas (…) versões.

A intensidade da experiência religiosa é importante, mas o mais importante é a sua orientação existencial. É vivenciada como um propósito individual sem qualquer ligação relevante com as coisas do mundo ou, pelo contrário, é vivenciada como uma forma de partilhar com os outros a visão transcendental de um Deus sofredor que se manifesta nos povos sofredores deste mundo injusto?

[Foto: Landless Workers Movement (MST — Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra)]

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Se Deus fosse um ativista dos direitos humanos [Capítulo 1 – Parte IV]

SANTOS, Boaventura de Sousa. A globalização das teologias políticas. In: _______ Se Deus fosse um ativista dos direitos humanos [livro eletrônico]. 1. ed. São Paulo: Cortez, 2014, p. 23-27.

Teologias tradicionalistas e progressistas

As teologias tradicionalistas intervêm na sociedade política defendendo, como a melhor solução para o presente, as regulações sociais e políticas do passado. Fazem uso dos dados teológicos de modo a enfatizar as ideias políticas que reconduzem a autoridade política à autoridade religiosa com o propósito de proporcionar à política a estabilidade e imunidade que a religião possui. (…) seguindo o pensamento de Moosa, seria possível incluir (…) os “salafitas puritanos”, ainda que o autor considere que a mesma atitude se verifica “entre os modernistas, revivalistas e (…) tradicionalistas de diferentes quadrantes” (…). Afirmam, como condição prévia:

o nosso entendimento do islã deve ser completamente despido de todos os acréscimos históricos e culturais, todas as interpretações e elaborações passadas devem ser abandonadas. O credo deste grupo é o retorno ao Corão, e para alguns, o envolvimento com uma ínfima parte da tradição profética autêntica, que incrivelmente conduzirá à recuperação do “verdadeiro” islã (2008, p. 568).

No Cristianismo, uma teologia tradicionalista significa (…) que a distinção entre a religião dos oprimidos e a (…) dos opressores, não possa ser aceite. (…) é visto como a religião do opressor – uma religião espiritualista, burguesa, sem posição crítica em face das injustiças estruturais (Metz, 1980) – (…) o padrão de experiência religiosa legítima, ao mesmo tempo que a religião dos oprimidos é estigmatizada ou ignorada. […]

Pelo contrário, as teologias cristãs progressistas fundam-se na distinção entre a religião dos oprimidos e a (…) dos opressores e criticam severamente a religião institucional como sendo a religião dos opressores. Uma vez que (…) não é legítimo separar a análise da religião da análise das relações de produção, a religião dos opressores é, na modernidade ocidental, uma “religião do capitalismo”. No caso das teologias da libertação, a crítica do capitalismo e da sua “idolatria do mercado” (Assmann e Hinkelammert, 1989; Sung, 2011b) – muito influenciada pelo Marxismo, (…) na sua versão latino-americana – está no centro de uma renovação teológica que incide sobre os pobres e oprimidos, considerados como uma entidade coletiva geradora de libertação. […]

A teologia da libertação concebe a fé como libertadora (…) em que possa contribuir para a libertação estrutural e coletiva dos pobres. Estes constituem tanto o objeto desta teologia (a sua preocupação central) como o seu sujeito (visto que são protagonistas da história e da sua interpretação) e o lugar social a partir do qual a teologia deverá ser enunciada. (…) a categoria do “pobre” se desdobra contextualmente, abrangendo as vítimas do capitalismo e os povos oprimidos pelas potências coloniais e pós-coloniais (afrodescendentes, indígenas), (…) o “melting pot” resultante de encontros (Dussel, 2009), mas também de violações de culturas e de corpos (Gonzalez, 2004).

Por isso, estas teologias têm-se aberto cada vez mais a uma perspectiva não só ecumênica, como também inter-religiosa. […] (…) o diálogo e a teologia inter-religiosos resultam da percepção de que a dimensão global dos problemas que (…) se colocam à humanidade exigem respostas (…) à escala global. Contudo, (…) são críticas de projetos globais que se constituam como novas formas de poder religioso sobre o espaço público. (…) diz Tamayo: “A libertação necessita de todas as religiões, de todas as culturas, para que possa ser integral. O matrimônio entre a libertação, as culturas e as religiões não é um matrimônio ‘por poderes’” (2005, p. 12). O projeto de teologia intercultural, defendido (…) por Fornet-Betancourt (2006), consiste na construção de uma teologia da libertação (…) assente na crítica da assimetria epistemológica existente, resultante da globalização neoliberal e da primazia concedida ao conhecimento científico-técnico ocidental. […]

Segundo as teologias progressistas cristãs, a separação do espaço público e privado funcionou sempre como forma de domesticar ou neutralizar o potencial emancipador da religião, (…) que contou com a cumplicidade e (…) com a participação ativa das teologias conservadoras. […] (…) “a fé dos cristãos é uma práxis na história e na sociedade” (Metz, 1980, p. 73). […]

As teologias cristãs progressistas insistem (…) na história do movimento sociológico gerado por Jesus. (…) este movimento mostra que a religião não emerge do domínio privado. Para o bem e para o mal, a religião nunca abandonou o domínio público (…). No que respeita às teologias pós-coloniais, (…) versão específica das teologias progressistas, a fé é considerada (…) uma instância crítica dos imperialismos políticos reiterados pelas formas imperialistas de Cristianismo e (…) uma afirmação da positividade da hibridez, dos “espaços intermédios”. […]

Algumas teologias progressistas islâmicas, das quais Ali Shariati (1980, 2002) pode ser considerado (…) destacado, tecem críticas (…) radicais ao capitalismo ocidental (…), considerando-o uma fonte de desumanização e exploração. Shariati considera que no dealbar de uma nova era, pós-capitalista e pós-comunista, o ser humano encontraria um novo caminho de salvação, no qual o Islã desempenharia um papel fundamental, (…) por oferecer uma interpretação espiritual do universo como por constituir um novo humanismo. (…) o Islã teria (…) de se libertar “dos efeitos de séculos de estagnação, superstição, e contaminação, (…) apresentado como uma ideologia viva” (1980, p. 94). (…) Dabashi (2008) equaciona uma teologia da libertação islâmica que passa pela libertação do imperialismo (…) e (…) uma abertura cosmopolita, dialogante com as diversas culturas.

As teologias feministas têm um papel (…) relevante na formulação das teologias progressistas, tanto nas versões cristãs como nas islâmicas. (…) criticam a associação da religião e das suas estruturas hierárquicas à ordem patriarcal e à subsequente legitimação do patriarcalismo e da submissão das mulheres. Reconstroem a teologia e a leitura dos textos fundacionais com base nas experiências emancipatórias das mulheres no interior das religiões.

As distinções entre diferentes tipos de teologia (…) permitem ver que as relações entre os fenômenos religiosos emergentes, as formas de globalização e os direitos humanos não são unívocas ou monolíticas. No tocante à globalização, todas as teologias políticas são não hegemônicas, uma vez que são marginais, (…) em relação à eficácia exclusiva e exclusivista atribuída às instituições seculares que sustentam a globalização neoliberal, (…) em relação à natureza predominantemente secular das lutas contra ela. (…) as teologias pluralistas progressistas contêm um forte potencial contra-hegemônico. Ao reconhecer a (…) autonomia do espaço secular e ao fazer um julgamento crítico das injustiças que nele ocorrem, a religião dos oprimidos pode ser (…) fonte de articulação entre (…) movimentos religiosos e seculares que lutam por uma sociedade mais justa e mais digna.

[Arte: Desconhecido, capa do “Directorio General para la catequesis”, 2020]

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O Futuro é Muito Tempo [19]

Louis Althusser, O futuro é muito tempo, Edições Asa, 1992.

Foi então que Hélène e eu conhecemos as piores provações da nossa vida. (…) Não sei que regime de vida impunha a Hélène (e sei que posso ter sido capaz do pior), mas ela declarou com uma resolução que me apavorou que já não era capaz de viver comigo, que eu era para ela um monstro e que queria deixar-me para sempre. (…)

(…) Então Hélène começou a desenvolver um outro tema, latente nela havia meses, mas que desta feita assumiu uma forma medonha. Declarou-me que não tinha outra solução, dado o monstro que eu era e o sofrimento inumano que lhe impunha, a não ser matar-se. Ostensivamente, juntava e exibia as drogas necessárias para o seu suicídio, mas falava também de outros meios, incontroláveis: o nosso amigo Nikos Poulantzas não se suicidara recentemente atirando-se, numa crise aguda de perseguição, do alto do vigésimo segundo andar da torre de Montparnasse? Outro atirando-se para debaixo de um caminhão pesado, e um terceiro para debaixo de um comboio? Citava-me estes meios, como se me desse a escolher entre eles. E asseverava-me com a força de uma convicção, e sobretudo num tom que eu conhecia demasiado bem para poder duvidar seriamente dela que aquilo não eram palavras ditas no ar mas uma decisão irrevogável. Simplesmente, escolheria quer o seu meio, quer a sua hora, evidentemente que sem me prevenir.

