SANTOS, Boaventura de Sousa. Para uma concepção pós-secularista dos direitos humanos: direitos humanos contra-hegemônicos e teologias progressistas. In: _______ Se Deus fosse um ativista dos direitos humanos [livro eletrônico]. 1. ed. São Paulo: Cortez, 2014, p. 55-62.
Sofrimento na carne
A trivialização do sofrimento humano nos nossos dias e a consequente indiferença com que encaramos o sofrimento dos outros – mesmo se a sua presença nos nossos sentidos é avassaladora – têm muitas causas. […] A tradição moderna ocidental, ao separar a alma do corpo, degradou este último ao concebê-lo como constituído por carne humana. (…) a conceitualização (e dignificação) do sofrimento humano passou a ser feita através de categorias abstratas, sejam elas filosóficas ou éticas, que desvalorizam a dimensão visceral do sofrimento, a sua marca visível de experiência vivida na carne.
Este processo de descorporalização por via de classificação e organização encontra-se (…) mesmo nos autores que mais afirmaram a importância do lugar do corpo, de Nietzsche a Foucault (…). Pela mesma razão, (…) nossos sentidos foram dessensibilizados para a experiência direta do sofrimento dos outros. (…) a carne do prazer como a do sofrimento, foi (…) privada da sua materialidade corpórea e das reações instintivas e afetivas que esta provoca e cuja intensidade consiste em estar (…) além das palavras, (…) além de uma argumentação racional ou de uma avaliação reflexiva.
As religiões e as teologias não foram imunes a este instrumento biopolítico. […] (…) levaram ao extremo a repulsa pela carne como lugar do prazer, sempre associada ao sexo e às mulheres. (…) incitaram os crentes a assistir os corpos dos seus próximos sem outra mediação para além da compaixão. Deste modo, permitiram um acesso denso, direto e intenso à carne em sofrimento (…). É, para além disso, um acesso prático que (…) não procura um equilíbrio entre a compreensão e a intervenção. Concede prioridade absoluta à intervenção (…).
Estas são as razões pelas quais as religiões permitiram (…) uma ética de cuidado e de envolvimento baseada nas reações viscerais da intersubjetividade entre o eu e o próximo, ligações (…) pré-representacionais e (…) pré-éticas, constituídas por sensibilidades e disponibilidades (…). O lado negativo deste imediatismo do sofrimento é a sua despolitização. Foi (…) isto que aconteceu no caso (…) de sofrimento na carne numa das religiões (…), o Cristianismo: a crucifixão de (…) Cristo. A natureza altamente política deste sofrimento foi sequestrada pelo dogma da ressurreição, (…) por uma fuga do mundo, (…) que, ao contrário da viagem de Allah ao céu, não teve regresso. A figura histórica do (…) Cristo dos evangelhos cristãos é obviamente diferente do Jesus Cristo do Corão (…) (Khalidi (Org.), 2001). A diferença tem muito a ver com o sofrimento carnal. (…) para os cristãos o que importa é a própria carne de Jesus e o seu sofrimento, (…) ele é a “Palavra incarnada”, para a fé islâmica Jesus é um exemplo de piedade devido à sua proximidade com o sofrimento carnal dos outros (…).
O potencial contra-hegemônico das teologias progressistas reside na articulação que buscam entre a ligação visceral de um gesto assistencial (…) e a luta política contra as causas do sofrimento como (…) tarefa inacabada da divindade. Na sua crítica do secularismo como uma forma velada de pluralismo restritivo (por excluir a religião enquanto modo legítimo de ser), William Connolly fala de “registros viscerais da subjetividade e intersubjetividade” como expressão de experiências muito intensas (…) e aponta (…) os registros de subjetividade religiosa (1999, p. 27).
Uma vontade radical insurgente e um horizonte pós-capitalista
A religião institucionalizada pagou um preço elevado para encontrar um modus vivendi com a modernidade ocidental e com o Iluminismo: a privatização. […] (…) a religião foi banida do sistema político (o que (…) não significou a incapacitação da igreja para interferir na política (…)), mas, por outro lado, foi deixada entregue a si mesma (…). […] uma ligação liberta das mediações políticas, culturais, discursivas e institucionais que dominaram, nos últimos dois séculos, outras mobilizações sociais (seculares) da esfera pública, (…) o movimento operário e o movimento feminista.
Isto explica (…) a razão pela qual as mobilizações religiosas que no nosso tempo reclamam a esfera pública são sustentadas por (…) radicalismo que não encontramos na maioria dos movimentos sociais. Esta energia radical é usada pelas teologias tradicionalistas para recuar no tempo, até (…) em que a igreja controlava as hierarquias sociais e políticas; (…) também é usada pelas teologias pluralistas progressistas para lutar contra todas as hierarquias, opressões e discriminações (…).
