Susan Sontag, Diários [1947-1963], org. David Rieff, Companhia das Letras, 2009.
1962
[As (…) entradas seguintes estão sem data, mas muito provavelmente foram escritas em janeiro ou fevereiro de 1962.]
[…]
Escrevo para definir a mim mesma — um ato de autocriação — parte do processo de tornar-se — Num diálogo comigo mesma, com escritores que admiro, vivos e mortos, com leitores ideais…
p. 313
Semana de 12 de fevereiro de 1962
1. FORMALIDADE (“por favor”, “obrigado”, “me desculpe” etc.)
Maneira de não se entregar às outras pessoas.
[…]
B. Eu digo “me desculpe” quando faço um gesto desajeitado durante o sexo
C. Eu digo “você me ofendeu” quando me sinto magoada, rejeitada etc.
[…]
um instrumento da minha tendência geral a ser evasiva, indireta, não declarar meus desejos
Certa vez eu disse para I: “Eu prefiro ser educada a ser justa”.
2. MALEABILIDADE PREMATURA condescendência
De modo que a obstinação subjacente nunca é tocada.
[…]
Sou muito orgulhosa — na mesma medida, tenho dificuldade de exprimir o sentimento de humilhação como eu fazia com a raiva > tudo o que consigo fazer é ir dormir
Cf. julgamento de 14 de fevereiro [quando o processo de PR para ficar com a guarda de DSR foi julgado num tribunal (…). Na realidade os direitos de visitação de PR foram restringidos. (…)]
[…]
Eu me protejo me rebaixando prematuramente. Sobrepujo a rejeição do outro ao rejeitar (desprezar) a mim mesma primeiro + mais. Desse modo eu me privo do poder de reação.
3. ESTRAGAR O QUE É BOM (NATURAL, ESPONTÂNEO) POR MEIO DA FALA
A. por exemplo, elogiando D[avid] toda vez (isso é tão raro!) que ele se mostra amável, quando ele ri, lembra a letra das músicas
B. por exemplo, explicando uma situação enquanto ele ainda a está experimentando — abarrotando sua mente com fatos
[…]
4. NUNCA PEDIR PRESTAÇÃO DE CONTAS
[…]
Eu não ganho o dinheiro, eu o mereço. Não pode existir nenhum pagamento justo (assim, seria injusto mais ou menos) portanto qualquer pagamento é tão bom quanto qualquer outro
Sobre as coisas que aprendo a respeito de mim mesma:
1) Eu não generalizo — vou passo a passo — não falsifico o valor subjacente que produz diversos tipos de comportamento. (…)
2) Tenho de separar valores de atitudes
A acomodação neurótica produz/se prende a um valor, um ideal, do qual se alimenta, se sustenta
[…]
Quando eu perder a minha neurose, vou perder também boa parte do que tenho de atraente?
p. 314-317
3/3/62
[…]
Pensei que a raiz era o medo — medo de crescer, como se eu, ao crescer, fosse abdicar da minha única pretensão de não ser abandonada, de ser objeto de cuidados.
Pensei que isso acontecia porque eu não conseguia me entregar com firmeza (ou de qualquer modo) ao sexo, ao trabalho, a ser mãe etc. Pois se eu fizesse isso estaria me chamando de adulta.
Mas eu nem cheguei a ser criança de verdade!
[…]
Vejo-me como “alguém que tenta”. Tento agradar, mas é claro que jamais consigo.
Chamo minha própria infelicidade porque é evidente para o outro que estou tentando. Por trás de “eu sou tão boa que chega a doer” reside o seguinte: “Estou tentando ser boa. Não está vendo como é difícil? Tenha paciência comigo”.
[…]
Minha monogamia compulsiva é:
1) uma duplicação da minha relação com minha mãe — não posso trair, senão você vai me deixar.
Medo
2) Você não seria importante para mim se eu fosse infiel com você.
Vontade
Orgulho [passa para] obstinação [passa para] medo
p. 318-320
3/9/62
[…]
— Quero ser capaz de ficar sozinha, achar isso revitalizante — e não apenas uma espera.