(…) O cúmulo aconteceu um dia em que ela me pediu muito simplesmente que a matasse eu próprio, e essas palavras, impensáveis e intoleráveis no seu horror, fizeram estremecer todo o meu ser. Ainda hoje me fazem estremecer. Quereria ela assim comunicar-me de certo modo que era de fato incapaz de me abandonar, mas também de se matar pela sua própria mão? (…)

No entanto o meu analista interviera. Devo-o ter visto pela última vez no dia 15 de Novembro, e ele disse-me que aquela situação não podia continuar, que eu tinha que aceitar ser hospitalizado. (…) Ele telefonara para o Vésinet, e eu poderia lá ser recebido dentro de dois ou três dias. Penso que disse que não, mas seja como for não me lembro do que respondi ao certo.

Os dois ou três dias passaram, nada aconteceu. Soube mais tarde que na quinta-feira dia 13 e na sexta-feira dia 14 de Novembro, Hélène esteve com o meu analista e que lhe implorou um prazo de três dias antes de qualquer hospitalização. O meu analista deve ter sem dúvida cedido à sua súplica, e ficou assente que, salvo novidade, eu entraria no Vésinet na segunda-feira dia 17 de Novembro. (…)

No domingo 16 de Novembro às nove horas, saindo de uma noite impenetrável e onde nunca pude mais tarde penetrar, achava-me aos pés da minha cama, em roupão, com Hélène estendida diante de mim e eu continuava a lhe massagear o pescoço, com a impressão intensa de ter os antebraços muito doridos: evidentemente por causa da massagem. Depois compreendi, não sei como, talvez pela imobilidade dos olhos dela e por uma pobre ponta de língua entre os dentes e os lábios, que ela estava morta. Precipitei-me, aos gritos, do nosso apartamento para a enfermaria, onde sabia que ia encontrar o dr. Étienne. O destino abatera-se.

p. 264-267

Eu era então muito conhecido, normalien, filósofo, marxista e comunista, casado com uma mulher pouco conhecida mas aparentemente notável. No seu conjunto, a imprensa francesa (e internacional) foi corretíssima. Mas certos jornais saciaram-se alegremente: não citarei os seus nomes nem as assinaturas por vezes célebres que deram cobertura a artigos ao mesmo tempo malevolentes e delirantes. Cinco temas foram neles desenvolvidos pelos seus autores com uma manifesta complacência satisfeita: a complacência de uma desforra política a que o «crime» proporcionava finalmente ocasião de acertar velhas contas, não só com a minha pessoa, mas com o marxismo, o comunismo e… a filosofia, para já não falar da École Normale. (…) No que foi publicado em França e no estrangeiro, puderam com efeito ler-se artigos sobre os temas seguintes: 1) marxismo = crime: 2) comunismo = crime; 3) filosofia = loucura; 4) o escândalo de que um louco, há muito louco, tenha podido ensinar na Normale ao longo de mais de trinta anos gerações de filósofos que encontramos por toda a parte nos liceus, encarregados dos «nossos filhos»; e 5) o escândalo de que um indivíduo criminoso tenha podido beneficiar da proteção aberta do «establishment»: pense-se na sorte que sofreria um simples argelino que estivesse na sua situação, atreveu-se mesmo a sugerir um jornal «centrista». Althusser escapou a essa sorte graças às «altas proteções» de que goza: o establishment da Universidade e dos intelectuais de toda a casta formaram automaticamente um bloco para fazerem o silêncio à sua volta e para protegerem um dos seus dos rigores da «regra», ou talvez mesmo da lei. Em suma, eu fora protegido pelo AlE do ensino de que era membro.

p. 269-270

Mais tarde soube que, dois dias a seguir ao meu internamento, o juiz de instrução encarregado do caso estivera, segundo as regras, em Sainte-Anne, para me interrogar, mas ao que parece eu estava então num estado tal que ele não conseguiu arrancar-me qualquer declaração.

Não sei se me administraram antidepressivos (além dos imaos) em Sainte-Anne. Só me lembro de ter, todas as noites, ingurgitado enormes doses de cloral, esse velho medicamento que continua eficaz, e que me fazia, para minha grande satisfação, dormir tão bem (…). Mas este prolongamento do sono era-me agradável, tudo o que possa servir para escapar ao brutal retorno da angústia é bem-vindo. Em contrapartida, sei que me administraram uma dúzia de choques: portanto devia estar muito deprimido. Naturalmente choques com narcose e curare, como tinha recebido na Vallée-aux-Loups, e noutras ocasiões até no Vésinet, antes da descoberta dos imaos. Ainda estou a ver o jovem médico de cara rosada que acompanhava a «máquina» elétrica até ao meu quarto e, antes de passar à ação, me dirigia longos e, se assim posso dizer, joviais discursos sobre os choques e as suas vantagens. Assim entrava na «pequena morte» sem demasiada apreensão, apesar de manter por ela o antigo horror.

p. 272

A loucura, o hospital psiquiátrico, o internamento podem assustar certos homens ou mulheres, que não conseguem abordar ou enfrentar essa ideia sem uma grande angústia interior, que pode chegar a impedi-los quer de visitar o amigo, quer de intervir seja no que for. A este propósito, não posso deixar de evocar o heroísmo do nosso querido Nikos Poulantzas, que tinha um terror medonho de qualquer hospital psiquiátrico, e que contudo me visitou sempre regularmente por altura dos meus internamentos, e sempre me animou, quando devia torcer-se por dentro de angústia, coisa que só muito tarde eu soube. E lembro-me até de que ele foi quase o único que eu aceitava receber, no ano que precedeu a morte de Hélène. Eu não sabia então que ele já uma vez tentara matar-se, história que contava como se se tratasse de um mero acidente, durante a noite, numa grande avenida um caminhão pesado colhera-o de lado… na realidade fora ele que se atirara para debaixo das rodas, revelar-me-ia a sua companheira. Ora estive com Nikos não em minha casa, mas na rua perto da École. Soube depois que ele sofria já da terrível crise de perseguição a que poria fim por meio de um suicídio espetacular.

p. 273

Depois do que vivi, acho-me capaz de compreender tudo, mesmo aqueles que, a certa altura, pareceram afastar-se sem apresentarem as suas razões. Mas além deste encontro espantoso com Nikos, a visita que mais me comoveu nesta ordem de ideias, recebi-a um dia em Soisy: um dos meus «antigos alunos» que se tornara um amigo muito querido, um homem extraordinário, veio ver-me. Pediu-me para não dizer nada mas para o escutar. Durante duas horas, só me falou de si próprio, da sua infância terrível, do pai que andara pelos hospitais psiquiátricos, e acabou por me dizer: vim ver-te para te explicar por que é que, é mais forte do que eu, não posso vir ver-te. Um ano mais tarde, em análise, preparou demoradamente um suicídio cujo projeto nunca confiara a ninguém, nem sequer à corajosa jovem com quem vivia e trabalhava, e deitou-se às águas do Larne, com as veias abertas e pesadas pedras a servirem-lhe de lastro.

p. 274

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O Futuro é Muito Tempo [18]

Louis Althusser, O futuro é muito tempo, Edições Asa, 1992.

Gostaria apenas de dizer aqui que o que de mais precioso achei em Spinoza foi a natureza do «conhecimento do terceiro gênero», o de um caso ao mesmo tempo singular e universal (…). Que o meu «caso» tenha sido um «caso» desta ordem, como todo o «caso médico», «histórico» ou «analítico», obriga a que ele seja reconhecido e tratado na sua singularidade; mas que esse caso singular seja universal, é o que ressalta das constantes repetidas (e não das leis verificáveis-falsificáveis à maneira de Popper) que afloram em cada caso e permitem induzir o tratamento teórico e prático de outros casos singulares. Maquiavel e Marx não procedem de outro modo, numa lógica que passou quase despercebida e que será necessário desenvolver.

O que devo também direta e pessoalmente a Spinoza é a sua espantosa concepção do corpo, que possui «potências desconhecidas por nós», e da mens (o espírito) que é tanto mais livre quanto mais o corpo desenvolve os movimentos do seu conatus, a sua virtus ou fortitudo. Spinoza oferecia-me assim uma ideia do pensamento que é pensamento do corpo, ou melhor, pensamento com o corpo, ou melhor, pensamento do próprio corpo. Esta intuição concordava com a minha experiência de apropriação e de «recomposição» do meu corpo em ligação direta com o desenvolvimento do meu pensamento e dos meus interesses intelectuais.