A ligação entre a teologia e a crítica radical do capitalismo constituem o núcleo da teologia da libertação. […] Afirmando a necessidade de uma perspectiva teológica do Terceiro Mundo informada pelo Marxismo e pela teoria da dependência, Ellacuría afirma: “é impossível ver a concretização da justiça sem uma revolução básica na ordem social e econômica, ou uma verdadeira realização do homem sem a criação de uma estrutura econômica adequada” (1977, p. 127).
Para as teologias políticas progressistas, a libertação, mais que a resistência ou a salvação, constitui a base de uma vontade radical de lutar por uma sociedade mais justa.
O impulso para a interculturalidade nas lutas pela dignidade humana
(…) as concepções e práticas dominantes dos direitos humanos são monoculturais, e isto constitui um dos maiores obstáculos à (…) uma luta de baixo para cima, real e universal, pelos direitos humanos. A religião (…) apenas existe como uma (…) variedade de religiões, (…) como diversidade entre as principais religiões tanto como (…) dentro de cada religião. No mundo ocidental esta diversidade é uma das consequências inesperadas da privatização da religião. […]
O (…) princípio, o da comunidade, foi (…) negligenciado, (…) concebido como um adjuvante do Estado ou do mercado. Esta negligência permitiu ao princípio da comunidade evoluir livremente fora (…) da burocracia e da estandardização mercantil e (…) de uma forma muito menos monocultural e monolítica. Afastada do Estado e do mercado, a religião refugiou-se na comunidade, um domínio de regulação social menos estandardizado e mais aberto à diversidade.
Apesar dos reveses e das falhas (seletividade arbitrária, tentação de afirmar uma única verdade revelada, ausência de consequências práticas), os diálogos ecumênicos e interreligiosos são o testemunho de um potencial para a interculturalidade no domínio da religião. Se (…) fossem mais coerentes e ativamente praticados, poderiam funcionar simultaneamente como uma poderosa memória e um campo de experimentação para diálogos mais amplos, envolvendo concepções religiosas e não religiosas de dignidade humana.
(…) o pensamento religioso (…) oscilou entre o dogmatismo estrito e a ortodoxia, por um lado, e o questionamento (…) dos textos, práticas, regras e instituições, pelo outro. No tocante ao último, roçaram muitas vezes a heresia e sofreram consequências (…), o mais notável é que (…) foram além dos materiais religiosos familiares, beberam em culturas estranhas outros tipos de conhecimento e filosofias, imergiram (…) nos detalhes das experiências do dia a dia, interagindo com mercadores, artesãos, prostitutas, e retirando consequências teóricas imediatas destas experiências e discursos. (…) quando decidiram ir às raízes das verdades estabelecidas por conta própria, os pensadores religiosos tenderam a ser mais bricoleurs do que quaisquer outros (…), misturando (…) fragmentos de diferentes proveniências com os quais criaram novos sentidos e interpretações.
Raimundo Panikkar, teólogo católico, (…) pode ser (…) considerado (…) exemplo de teólogo e pensador “numa posição limiar”, visto ter desenvolvido um pensamento cristão de expressão hindu. (…) o Cristianismo, para ser realmente “cristão”, “para pertencer ao mundo inteiro”, deveria despir-se dos seus trajes ocidentais coloniais, que fizeram crer que o Cristianismo só seria viável por meio da cultura ocidental. (…) “Ser-nos-á possível admitir que existam limites à compreensão de Deus que recebemos das tradições semítica e greco-romana? Podemos admitir que existam também limites ao nosso entendimento de religião (…) e oração (…)?” (Panikkar, 2011, p. 117-8).
As narrativas de sofrimento e libertação
A linguagem privilegiada das permutas interculturais é a narrativa. Contar histórias gera um imediato e concreto sentido de copresença (…) do qual as experiências sociais que ocorrem em diferentes tempos, espaços e culturas se tornam mais facilmente acessíveis e inteligíveis (…). (…) a memoria passionis (uma categoria judaico-cristã) do mundo reside na lembrança e nas narrativas que recontam lutas exemplares de vida e de morte, de sofrimento e de libertação, de perdas e ganhos, que reforçam os sentimentos de alegria e medo, (…) dos quais emerge de baixo para cima uma (…) sabedoria partilhada do mundo.