[…]
Tenho de mudar de vida para que eu possa vivê-la, e não ficar só à espera dela. Talvez eu devesse abrir mão de David.
p. 322
7/9/62
Todos os heróis de Freud são heróis da repressão (Moisés, Dostoiévski, Leonardo); é isso o que significa, para ele, ser heroico. Trabalho e diversão. O ego versus o corpo preguiçoso. É por isso que ele atrai o Philip. As pessoas vivem me perguntando (Ann fez isso esta semana) como é que um homem interessado em Freud pode se comportar como faz o Philip. Acho que ninguém leu Freud. Claro, ele era genial quando se tratava de motivos — o que o professor Rieff seguramente não é — mas ele (Freud) era um formidável paladino da vontade “heroica” automutiladora. A psicanálise que ele criou [é] uma ciência da complacência com o corpo, com os instintos, com a vida natural — na melhor hipótese.
p. 322-323
15/9/62 1:15 DA MANHÃ
[…]
Nesta sociedade, é preciso escolher o que “alimenta” [a palavra “entra” está riscada] — o corpo tem de destituir a mente, + vice-versa. A menos que a pessoa seja muito sortuda ou esperta, antes de mais nada, o que eu não era. Para onde eu quero que vá a minha vitalidade? Para os livros ou para o sexo, para a ambição ou para o amor, para a angústia ou para a sensualidade? Não se pode ter as duas coisas. Nem pense na chance remota de que vou ter tudo de volta no final.
[…]
Ou se é um escritor externo (Homero, Tolstói) ou interno (Kafka). O mundo da loucura. Homero + Tolstói gostam de pintura figurativa — tentam representar um mundo com misericórdia sublime, para além do julgamento — Ou — tirar a rolha da loucura. O primeiro é maior. Eu só serei o segundo tipo de escritor.
p. 323-324
20/9/62
A mente é uma prostituta.
Minha leitura é armazenamento, acumulação, fazer reservas para o futuro, encher o buraco do presente. Sexo e comida são apelos completamente distintos — prazeres para si mesmos, para o presente — não servir o passado + o futuro. Não peço nada deles, nem sequer a lembrança.
A memória é o teste. O que se quer lembrar — enquanto ainda estamos no ato ou na experiência — é deturpado.
Escrever é outro apelo, isento daquelas restrições. Quitação. Saldar a dívida com a memória.
p. 325
16/10/62
[Folha solta encontrada entre os papéis de SS]
Sentimentalidade. A inércia das emoções. Elas não são leves e animadas — Eu sou sentimental. Eu me aferro aos meus estados emocionais. Ou são eles que se aferram a mim?
[…]
p. 326
1963
26/3/1963
Amar a verdade mais do que querer ser boa.
Pergunto: por acaso essa pessoa desperta em mim alguma coisa de bom? Não: Essa pessoa é bonita, boa, de valor?
[Com data de abril de 1963, sem dia, Porto Rico, e constituído de dez folhas de papel arrancadas de um caderno e grampeadas]
O olhar é uma arma. Tenho medo (vergonha?) de usar minhas armas.
[…]
Meu sonho de loucura: não ser mais capaz do esforço necessário para fazer contato. Desobrigada disso por causa da loucura.
[…]
Minha aversão à manipulação, a me ver no controle consciente — esta é a fonte de X. X = o desejo de me pôr sob a proteção de outros. A título de pagamento adiantado por essa proteção, ofereço a minha amável impotência.
Trabalho = estar no mundo.
Amar, ser amada = apreciar o mundo (mas não estar nele)
Não ser amada, não amar = achar o mundo sem gosto, inanimado
Amar é a maneira mais elevada de estimar, preferir. Mas não é um estado físico.
p. 328-332
[Sem data, 1963]
O olhar — mais íntimo (envolvente) do que o abraço sexual, porque nele não há espaço para distanciamento; o gesto é compacto demais.
[…]
Longa e voluptuosa agonia da indecisão (toda dor sabe como encontrar o seu prazer!)
p. 333-334
[Sem data, mas quase com certeza setembro de 1963]
Minha escrita [de ficção] é sempre sobre dissociação — “eu” e “isso”.
[O] problema de assumir responsabilidade — Isso é tratado de forma zombeteira em O benfeitor. Hippolyte serenamente argumenta ser responsável por seus atos, mas de forma patente é mais assombrado do que admite…
p. 335-336
[Sem data, final de 1963]
O êxtase intelectual a que tenho tido acesso desde o início da infância. Mas êxtase é êxtase.
“Carência” intelectual como carência sexual.
p. 336