O que devo a Maquiavel é a ideia-limite perfeitamente assombrosa de que a fortuna na sua essência não é mais do que vazio, e por excelência o vazio interno do Príncipe, o que coloca em primeiro plano no equilíbrio e no jogo das suas paixões o papel da raposa, que permite justamente introduzir entre o sujeito-Príncipe e as suas paixões uma distância onde o ser deve poder aparecer como o não-ser e o não-ser como o ser. Esta concepção assombrosa, por pouco que a explicitemos, concorda de fato com a experiência analítica mais profunda, a da tomada de distância perante as próprias paixões, digamos mais exatamente perante a própria contratransferência. O que li em Spinoza e Maquiavel, vivera-o eu concretamente e foi sem dúvida por isso que me interessou tanto «redescobri-lo» neles. Porque no fundo, o que proclamava Maquiavel senão, muito antes de Tchernitchevski e de Lênin, o problema e a pergunta: que fazer? E que nos indicava já Maquiavel, senão o fato capital de, sob a própria figura do Príncipe, os partidos políticos, entre os quais o PCF serem partes integrantes do aparelho ideológico de Estado, o aparelho político ideológico constitucional parlamentar, com tudo o que isso implica na formação ideológica das massas populares que votam e «acreditam», com a ajuda do Partido, no sufrágio universal? É verdade que não há sufrágio universal para Maquiavel, mas há o aparelho ideológico de Estado do tempo, aquele que é constituído pela imagem pública-popular da personagem do Príncipe. Pequena diferença apenas, mas cujo estudo atento é extremamente instrutivo até para os nossos partidos, e antes de mais para os PC que visam, como Gramsci tão bem compreendeu, a hegemonia ideológica, via de acesso à tomada pura e simples do aparelho de Estado — não através do seu cerco pela chamada «sociedade civil», mas através de uma luta monolítica direta das organizações políticas operárias contra o próprio aparelho de Estado.

p. 254-255

Do lado de Hélène, com toda a certeza: as suas entrevistas com o meu analista tinham alcançado nela resultados manifestos aos olhos de todos. Ela estava infinitamente mais paciente, menos cortante, controlava muito melhor as suas reações no trabalho e, só por isso, arranjara por lá amigos que a estimavam e dela gostavam deveras, referindo-se a ela como a uma personalidade de exceção que transformara, pelo seu conhecimento e compreensão dos mecanismos sociais, políticos e ideológicos, os próprios métodos dos inquéritos sociológicos que eram uma das especialidades da casa, a Sedes. Apurara uma modalidade original de investigação de campo que conquistara numerosos adeptos entre os seus colegas de trabalho. Já não era só eu a «mostrar-lhe» os meus amigos, era ela quem me convidava para cada dos dela.

p. 256

Pelo meu lado, as coisas estavam também a melhorar. É verdade que — e sem saber ao certo por que — tinha cada vez mais dificuldade em dar aulas, esforçando-me com tenacidade, mas sem grande efeito. Entrincheirava-me na correção das dissertações e das exposições dos alunos, que para eles comentava em privado, e em certas intervenções pontuais sobre este ou aquele ponto da história da filosofia. Mas as minhas relações com as minhas amigas mulheres tinham mudado seriamente.

p. 257

Refletindo acerca dos limites estreitos em que tínhamos trabalhado sobre Marx e o marxismo, e para extrair da minha autocrítica antiteoricista as suas consequências práticas, propus a constituição de um grupo de pesquisa para estudar não já uma teoria social ou política dada, mas para reunir elementos amplamente comparativos sobre o tema da relação material aleatória entre por um lado os «movimentos populares» e por outro lado as ideologias que eles se tinham atribuído ou investido, e por fim as doutrinas teóricas que os tinham coroado. Vê-se por aqui que tencionava propor um trabalho de investigação sobre a relação concreta entre o aspecto prático dos movimentos populares e a sua relação (direta, indireta, perversa?) com as ideologias e as doutrinas teóricas que lhes tinham estado ou continuam a estar associadas no decorrer da história. (…) Consegui o apoio da direção da École que me concedeu alguns fundos e a promessa de mais apoios por parte do ministério; obtive o acordo de uma boa centena de historiadores, sociólogos, politólogos, economistas, epistemólogos e filósofos de todas as competências e tendências, promovi na École, em Março de 1980, uma reunião inaugural e diversos grupos começaram a trabalhar. Intencionalmente, queríamos trabalhar sobre «casos» tão diversos como o movimento operário ocidental, o Islão, a China, o cristianismo, os campesinatos, para chegarmos, se possível, a resultados comparativos.

p. 258-259

É preciso compreender em que estado se encontraria Hélène. Durante anos, tivera que suportar o peso e a angústia das minhas depressões e dos meus estados hipomaníacos, não só das minhas depressões mas, o que era ainda infinitamente mais duro, os intermináveis meses (ou semanas) que eu vivia, numa angústia crescente, lutando e recorrendo constantemente a ela, antes de me decidir pela hospitalização. Quando estava hospitalizado, ela vivia na solidão, tendo por único fito ir visitar-me, praticamente todos os dias, e voltando sozinha para uma casa vazia, a sós com a sua angústia (…) E, como sabia que eu estava exposto a recaídas, vivia os intervalos de melhoras como a expectativa repetida da recaída, sobretudo quando eu me achava em estado de hipomania sendo então realmente intolerável para ela de tal maneira as minhas provocações e as minhas agressões ininterruptas eram ofensivas, quase mortais. Isto ela vivia-o sozinha e, indiferença ou falta de tato ou qualquer outra razão, ninguém, com raras exceções, entre os meus amigos a levava aparentemente ou deveras em linha de conta.

p. 261

Depois da morte de Hélène. o meu analista confiou-me uma hipótese que não fora ele a formular, mas recolhera da boca do dr. Bertrand Veil, que eu consultara outrora por complicações aparentemente de natureza orgânica, e que possuía uma vastíssima cultura médica e também biológica. Esse médico pensava que a minha operação, ou seja antes do mais a minha anestesia profunda, teria podido provocar em mim um «choque biológico» cujo mecanismo, que poupo ao leitor, me foi mais tarde explicado em pormenor (em jogo estar a sobretudo o metabolismo das drogas pelo fígado): ter-se-ia tratado de uma grave perturbação dos meus «equilíbrios biológicos», provocada pelo choque operatório e sobretudo pelo choque anestésico, acarretando efeitos invertidos e paradoxais.

Seja como for, entrei num estado de semiconsciência, por vezes mesmo de inconsciência total e de confusão mental. Já não dominava os movimentos do meu corpo, caía constantemente, vomitava a todo o momento, deixara de ver com nitidez, urinava de maneira desordenada; deixara de dominar a minha linguagem, trocando uma palavra por outra, as minhas percepções, que não era capaz nem de acompanhar nem de articular, nem a fortiori a minha escrita, e apresentava formas de discurso delirantes. Além disso, não parava de viver à noite pesadelos atrozes, que se prolongavam demoradamente no estado de vigília, e «vivia» os meus sonhos no estado de vigília, quer dizer, agia segundo os temas e a lógica dos meus sonhos, tomando a ilusão dos meus sonhos pela realidade, e achava-me incapaz de distinguir então em estado de vigília as minhas alucinações oníricas da simples realidade.

Todo este sistema «patológico» era acompanhado por um delírio suicidário. Condenado à morte e ameaçado de execução, só tinha um recurso: antecipar a morte infligida matando-me preventivamente. Imaginei todas as espécies de soluções mortais, e além disso queria não só destruir-me fisicamente, mas destruir também todo o rasto da minha passagem pela terra: em particular destruir até ao último os meus livros e todas as minhas notas e igualmente incendiar a École, e ainda, «se possível», suprimir, já agora, a própria Hélène.

p. 262-263

Publicado em Autobiografias, Ciência Política, Filosofia, História, Literatura, Marxismo, Marxismo, Psicanálise, Psicologia, Psiquiatria, Sociologia, Teoria Política

O Futuro é Muito Tempo [16]

Louis Althusser, O futuro é muito tempo, Edições Asa, 1992.

Num tempo em que o primeiro «filósofo cabelo», «filósofo unha» — como escreveu Marx da «decomposição» da filosofia hegeliana — pensa que o marxismo está morto e definitivamente enterrado, em que reinam os pensamentos mais «estafados» contra o pano de fundo de um ecletismo inverossímil e de uma pobreza teórica, a pretexto de uma chamada «pós-modernidade» onde, de novo, «a matéria teria desaparecido» para dar lugar aos «imateriais» da comunicação (esta nova salada teórica, que naturalmente se vale de índices impressionantes, os da nova tecnologia), continuo profundamente apegado, não por certo à letra — à qual nunca me ative —, mas à inspiração materialista de Marx.

Sou otimista: creio que esta inspiração atravessará todos os desertos e que mesmo que assuma outras formas — o que é inevitável num mundo em plena transformação — há de reviver. E também pela seguinte razão de peso: o pensamento presente é teoricamente tão fraco que só o reavivar das exigências elementares de um pensamento autêntico — o rigor, a coerência, a clareza — pode no devido momento contrariar o espírito do tempo de tal maneira que a sua simples manifestação não poderá deixar de impressionar os espíritos desamparados pelo curso do mundo.