Ao contrário da reconstrução histórica, a memoria passionis colapsa o passado, presente e futuro, vê forças nas fraquezas e possibilidades alternativas nas derrotas. A sabedoria que dela provém é tão contemplativa quanto ativa; é uma reserva mundial de lembrança e visão que converte o passado em energia que reanima o presente e potencia o ainda não ou o talvez do futuro. […] Os contadores de histórias são sempre coautores das (…) que ouviram dos seus predecessores.
Vejo aqui uma possibilidade para outro encontro frutuoso entre os direitos humanos e as teologias políticas progressistas. Narrar e contar histórias está na base da experiência religiosa, seja (…) de textos sagrados ou a de tradições orais sagradas. (…) mesmo a filosofia, a dogmática ou a exegese religiosas apenas se sustentam na medida em que assentam em acontecimentos, ditos e vidas exemplares concretas de pessoas e povos – sejam eles extraordinários ou ordinários, mas nunca anônimos. […] (…) Elie Wiesel: “Teologia não é mais que contar histórias” (1999, p. 94). Todos os profetas se exprimiam por parábolas para que os futuros crentes as pudessem reinterpretar à luz das suas próprias experiências e da sua liberdade intelectual.
A natureza convencional do discurso dos direitos humanos reside não só numa (…) promiscuidade (…) entre a proclamação abstrata dos direitos humanos e a resignação perante as violações sistemáticas (…), como (…) na trivialização do sofrimento humano contido nessas violações. Esta (…) decorre (…) do discurso normalizado (em sentido foucaultiano) das organizações de defesa dos direitos humanos, com (…) forte componente estatístico que reduz ao anonimato dos números o horror (…). Neutraliza-se (…) a presença desestabilizadora do sofrimento (…) na qual seria possível fundar a razão militante e a vontade radical da luta contra um estado de coisas que produz (…) o sofrimento injusto. Pela sua insistência na narrativa concreta do sofrimento das vítimas e da sua luta contra os opressores, as teologias políticas progressistas podem contribuir para tornar o sofrimento injusto numa presença intolerável que desumaniza tanto as vítimas quanto os opressores (…).
A presença do mundo antes ou para além da interpretação
A concepção intercultural dos direitos humanos (…) (Santos, 2006b, p. 433-70; 2014) visa fortalecer (…) a legitimidade das políticas de direitos humanos (…) como radicalizar as lutas que podem ser travadas em seu nome. A noção de interculturalidade destina-se a tornar inteligível a ideia de que o propósito dos intercâmbios interculturais é a interpretação, produção e partilha de significados.
É (…) necessário ir (…) além (…) e demonstrar que, se uma ecologia de diferentes concepções de dignidade humana vai fundamentar uma luta mais abrangente e radical (…), isso pressupõe a criação de momentos (…) intensos de copresença (…) em que a presença precede o significado. A presença é a coisa ou materialidade sobre a qual se constroem os significados. […] É uma forma de ser que, como Gumbrecht afirma (…), “se refere às coisas do mundo antes destas se tornarem parte de uma cultura” (2004, p. 70). É por meio do seu significado que as coisas se tornam culturalmente específicas e muitas vezes também incomensuráveis ou ininteligíveis para outras culturas. (…) estas “coisas” não são exteriores à cultura, são parte dela, mas, paradoxalmente, de uma forma não cultural. Possuem a capacidade pré-representacional de serem exteriores ao pensamento e à consciência, ao mesmo tempo que os fundamentam (…). São materiais e operam no nível do instinto, da emoção e do afeto. […] (…) Gumbrecht é (…) eloquente ao contrapor culturas que são dominadas pela presença (culturas-presença) e culturas que são dominadas pelo significado (culturas-significado) (2004, p. 79). (…) em todas as culturas existe presença e significado, mas a ênfase em uma ou outra varia (…). A cultura moderna ocidental é uma cultura de significado (…). (…) algumas culturas não ocidentais são mais bem compreendidas como culturas de presença.
(…) nas permutas interculturais, o papel da presença consiste em propiciar a geração de sentidos de comunidade, indiferentes à diversidade cultural e imediatamente evidentes. Uma pilha de corpos mutilados num campo de morte, o corpo esquelético de uma criança prestes a morrer de fome, a dor de uma mulher sobre o cadáver do seu jovem filho (…), todas estas presenças são dotadas de um poder que parece relativamente autônomo em relação aos significados que lhe podem ser atribuídos.
(…) também aqui vejo uma (…) contribuição da experiência religiosa progressista e da reflexividade teológica para fortalecer, expandir e radicalizar as lutas pelos direitos humanos. A presentificação do passado ou do outro por meio de ritos, rituais e sacramentos (…) desempenha um papel central na experiência religiosa (Asad, 1993). […] se gera um sentido intensificado de partilha e presença que, se for colocado ao serviço das lutas de resistência e libertação da opressão, pode (…) fortalecer e radicalizar a (…) transformação social. Não é por um capricho proselitista ou por excesso de zelo que todas as reuniões, encontros, protestos e ocupações de terras organizadas por um dos movimentos sociais mais importantes do nosso tempo – o Movimento dos Trabalhadores sem Terra (MST) do Brasil – começam com aquilo a que chamam a “mística”, um momento de silêncio, oração e canto, com os militantes de mãos dadas, em círculo, corpos físicos individuais transformando-se num corpo físico coletivo.
Canções e cânticos têm uma forte presença histórica nas lutas de resistência e libertação como forma de unir forças, vencer o desespero e ganhar coragem para lutar contra poderosos opressores. […] as religiões dos oprimidos e as teologias da libertação a que deram azo em tempos recentes possuem uma preciosa experiência através da qual os direitos humanos podem ganhar novas vozes, nova vitalidade e novas forças. Já mencionei o papel dos blues e dos espirituais na teologia negra. Outro exemplo (…) na maneira como a teologia caribenha da descolonização usa as canções redentoras de Bob Marley (Erskine, 1998) […].
A espiritualidade das/nas lutas materiais pela transformação social
(…) a distinção material/espiritual é uma distinção de base ocidental. Nas suas análises da epistemologia e da religião na África, Ellis e Haar argumentam (…) que os modelos existentes de relacionamento entre a religião e a política são baseados na presunção de uma distinção estrutural entre o mundo visível ou material e o mundo invisível, considerando que esta distinção rígida não reflete as ideias sobre a natureza da realidade prevalecentes na África. (…) dentre as características (…) marcantes das epistemologias africanas encontra-se a convicção de que os aspetos materiais e imateriais da vida não podem ser separados, embora possam distinguir-se entre si, tal (…) duas faces de uma moeda (…).
Esta nota (…) pode ajudar-nos a ter um entendimento mais profundo das lutas contra-hegemônicas pelos direitos humanos. As lutas contra-hegemônicas pelos direitos humanos visam a mudança das estruturas sociais que são responsáveis pela produção sistemática de sofrimento humano injusto. São (…) materiais no sentido em que o seu ímpeto político deve dirigir-se à economia política subjacente à produção e reprodução de relações sociais desiguais (…).
(…) as lutas contra-hegemônicas pelos direitos humanos são muitas vezes de alto risco, incluindo o risco de vida, lutas contra inimigos muito poderosos e desprovidos de escrúpulos. Têm, portanto, de ser baseadas numa vontade política fortemente motivada, (…) vontade que tem de ser tanto coletiva como individual, (…) não existe ativismo coletivo sem ativistas individuais.
(…) esta vontade não poderá ser construída sem uma visão crítica (…) radical e desestabilizadora da injustiça atual e sem visões credíveis de uma sociedade alternativa melhor. Nos últimos dois séculos, dominaram duas visões muito fortes de uma tal sociedade alternativa: o socialismo e a libertação do colonialismo. Estas (…) estavam (…) relacionadas com duas visões críticas igualmente fortes das sociedades contemporâneas: a crítica anticapitalista e a crítica anticolonial. […] O secularismo moderno impediu a religião de ter qualquer participação significativa nestas visões. (…) no mundo cristão, a religião institucionalizada fez as pazes com as estruturas de poder existentes, por mais injustas, sequestrou a força motivadora contida na espiritualidade e transformou os crentes em indivíduos em busca da salvação individual noutro mundo além da morte. Foi este tipo de religião que Marx tão acertadamente criticou.
No nosso tempo, (…) as teologias políticas progressistas têm partido da crítica da privatização moderna da religião para desenvolver novas concepções de salvação (…) que podem servir de fundamento às lutas pela transformação social, pela justiça e pela libertação. Para estas teologias a conversão a Deus implica uma conversão a um próximo necessitado. […] Reside aqui (…) a razão pela qual (…) muitos dos ativistas dos direitos humanos que pagaram com as suas vidas o empenho que puseram nas lutas pela justiça social eram adeptos da teologia da libertação em uma das suas (…) versões.
A intensidade da experiência religiosa é importante, mas o mais importante é a sua orientação existencial. É vivenciada como um propósito individual sem qualquer ligação relevante com as coisas do mundo ou, pelo contrário, é vivenciada como uma forma de partilhar com os outros a visão transcendental de um Deus sofredor que se manifesta nos povos sofredores deste mundo injusto?
[Foto: Landless Workers Movement (MST — Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra)]