[…] É certo que Debray não vai muito longe, mas o simples recordar de fatos tão patentes contra a imensa ideologia reinante tem uma função, como Foucault gostava de dizer, de «decapagem». E o que é a decapagem? A redução crítica da camada ideológica das ideias permitindo finalmente o contato com o real «sem adições estranhas». Uma simples lição, evidentemente limitada, mas realmente materialista.

p. 236

Não sei se a humanidade chegará um dia a conhecer o comunismo, essa visão escatológica de Marx. O que sei em todo o caso é que o socialismo, essa transição forçada de que Marx falava, é «merda» como o proclamei em 1978 em Itália e em Espanha perante auditórios desconcertados pela violência dos meus termos. Também a este propósito contei uma «história». O socialismo é um rio muito largo, de travessia perigosíssima. Em breve teremos uma imensa barca na areia: a das organizações políticas e sindicais para onde todo o povo pode subir. Mas para transpor os sorvedouros, é necessário um «timoneiro», o poder de Estado nas mãos dos revolucionários, e na grande nave é necessário que reine a dominação de classe dos proletários sobre todos os remadores estipendiados (existe ainda o salário e o interesse privado), senão tudo se vira! — a dominação do proletariado. Põe-se na água a nave imensa, e durante todo o percurso é preciso vigiar os remadores exigindo deles uma obediência estrita, afastá-los do seu posto se desfalecem e substituí-los a tempo, ou sancioná-los. Mas se este imenso rio de merda for finalmente transposto, então até ao infinito será a praia, o sol e o vento de uma jovem Primavera, toda a gente desce, já não há luta entre os homens e os grupos de interesses uma vez que já não há relações mercantis mas profusão de flores e frutos que cada um poderá colher pura sua maior alegria.

p. 237

Creio com efeito — e julgo neste ponto encontrar-me na linha de pensamento de Marx — que a única definição possível do comunismo — se um dia este existir no mundo — é a ausência de relações mercantis, portanto de relações de exploração de classe e de dominação do Estado. Creio que existem deveras no nosso mundo presente numerosíssimos círculos de relações humanas das quais se encontra ausente a mínima relação mercantil. Por que via estes interstícios de comunismo poderão conquistar o mundo inteiro? Ninguém pode prevê-lo — e pelo menos isso não se fará seguindo o exemplo da via soviética. Será através da conquista do poder de Estado? Sem dúvida, mas esse ato empenha-nos no socialismo (de Estado — necessariamente de Estado) que é «merda». […] Se há uma esperança, é nos movimentos de massas, dos quais (graças a Hélène, entre outras pessoas) sempre pensei que detinham um primado sobre as organizações políticas. (…) acredito na lucidez da inteligência e no primado dos movimentos populares sobre a inteligência. A esse preço, porque não é a instância suprema, a inteligência pode acompanhar os movimentos populares, incluindo e sobretudo para evitar que eles recaiam nas aberrações passadas e para os ajudar a descobrir formas de organização realmente democráticas e eficazes. Se apesar de tudo podemos alimentar alguma esperança de ajudar a inflectir o curso da história, é aqui que ela está e só aqui.

p. 238-239

Publicado em Autobiografias, Ciência Política, Estudos de Gênero, Filosofia, Literatura, Marxismo, Marxismo, Psicanálise, Psicologia, Psiquiatria, Sociologia, Teoria Política

O Futuro é Muito Tempo [13]

Louis Althusser, O futuro é muito tempo, Edições Asa, 1992.

Não concebia que se pudesse ser um filósofo pensando pela própria cabeça na École e um cãozinho pela trela de «Casa» no Partido. A unidade da prática e da teoria, essencial para o marxismo e para os comunistas (Courrèges!) excluía para mim — o que será óbvio para toda a gente — a existência da dupla verdade que me lembrava as práticas tão certeiramente criticadas aos padres por Helvétius e d’Holbach no século XVIII.

p. 191

Mas em 1945-1960 estávamos muito longe disto. Tínhamos que nos «arranjar» com o que havia. Havia Descartes, é verdade, mas através de que interpretações espiritualistas! com a exceção das de Étienne Gilson, de Émile Bréhier, e também de Henri Gouhier; Gouhier polemizando contra Alquié, que interpretava Descartes em termos espiritualistas. Havia sem dúvida Martial Guéroult, esse erudito sem concessões na sua leitura dos autores, para dizer a verdade o único grande historiador do nosso tempo, do qual descendem Jules Vuillemin e Louis Guillermit. Mas Guéroult era então somente um grande «comentador», e ninguém adivinhava que tinha na cabeça uma teoria estrutural dos sistemas filosóficos. Vuillemin e Guillemin e Guillermit eram praticamente desconhecidos.

[…]

Julgo saber que Bouveresse me acusou (e talvez me continue a acusar ainda) de ser o responsável pela decadência filosófica francesa, do mesmo modo que no seu último livro cobriu de lama Derrida, esse gigante apelidado, como Hegel outrora, de «cão morto» (se as palavras não são as mesmas, é-o a coisa). Também entre os filósofos há delírios declarados.

p. 193

Quanto a mim, que sentia a necessidade de intervir em filosofia por razões de ideologia e política, tinha de me «arranjar» de facto com o que havia e com os conhecimentos de que dispunha: um pouco de Hegel, muito Descartes, pouco Kant, bastante Malebranche, um pouco de Bachelard (Le Nouvel Esprit scientifique), muito Pascal, um pouco de Rousseau ao tempo, um pouco de Spinoza, um pouco de Bergson e a História da Filosofia de Bréhier, meu livro de cabeceira, e ainda, naturalmente, um pouco mais tarde bastante Marx, o único capaz de nos arrancar à confusão dos gêneros.

p. 193-194

Até ao dia em que, depois do meu artigo sobre «Contradição e sobredeterminação» e de uma resposta virulenta de Gilbert Mury sobre o «monismo», inspirada por Roger Garaudy então ainda todo-poderoso, Cogniot organizou um «processo teórico» nas instalações do laboratório «Henri Langevin» de Orcei que presidiu às sessões, rodeado da «nata» filosófica e política de La Pensée. Era, por comparação com o Conselho Comunal, uma comédia insignificante (…) Como de costume desenhei no quadro alguns esquemas e respondi às críticas. Ao fim de seis semanas, vi Cogniot começar a sorrir: no fundo, eu era um normalien como ele e percebi que, se não o convencera, pelo menos o desarmara. Da última vez que fui convocado, passado um mês e meio, respondi simplesmente: «Penso ter mais ou menos respondido, e creio que as instâncias teóricas do Partido, que têm muito de que se ocupar, fariam bem ao interromper este processo e tratar de questões mais urgentes.» E não compareci.

p. 194

Graças a Jacques Martin, descobri finalmente dois pensadores aos quais devo quase tudo. Em primeiro lugar Jean Cavaillès, do qual me contentava apenas com certas fórmulas («o processo não de uma dialética mas de um conceito), e Georges Canguilhem, homem com a fama de ter um feitio impossível como o meu avô e como Hélène, mas de fato como ele e como ela um homem maravilhoso de inteligência e de generosidade. Acabou, ante a insistência dos seus amigos, por aceitar apresentar a sua candidatura ao ensino superior. Escrevera um livro de inspiração nietzscheana sobre o normal e o ilógico. (…) Aprendi assim com ele várias lições decisivas: primeiro que a chamada epistemologia à qual eu parecera consagrar-me absurda fora da história das ciências; em seguida, que esta história, longe de obedecer à lógica das Luzes, podia desembocar nas suas descobertas a partir daquilo a que ele chamava, quase como nós, «ideologias científicas», representações filosóficas atuando sobre a elaboração, as concepções e até mesmo conceitos científicos, e com frequência de maneira absolutamente paradoxal. (…) O seu exemplo deu-me, afastou-nos (porque Balibar e Macherey e Lecourt seguiram-no mais de perto do que eu) do projeto idealista que inspirava as minhas primeiras definições teoricistas da filosofia como teoria da prática teórica. Dizer, da prática das ciências, concepção quase positivista em que a filosofia é como que a «ciência das ciências», definição que me apressei a retificar no prefácio da edição italiana de Ler o Capital (em 1966).

p. 195

E quando chegou a moda da ideologia «estruturalista», que apresentava a vantagem de romper com todo o psicologismo e todo o historicismo, pareceu então que eu seguia esse movimento. Não encontrávamos em Marx a ideia não de combinatória (de elementos arbitrários) mas de combinação de elementos distintos de molde a constituir a unidade de um modo de produção? (…) Ora, desde o início, insistíramos na diferença estrutural entre combinatória (abstrata) e combinação (concreta), âmago de todo o problema. Mas quem o viu? Ninguém atendeu à diferença. Fui acusado em toda a parte de estruturalismo, de justificar a imobilidade das estruturas na ordem estabelecida, e a impossibilidade da prática revolucionária, quando afinal eu fizera mais do que esboçar a propósito de Lênin uma teoria da conjuntura. (…) O espírito do tempo, reforçado se possível pelos equívocos esquerdistas da prodigiosa revolta de 68, eram as demagogias do coração e do vivido, e de modo nenhum a teoria. Raros eram os que aceitavam compreender quais os meus objetivos e as minhas razões. E quando o Partido abandonou a ditadura do proletariado, como se abandona um cão, nada mudou. Tive contra mim não só a matilha de filósofos que escreviam contra Foucault e contra mim livros «pelo bem» (Mikel Dufrenne e outros), mas também todos os ideólogos do Partido que não faziam segredo de me desaprovarem e de me tolerarem apenas por não poderem, dada a minha notoriedade, expulsar-me. Tempos maravilhosos! Alcançara por fim o auge do meu desejo: ter razão sozinho contra todos!

[…]

Para dizer a verdade não estava completamente só: encontrava alguma consolação em Lacan. Numa nota dissimulada de um dos meus artigos (…) eu observara que, tal como Marx recusara o «homo oeconomicus», Lacan recusava o «homo psychologicus», daí subtraindo, com todo o rigor, as devidas consequências.

p. 197

Havia muito tempo que eu alimentava a ideia de que existem sempre e em toda a parte, como dizia Marx, «falsos custos de produção» ou «desperdícios», perdas sem razão nem remédio. Descobrira-as antecipadas em Malebranche, quando evoca «o mar, as areias e os grandes caminhos» sobre os quais a chuva cai, sem qualquer fim determinável. Foi então que meditei a minha «história» do filósofo materialista que «apanha o comboio em andamento» sem saber de onde ele vem nem para onde vai. E pensei nas «cartas» que embora deitadas no correio nem sempre chegam às mãos do destinatário. Ora, li um dia num escrito de Lacan que «uma carta chega sempre ao seu destinatário». Surpresa! Mas a questão complicou-se por causa de um jovem médico indiano que fez uma breve análise com Lacan e que, no final, se atreveu a colocar-lhe a seguinte questão: «Você diz que uma carta chega sempre ao destinatário. Ora Althusser afirma o contrário: acontece que uma carta não chegue ao seu destinatário. O que é que acha da tese dele, a que ele chama materialista?» Lacan refletiu uns bons dez minutos (dez minutos para ele!) e respondeu simplesmente: «Althusser não é um clínico.» Compreendi que ele tinha razão: de fato, nas relações de transferência da cura, o espaço afetivo encontra-se estruturado de tal maneira que não há nele qualquer vazio, pelo que consequentemente toda a mensagem inconsciente realmente dirigida ao consciente do outro, a ele chega necessariamente. Todavia, não me sentia inteiramente satisfeito com a minha explicação: Lacan tinha razão, mas eu também, e eu sabia que ele não merecia ser acusado de idealismo, como o a sua concepção da materialidade do significante. Foi então que descobri a saída. Lacan falava do ponto de vista da prática analítica, e eu do ponto de vista da prática filosófica, dois domínios diferentes que eu não podia, se fosse consequente com a minha crítica do materialismo dialético clássico reduzir um ao outro, nem o domínio filosófico ao analítico nem o contrário, portanto a prática filosófica a uma prática científica ou vice-versa. O que dava razão a ambos, mas nenhum de nós vira com clareza o fundo do nosso diferendo. Em todo o caso, passei a conceber ainda maior apreço pela perspicácia de Lacan que, apesar do equívoco de algumas das suas expressões , fala vazia, (a fala cheia do «Discurso de Roma») tivera o reflexo, talvez não somente refletido, de sentir a diferença, e de a «assinalar».

p. 198-199

Certa manhã, muito cedo, batem-me à porta na École. Era Lacan, irreconhecível, num estado assustador. Mal me atrevo a contar o que se passou. Vinha comunicar-me, «antes que eu o soubesse por boatos que o poriam em causa pessoalmente, a ele, Lacan», o suicídio de Lucien Sebag que estava em análise com ele, uma análise que tivera que interromper uma vez que Sebag se apaixonara pela sua filha Judith. […] Todavia Sebag metera uma bala na cabeça à meia-noite, e depois conseguiu pôr termo à vida por meio de uma segunda e última bala por volta das três horas da madrugada. Confesso que não soube o que dizer-lhe. Mas queria perguntar-lhe se não teria podido «intervir» para pôr Sebag a salvo mandando-o internar. Talvez ele me tivesse respondido que não era essa a «regra» analítica. Pelo menos, não teve uma palavra sobre a proteção de uma hospitalização. […] Este incidente lançou sobre mim estranhas perspectivas sobre as terríveis condições de análise e das suas famosas «regras». Perdoem-me, se possível, tê-lo narrado fielmente, mas através do infeliz Sebag, de quem eu gostava muito e de Judith que conhecia bastante bem (…), tratava-se de mim também: «De te fabula narratur». Mas desta feita a «fábula» era uma tragédia, não só para Sebag, mas sobretudo para Lacan, que então só exibia uma preocupação manifesta com a sua reputação profissional e o escândalo que se abateria sobre ele.

p. 200-201

Publicado em Autobiografias, Ciência Política, Estudos de Gênero, Filosofia, Literatura, Marxismo, Psicanálise, Psicologia, Psiquiatria, Sociologia, Teoria Política

O Futuro é Muito Tempo [8]

Louis Althusser, O futuro é muito tempo, Edições Asa, 1992.

Descobri também que ela vivia na miséria. Perdera todo o contato com o Partido, que passara à clandestinidade em 1939. Durante a guerra, sem poder retomar esse contato, depois de ter rompido com Jean Renoir, que assistira em muitos dos seus filmes (conhecera Françoise Giroud, a quem chamavam, dado o seu físico, maldosamente, a «chouriça»), mas sem nunca aceitar que o seu nome figurasse nos genéricos, e que trocara a França pela América, empenhara-se numa importante organização resistente (Libération-Sud, julgo eu, mas não tenho a certeza) e para passar informações, dinheiro e armas da Suíça para França, adquirira a representação da editora Skira para França, o que lhe permitira encontrar e conhecer os maiores pintores do seu tempo. Através dos Ballard, Jean e Marcou, seus amigos dos Cahiers du Sud de Marselha, que davam guarida ou recebiam numerosos resistentes e homens de letras, conhecera também todos os grandes nomes do mundo da literatura francesa do tempo. Foi assim que conheceu bastante bem Malraux e se ligou de perto com Aragon e Éluard, que, também eles, por razões de segurança draconiana, não tinham podido retomar o contato com o Partido clandestino. Conhecera muito bem igualmente Lacan, que, em Nice, onde residia com Sylvia, lhe fazia intermináveis confidências na promenade des Anglais, muito pela noite dentro. Lacan disse-lhe um dia estas palavras, que o meu próprio analista, ignorando o juízo de Lacan, me confirmaria mais tarde: «Você teria dado uma extraordinária analista!» Por causa da sua «escuta» excepcional, sem sombra de dúvida, e do seu insight surpreendente.

p. 129-130

Foi em Fevereiro de 1947 que o primeiro drama começou. Eu continuava a cortejar Angeline, nesse caso fora eu quem tomara a iniciativa, e estava assim em vantagem e melhor posição. […] Tive então não a ideia, mas a compulsão irresistível de apresentar Angeline a Hélène: não foi a última vez que me meti numa provocação e impasse semelhantes, mas estava ao tempo muito longe de desconfiar dos motivos de tão bizarra ideia: o desejo irresistível de obter de Hélène a sua aprovação para uma escolha amorosa que não lhe dizia respeito a ela mas a uma outra mulher.

Eu tinha perto de trinta anos, Hélène trinta e oito, Angeline vinte. Já não sei o que dissemos, mas sei muito bem como as coisas acabaram: com uma troca de opiniões acerca de Sófocles. […] Foi então que Hélène, pouco a pouco, tentou criticar a opinião de Angeline. Primeiro muito serenamente e com argumentos sérios, e como Angeline lhe resistisse, o rosto e a voz de Hélène começaram a transformar-se, ela tornou-se cada vez mais dura e intransigente, cortante, e acabou com uma espécie de «cena» ofensiva (…) que atingiu profundamente Angeline e a deixou banhada em lágrimas. Percebi que Hélène não suportara a outra rapariga nem sobretudo a cerimônia que eu lhe impusera, a cerimônia, ou digamos antes a provocação, e que tudo se encontrava doravante partido e desfeito entre mim e Angeline. Não voltaria a vê-la. Hélène tinha entrado com violência, mas sem violência contra mim, na minha vida…

p. 131-132

O «drama» precipitou-se uns dias mais tarde quando Hélène, sempre no mesmo quartinho da enfermaria, sentada na minha cama ao meu lado, me beijou. Eu nunca beijara uma mulher (aos trinta anos!), e sobretudo nunca fora beijado por uma mulher. O desejo subiu dentro de mim, fizemos amor em cima da cama, e era uma coisa nova, arrebatadora, exaltante e violenta. Depois de ela partir, abriu-se em mim um abismo de angústia que nunca mais voltou a fechar-se.

p. 132

No dia seguinte, telefonei a Hélène para lhe comunicar violentamente que nunca mais faria amor com ela. Mas era demasiado tarde. A angústia já não me deixava, e cada dia que passava a fazia mais intolerável. Será preciso dizer que não eram os meus princípios cristãos que estavam em causa? Muito longe disso! Tratava-se de uma repulsa bem mais surda e violenta, em todo o caso mais forte do que todas as minhas resoluções e tentativas de me recompor moral e religiosamente. Os dias passaram e afundei-me nas primícias de uma intensa depressão.

p. 132

Muito inquieta, Hélène aconselhou-me a consultar um especialista. Conseguimos uma entrevista com Pierre Màle, o grande psiquiatra e analista da época, que me interrogou demoradamente e concluiu que eu exibia um estado de «demência precoce» (!). Por conseguinte, exigiu a minha hospitalização imediata em Sainte-Anne.

[…]

Tomou então conta de mim uma psiquiatra, comovida por certo com a minha juventude, e talvez também com a minha qualidade de intelectual consagrado à filosofia e com o meu drama, disposta a pensar que eu a amava, com a certeza pelo menos de amar deveras e de ser ela quem me iria «salvar» por meio do seu amor. Naturalmente, ela pensava (foi a primeira, mas não a última) que, se eu estava doente, era por culpa de Hélène.

[…]

Não sei como ela se arranjou, mas Hélène, que não vi uma única vez dentro do pavilhão Esquirol, apareceu com muita frequência por volta das treze horas debaixo da janela, e eu pude assim falar com ela de longe e por meias palavras. A minha ideia era que não me estavam a compreender, a ideia dela era que estavam a fazer tudo mal (sobretudo a psiquiatra com o seu terrível «amor»), e que era preciso romper o círculo em que eu me achava fechado como que para sempre (um demente precoce). Combinamos que ela tentaria chegar a Julian Ajuriaguerra (…). Não sei que terá ele feito, mas um dia vi-o entrar na grande enfermaria, acompanhei-o a um gabinete e pude conversar com ele. Ele concluiu: não se trata de uma demência precoce, mas de uma melancolia gravíssima. Aconselhou eletrochoques, que eram então de uso recente, mas se empregavam com êxito em casos como o meu. A psiquiatra concordou. E eu sofri cerca de vinte e quatro choques, um de dois em dois dias, na imensa enfermaria. […] Havia o risco de fraturas ósseas (sobretudo das pernas). Tínhamos que apertar entre os dentes uma toalha: para mim foi sempre a mesma, a minha única toalha imunda, para me impedir de cortar a língua. Conservei durante anos na boca o gosto ignóbil e aterrador, pois que anunciava a «pequena morte», o gosto daquela toalha sem forma nem nome. Chegava a minha vez, após todos os espetáculos que os meus vizinhos me haviam proporcionado. Estaline, sempre silencioso, aproximava-se, punha-me o capacete, eu cerrava os dentes e preparava-me para morrer, e depois havia uma espécie de relâmpago e mais nada a seguir. Acordava passado pouco tempo (ficava adormecido somente uns dois minutos, para meu maior desespero, tal era a minha vontade de me abandonar ao sono, enquanto quase todos os outros dormiam horas e horas, ou até metade do dia!) sempre com a mesma pergunta: mas onde é que eu estou? Que me aconteceu? Quanto mais avançava mais o meu terror (de morrer) crescia. No fim, era insustentável. Recusava com toda a energia a cerimônia de execução, mas amarravam-me solidamente à cama.

p. 132-134

Publicado em Autobiografias, Ciência Política, Estudos de Gênero, Existencialismo, Filosofia, Literatura, Marxismo, Marxismo, Psicanálise, Psicologia, Psiquiatria, Sociologia, Teoria Política

O Futuro é Muito Tempo [6]

Louis Althusser, O futuro é muito tempo, Edições Asa, 1992.

O que me ensinou também a experiência do cativeiro, [foi] o bem que me sabia viver na companhia já não de pai e mãe e no universo (sem sombra de exterior) dos estudos, das aulas e do apartamento familiar; em suma, já não sob o terrível, digo bem, terrível, ouves-me, Robert Fossaert, ouves-me de dentro do teu horrível túmulo, Gramsci?, do terrível, do assustador e do mais medonho de todos os aparelhos ideológicos de Estado que é, numa nação onde bem entendido o Estado exista, a família. E se eu disser que até em Lyon, durante três anos — quando tinha entre dezoito e vinte e um anos! —, fora dos meus companheiros de khâgne e dos meus professores, eu não conheci absolutamente ninguém? E isso por que razão, a não ser por uma mescla atroz de medo, de educação, de respeito, de timidez, de culpabilidade, que me fora inculcada por quem? pelos meus próprios pais, apanhados eles próprios e encurralados como nunca na estrutura ideológica atroz para a minha mãe e também para o meu pai, por muito que as aparências indicassem o contrário, e isso porquê senão para inculcar a uma criança todos os elevados valores que correm na sociedade em que ela vive, o respeito absoluto por toda a autoridade absoluta e acima de tudo pelo Estado que, após Marx e Lênin, sabemos, graças a Deus, ser uma terrível «máquina» ao serviço (sim, Fossaert sim, Gramsci), não da classe dominante, que nunca está sozinha no poder, mas das classes que constituem o «bloco no poder», tão bem designado por um certo Sorel aqui em França e no meio da indiferença teórica e política geral. Mas por quanto tempo os espíritos mais informados e mais inteligentes se deixarão iludir pelo que é ainda mais cego e mais cegante do que o terrível veneno surdo do inconsciente, que Freud soube pescar no mais fundo do mares com a sua longa rede de malhas, por quanto tempo se deixarão eles ainda iludir pela evidência ofuscante da natureza profunda do aparelho ideológico de Estado da Família?  Deveremos dizer hoje depois das três grandes fendas narcísicas da Humanidade (a de Galileu, a de Darwin e a do inconsciente que existe uma quarta ainda mais profunda, pois a sua revelação é absolutamente inaceitável pelo indivíduo (porque a família é com efeito a todo o momento o próprio lugar do sagrado, e portanto do poder e da religião) e realidade irrefutável da Família surge deveras como o mais poderoso dos aparelhos ideológicos de Estado?

111-112

Mas quando tive de abandonar o meu primeiro comando, tudo o que encontrei debaixo da minha enxerga foi um amontoado de podridão. Perdera todas as minhas reservas à força de as querer deixar de reserva. A verdade, a realidade desta reserva revelava-se diante dos meus olhos e das minhas mãos e do meu nariz e da minha boca: porcaria! Mas fui incapaz de extrair a lição da minha cruel experiência, absolutamente incapaz e isso durante sessenta anos! Em tempos melhores posteriormente, continuei todos os dias a compor reservas, primeiro de pão, de biscoitos, de chocolate, de açúcar, de sapatos (tantos pares deles que tenho hoje cerca de uma centena nos meus armários!), roupas — a mesma coisa — e bem entendido de dinheiro, a reserva das reservas, Marx bem o mostrou depois de muitos outros dos quais o melhor foi sem dúvida Locke (o dinheiro para Locke é com efeito o único bem que não apodrece…) e o único que se define por essa qualidade de exceção entre todos os bens perecíveis. Mais tarde finalmente, constituí reservas de amigos e por último de mulheres. Por quê? Simplesmente para não me arriscar a achar-me um dia sozinho sem uma mulher ao alcance da mão, se por acaso uma das minhas mulheres me deixasse ou viesse a morrer — e a coisa aconteceu-me muitas vezes, e se tive sempre a par de Hélène uma reserva de mulheres, foi de fato para ter a certeza de que se Hélène me abandonasse ou morresse, eu não ficaria nem por um instante sozinho na vida. Sei demasiado bem que esta terrível compulsão fez sofrer horrivelmente as «minhas» mulheres e em primeiro lugar Hélène.

p. 113

Agora parece-me que sei, de fonte segura, que não há vida sem dispêndio, nem risco, nem por conseguinte surpresa, e que a surpresa e o dispêndio (gratuito, não mercantil: trata-se da única definição possível do comunismo) não só fazem parte de toda a vida, mas são a própria vida na sua verdade última, na sua Ereignis, no seu surgimento, no seu acontecimento, como tão bem o diz Heidegger.

p. 114

Uma pessoa pode portanto curar-se perfeitamente de uma série incurável de fobias sem qualquer análise, basta por exemplo que o marido morra, que Mme Althusser volte a ser Lucienne Berger e tudo regressa à ordem, talvez não a do desejo e da liberdade, mas em todo o caso a do prazer, que enquanto princípio de prazer tem apesar de tudo, segundo Freud, algo de sério a e ver com a libido, esse Espírito Santo dos crentes (a minha mãe foi sempre muito crente).

p. 115

Tendo observado que os alemães, uma vez verificada a evasão de um dos nossos, alertavam toda a polícia e as tropas num perímetro imenso, o que o mais das vezes levava à detenção do audacioso, imaginei que o meio mais seguro de evasão era fazer crer numa evasão e deixar passar o tempo de alerta generalizado que não durava mais do que três ou quatro semanas, para realmente partir depois. Tratava-se portanto de desaparecer (eu tinha já pois uma vocação de «desaparecido»!) do campo para levar a crer que se tinha partido, antes de rumar ao largo uma vez passado o alerta. Fora isso, bastava não fugir, mas desaparecer, quer dizer, ficar escondido no próprio campo (o que não era impossível) e jogar a cartada da fuga só a seguir, passado o tempo (três semanas) das medidas de alerta. Em suma, eu descobrira o meio de me evadir do campo sem de lá sair! E por conseguinte, de continuar no meu cativeiro para lhe escapar! Tendo elaborado bem este projeto, não lhe dei seguimento, orgulhosíssimo de ter achado a «solução»: como prestara provas, não precisava de passar à ação.

p. 115-116

Noto por fim que foi no campo que, pela primeira vez, ouvi falar do marxismo pela boca de um advogado parisiense de passagem — e conheci um comunista, apenas um.

Este último, Pierre Courrèges, apareceu no campo nos últimos meses; acabava de passar um ano em Ravensbrück num comando disciplinar duríssimo para irredutíveis. […] Sem mandato de ninguém, apenas em seu nome e em nome da honestidade e da fraternidade, Courrèges interveio e esse fato produziu um efeito inacreditável. Era simples, direto, caloroso, natural, agindo e falando sem qualquer esforço aparente. A sua presença bastou para transformar o campo e deixou-nos profundamente espantados. Todas as facilidades, os semicompromissos com os alemães, desapareceram de um dia para o outro, e no campo respirava-se uma atmosfera que nunca mais fora conhecida por lá (…) Bastara um só homem e um homem só, mas por certo que «diferente dos outros», um «tipàparte» (os comunistas «não são homens como os outros», leitmotiv de uma propaganda com que travei conhecimento mais tarde) para causar este resultado surpreendente. Ganhei uma admiração profunda pelos militantes comunistas: e igualmente a ideia de que era possível agir de maneira diferente de Daël, de que existiam pois outras formas de ação e de relação com a ação, em que a habilidade se torna secundária quando a ação se inspira em «princípios» verdadeiros e autênticos como em claras razões de agir que podem então dispensar a arte da «pirataria» e da astúcia. Espantoso Courrèges que me deu a minha primeira lição prática de comunismo! […]

Em todo o caso, os que imaginaram que eu fora convertido ao comunismo por Hélène devem ficar a saber que o fui por Courrèges.

p. 118-119

Em suma. estava completamente sozinho, sentia-me além disso doente (as minhas obsessões sexuais e perturbações da visão insistentes — de fato simples «moscas voadoras» — que me faziam recear a cegueira) e sem quaisquer perspectivas. Outrora, influência sem dúvida do «velho Hours» e já gosto pela política, teria gostado de fazer história. Mas recuava diante desse objetivo (já não tinha memória, ou pelo menos pensava-o). Agarrei-me à filosofia, dizendo para comigo que afinal de contas me chegaria saber fazer uma dissertação bem feita. A minha ignorância pouco importava, conseguiria sempre safar-me.

p. 120

Publicado em Autobiografias, Ciência Política, Estudos de Gênero, Filosofia, Literatura, Marxismo, Psicanálise, Psicologia, Psiquiatria, Sociologia

O Futuro é Muito Tempo [5]

Louis Althusser, O futuro é muito tempo, Edições Asa, 1992.

O primeiro professor que me fez pasmar foi Jean Guitton. Acabava de sair da Normale, tinha trinta anos, uma grande cabeça (a «cúpula de Roma») encimando um pequeno corpo enfermiço. Respirava bondade, inteligência e suavidade, mas também uma espécie de malícia que nos apanhava sempre desprevenidos. Era extremamente cristão, discípulo de Chevalier, do cardeal Newman e do cardeal Mercier, e explicava-nos à laia de curso de filosofia completo que o cristianismo se confrontara na sua história e se inscrevera em diversas «mentalidades». Consagrar-se-ia a uma carreira de conselheiro particular de João XXIII e de Paulo VI. Considerava Hélène e eu como «santos», e provou-o, depois do artigo de Jean Dutourd sobre a morte de Hélène, interrompendo uma emissão na televisão para proclamar que conservava em mim sob todos os aspectos uma confiança total e estaria sempre ao meu lado nas piores provações. Tenho-lhe um reconhecimento infinito por algo que era então muito simplesmente um ato de coragem público.

p. 99

Quando eu dizia que um mestre não detesta que lhe devolvam a sua própria imagem, e que muitas vezes nem sequer a reconhece, sem dúvida sob efeito do prazer consciente/inconsciente que ela lhe dá de se reconhecer num aluno escolhido…

Que benefícios tirei eu próprio do caso? Sem dúvida, a vantagem de passar diretamente para a frente da turma, de gozar finalmente da consideração de meus jovens colegas — sobretudo dos veteranos — e de ser aceito (…). Mas a que preço! Ao preço de uma verdadeira impostura que, daí em diante não parou de me afligir. Já suspeitava de que só conseguia existir à custa de artifícios, de contração de empréstimos que me eram estranhos. Mas desfeita já não estavam em causa artifícios de que eu pelo menos me podia considerar o hábil autor, mas de uma impostura e de um roubo, que demonstravam claramente que eu só era capaz de existir à esteira de uma verdadeira falsificação da minha verdadeira natureza, pelo desvio sem escrúpulos do pensamento do próprio raciocínio e das fórmulas do meu mestre, quer dizer, de um outro diante do qual eu queria aparecer para aparentar seduzi-lo. Quando, culpabilidade intervém, a não-existência para si deixa de ser um problema técnico para se transformar num problema moral. Doravante não me senti apenas não-existente, mas também culpado de não existir.

p. 100-101

Mas o homem mais espantoso da Khâgne de Lyon era o professor de história Joseph Hours, a que chamávamos por afeição o «velho Hours». (…) Não hesitava em nos elucidar em voz alta e na própria sala de aula (e mais tarde em sua casa quando o visitávamos, privilégio que lentamente fui conquistando) sobre a situação política francesa. Em 1937, segundo recordo, dizia-me: «A burguesia francesa odeia tanto a Frente Popular que de hoje em diante lhe prefere Hitler. Hitler vai atacar e a burguesia francesa que vai escolher a derrota para escapar à Frente Popular.» Contento-me com esta frase, mas que se apoiava numa análise minuciosa da situação das forças sociais e políticas e também da personalidade e da carreira de homens políticos cujo comportamento ele observava com atenção. Deste modo distinguira em particular Maurice Thorez entre os melhores, e punha todas as suas esperanças não nos privilegiados mas no «povo de França» do qual escreveu uma pequena História — um pouco sem dúvida na esteira de Michelet. É ao velho Hours que devo as minhas primeiras perspectivas sobre a política e o que nela estava em jogo, e também sobre o comunismo, que para mim se reduzia a Thorez.

p. 102

Pela primeira vez, descobri que tinha uma espécie de força de eloquência contagiosa, mas que para a manifestar recorria espontaneamente a uma outra variedade de artifício: justamente um excesso no ritmo verbal, no pathos e na emoção contida que queria como por contágio fazer partilhar. Sempre o mesmo desejo nostálgico de «fusão». Como se, para acreditar no que dizia e fazer com que se acreditasse nisso, tivesse que «carregar nas tintas», visar nas minhas palavras e nas minhas emoções muito acima do fim a alcançar e, ao entregar-me a este exacerbamento, ficava ao mesmo tempo comovido até às lágrimas, como se tivesse também que chorar, mostrar uma emoção de excesso para arrastar com ela os meus ouvintes, e sobretudo obrigar-me a mim próprio a acreditar.

p. 103-104

Maio de 1940, solicitaram voluntários para a aviação. Eu não. Excesso de perigo (o meu tio Louis morrera num avião). Já disse que tinha um medo de combater, medo de correr o risco de ser ferido, quer dizer, lesado, em meu frágil corpo. Todos os meus companheiros embarcaram na aventura. Fiquei sozinho. Tinha escolhido… Depois, não sei porquê, um pouco mais tarde, vi-me também eu ameaçado pela aviação. Fingi adoecer e, antes que o médico viesse ver-me, tentei certa noite viciar o meu termômetro, esfregando-o vigorosamente na coxa. Mais uma batota desonrosa. E sem resultado, segundo creio, o médico apareceu e não me deu baixa.

105-106

As tropas alemãs aproximavam-se de rajada. Paul Reynaud anunciara que nos bateríamos no «reduto bretão» mas, umas atrás das outras, as cidades foram sendo, e entre elas Vannes, declaradas «abertas». Os nossos oficiais estavam sob o comando do sinistro traidor general Lebleu, que por medo dos «comunistas» que podíamos ser ou vir a ser, nos impediu de nos movimentarmos na direção do Loire, então livre em Nantes, passando depois para Sul e mantendo-nos reclusos no quartel, sob a nossa própria guarda, inclusive na altura em que os alemães e os seus carros de assalto chegavam, «Se abandonarem os vossos postos, serão considerados desertores e fuzilados!»

p. 106

Finalmente o longo comboio de vagões de gado conduziu-nos em quatro dias e quatro noites até Sandbostel, no norte da Alemanha, um imenso campo de areia e urzes, onde pela primeira vez vimos, do outro lado dos arames farpados eletrificados, prisioneiros russos quase nus no frio já intenso, lívidos, cadavéricos e implorando o pão que lhes íamos dando das nossas parcas rações.

p. 107

[…] Nós, os estudantes, fazíamos o menos possível e não éramos bem vistos pelos nossos camaradas normandos. Estes últimos acusaram-nos tranquilamente de «sabotagem»!

p. 108

Um dia adoeci, ao que parece dos rins, e para meu grande espanto, por decisão do médico francês do campo, o tenente Zeghers, que eu voltaria depois a encontrar no campo central, uma ambulância alemã extremamente confortável conduziu-me, num dia de caminho, ao hospital do campo. Fiquei por lá oito dias, e fui colocado no referido campo, Schleswig, stalag XA. O meu número, cheio de zeros, era 70670. Ficava-me bem. Continuei a ter que fazer trabalhos pesados, descarregar vagões de carvão, etc.

p. 108

Compreendi então o que era a ação, próxima dos princípios, mas muito diferente da sua simples aplicação, pois é necessário levar em conta os imponderáveis da conjuntura, dos homens, da sua paixão, dos inimigos e, para esse fim, por em jogo recursos humanos que não são a simples clareza e rigor dos princípios.

A primeira e importantíssima conclusão que se me impôs consistiu em dar um sentido totalmente inesperado à minha mania dos artifícios. Começava a compreender pela prática que os artifícios, subterfúgios e outros ardis podiam ser coisa diferente de imposturas, que podiam muito pelo contrário produzir efeitos benéficos para o seu autor e para os outros homens, na condição de se saber o que se queria e de se dominar toda a culpabilidade, em suma, se se fosse livre, o que a minha análise havia de me ensinar. Sem que então o soubesse e sem nunca efetuar a mais pequena aproximação disso com a minha mania-medo dos artifícios que me constituíam, aproximava-me — só muito mais tarde o descobri — das regras enunciadas pelo único homem — digo bem, o único homem —, que refletiu sobre as condições e as formas da ação — em política apenas —, o único homem que, muito antes de Freud, como penso explicar um dia, antecipou em grande medida a sua descoberta: Maquiavel. Porém eu estava ainda muito longe de aí chegar.

p. 110-111

Publicado em Ciência Política, Filosofia, Literatura, Marxismo, Marxismo, Psicanálise, Psicologia, Psiquiatria

O Futuro é Muito Tempo [2]

Louis Althusser, O futuro é muito tempo, Edições Asa, 1992.

Que homem aquele com quem eu me cruzara, sem dar por nada! Mas ele mantivera-se toda a vida calado acerca da sua pessoa, e eu nunca me atrevera a fazer-lhe perguntas, a levá-lo a falar de si. De resto, ter-me-ia respondido? Devo acima de tudo confessar que durante muito tempo odiei o meu pai por ele fazer a minha mãe sofrer aquilo que eu vivia como um martírio para ela, e portanto também para mim.

p. 48

O meu pai governava assim: sem nunca chegar a fazer-se entender bem, uma maneira talvez de deixar os seus colaboradores perante uma responsabilidade que sabiam sancionada, mas não explicitamente definida. Conheciam sem dúvida o seu ofício, ele formara-os sem dúvida havia muito segundo a sua escola, e sem dúvida sabiam o suficiente do meu pai para compreenderem em que sentido se inclinava.

[…]

Antigos colaboradores do meu pai que conheci após a sua morte confirmaram-me o seu estranho comportamento e os respectivos efeitos. Não o tinham esquecido e falavam dele com uma admiração que raiava a devoção: não havia ninguém como ele. Um «tipàparte».

p. 49

Este homem autoritário, arrebatado às vezes por explosões violentas, via-se ao lesmo tempo e sem dúvida profundamente paralisado na sua expressão por ama espécie de impotência em se mostrar perante outrem, medo que o precipitava na sua reserva e o tornava incapaz de decisões claramente afirmadas. […]

Quando mais tarde, assumindo com extrema agressividade a defesa da minha mãe mártir contra ele, eu o provocava até ao limite da sua paciência, o meu pai levantava-se muito direito, saía da mesa antes de acabar a refeição, e soltando a única palavra que então dizia, «Fautré!», batia com a porta e sumia-se na noite. Apoderava-se de nós, ou pelo menos apoderava-se de mim, uma angústia atroz: o meu pai abandonara a minha mãe, abandonara-nos (a minha mãe parecia indiferente): teria partido para sempre? Voltaria ou desapareceria de vez? Nunca descobri o que fazia ele nessas alturas, quando ficava sem dúvida a vaguear nas ruas noturnas… […]

Ninguém, e menos do que todos os outros a minha mãe, era capaz de entrar no jogo dele e de enfrentar os seus assaltos. Tratava-se por certo de uma defesa ainda, para evitar ter que dizer aquilo que pensara ou queria, talvez por não saber ao certo o que queria, mas não queria, sob o véu transparente de uma ironia desenfreada, senão dissimular um mal-estar e uma indecisão profundos.

p. 51-52

Em silêncio eu sofria pela minha mãe e pela ideia que eu próprio devia fazer do meu pai.

A minha mãe obrigou-nos então, à minha irmã e a mim, a seguir como ela um regime puramente vegetariano — e que se prolongaria por seis anos! O meu pai não levantou qualquer objeção, mas exigiu continuar a ter todos os dias o seu bife em sangue. Então nós comíamos couves, castanhas e uma mistura de mel e amêndoas ostensivamente raladas diante dele, que partia tranquilamente a sua carne, enquanto lhe manifestávamos com toda a clareza a nossa comum reprovação. Acontecia-me então provocá-lo e atacá-lo com extrema violência: nunca me respondeu, mas por vezes saía-lhe: «Fautré!».

p. 52

Desde muito cedo que me tornara bastante hábil em toda a espécie de tiros: no atirar pedras a latas de conserva vazias, na funda também. Experimentei atirar aos pássaros, mas falhava sempre. Exceto um dia, no campo do meu avô em Bois-de-Vélle, quando me pus a caçar frangos que vinham bicar os grãos das semeaduras. De bastante longe (a uns vinte metros) avistei um belo galo vermelho perto da sebe. Visei-o com a minha funda, e com terror vi o galo atingido em cheio num olho, saltar de dor, bater violentamente com a cabeça no chão e fugir aos tropeções. Fiquei com o coração a galopar durante horas.

p. 54

Mas um dia em que estávamos numa pequena propriedade, Les Raves (Os Rabanetes), que o meu pai achara por bem adquirir numa zona inacessível de tão alta, meti-me pelos bosques com a minha carabina na mão em busca de alguma presa volátil. Avistei de repente uma rola e atirei: a rola caiu, procurei-a inutilmente entre as ervas secas, convencido no fundo de que falhara o tiro e de que ela só caíra por manha, para me escapar. Continuei o meu caminho e veio-me de súbito a ideia, sem ter alguma vez pensado no assunto e sem saber porquê, que poderia apesar de tudo tentar matar-me. Orientei então o cano da arma contra o meu ventre e ia a carregar no gatilho quando me reteve uma espécie de escrúpulo, nunca soube por que motivo. Abri então a culatra: havia uma bala lá dentro. Como podia ela ali estar? Fosse como fosse não fora eu quem lá a pusera. Nunca soube como foi que aquilo aconteceu. Mas fiquei bruscamente coberto de um suor de pânico, tremiam-me os membros e tive que me deitar demoradamente na terra antes de voltar para a quinta, mais do que pensativo. Uma vez mais se tratara da morte: mas diretamente da minha, desta feita.

p. 54-55

Avistamos então, ao longe no passeio da direita, duas mulheres e um homem. As duas mulheres, em fúria e aos gritos, batiam-se violentamente. Uma estava caída no chão, a outra arrastava-a pelos cabelos. O homem, ao lado, imóvel, contemplava a cena sem intervir. Quando passamos perto do grupo ele soltou em nossa intenção um aviso perfeitamente sereno: «Cuidado, “ela” tem um revólver!» A minha mãe continuou o seu caminho, crispada, olhando para diante, sem nada querer ver nem ouvir, completamente insensível. Nem sombra de emoção. Nunca me disse uma palavra sequer sobre este dramático incidente. Era claro para mim que devia ter intervindo. Mas eu era um covarde. Deviam reinar relações bem singulares entre a minha mãe e eu, entre a minha mãe e a morte, entre o meu pai e a morte, entre mim e a morte. Só as compreendi infinitamente mais tarde, durante a minha análise.

p. 55

A minha mãe era em nova uma mulher muito bela, onze anos mais nova do que o meu pai, uma eterna criança que passara sem transição da tutela dos pais para a do marido, sem qualquer experiência da vida, nem dos homens nem das mulheres: tendo por única e eterna nostalgia no seu coração a memória desse Louis, desse esguio noivo morto no céu, e dos professores primários com quem se cruzara durante a sua efêmera carreira profissional, a que o meu pai bruscamente a arrancara. […]

Quando nasceu a minha irmã, vi ser-me confiado o cuidado de olhar por ela a todo o momento, de a animar e mais tarde de lhe dar a mão para atravessar as ruas com todas as precauções devidas, e mais tarde ainda de cuidar dela pela vida fora e em todas as ocasiões. Cumpri fielmente, o melhor possível, esta missão de criança e adolescente promovido a uma tarefa de homem, ou mesmo de pai… […]

Estávamos em Marselha, a minha mãe lavava a minha irmã nua na banheira do nosso apartamento. Igualmente nu, eu esperava que chegasse a minha vez. Ouço ainda a minha mãe dizer-me: «Estás a ver, a tua irmã é um ser frágil, está muito mais exposta do que um rapaz aos micróbios» — e juntou o gesto à voz para mostrar melhor as coisas — «tu só tens dois buracos no corpo, mas ela, ela tem três» Senti-me inundado de vergonha por esta intrusão brutal da minha mãe no domínio da sexualidade comparada.

p. 56-57

Vejo hoje bem que a minha mãe vivia literalmente dominada pelas fobias: tinha medo de tudo, medo de se atrasar, medo de deixar de ter (bastante) dinheiro, medo das correntes de ar (estava sempre com dores de garganta, e eu também até à altura do meu serviço militar, quando a deixei), um medo intenso dos micróbios e do seu contágio, medo das multidões e do seu ruído, medo dos vizinhos, medo dos acidentes na rua e noutros lugares, e acima de tudo medo dos maus encontros e das companhias duvidosas que podem dar maus resultados: falemos claro, acima de tudo, medo do sexo, do roubo e da violação, quer dizer, medo de ser agredida na sua integridade corporal e de com isso perder a integridade problemática de um corpo ainda fragmentado.

p. 57

Sofria no meu corpo e na minha liberdade a lei das fobias da minha mãe. (…) «Cuidado com as más companhias, e além disso podias partir uma perna!» Eu que me sentia fascinado pela companhia das crianças da minha idade, com quem queria travar conhecimento, para deixar de estar sozinho, para ser aceito e reconhecido como um dos deles, para trocar com eles palavras, berlindes, pancada até, para aprender com eles tudo o que ignorava da vida, para ter amigos (ao tempo não tinha nenhum)… que sonho! Proibido.

p. 58