Publicado em Antropologia, Autobiografias, Ciência Política, Estudos Culturais, Estudos de Gênero, Filosofia, Literatura, Psicanálise, Psicologia, Psiquiatria, Sociologia

Diários [1947-1963] – XVI

Susan Sontag, Diários [1947-1963], org. David Rieff, Companhia das Letras, 2009.

1962

[As (…) entradas seguintes estão sem data, mas muito provavelmente foram escritas em janeiro ou fevereiro de 1962.]

[…]

                Escrevo para definir a mim mesma — um ato de autocriação — parte do processo de tornar-se — Num diálogo comigo mesma, com escritores que admiro, vivos e mortos, com leitores ideais…

p. 313

Semana de 12 de fevereiro de 1962

                1. FORMALIDADE (“por favor”, “obrigado”, “me desculpe” etc.)

                Maneira de não se entregar às outras pessoas.

[…]

                B. Eu digo “me desculpe” quando faço um gesto desajeitado durante o sexo

                C. Eu digo “você me ofendeu” quando me sinto magoada, rejeitada etc.

[…]

                um instrumento da minha tendência geral a ser evasiva, indireta, não declarar meus desejos

                Certa vez eu disse para I: “Eu prefiro ser educada a ser justa”.

                2. MALEABILIDADE PREMATURA condescendência

                De modo que a obstinação subjacente nunca é tocada.

[…]

                Sou muito orgulhosa — na mesma medida, tenho dificuldade de exprimir o sentimento de humilhação como eu fazia com a raiva > tudo o que consigo fazer é ir dormir

                Cf. julgamento de 14 de fevereiro [quando o processo de PR para ficar com a guarda de DSR foi julgado num tribunal (…). Na realidade os direitos de visitação de PR foram restringidos. (…)]

[…]

                Eu me protejo me rebaixando prematuramente. Sobrepujo a rejeição do outro ao rejeitar (desprezar) a mim mesma primeiro + mais. Desse modo eu me privo do poder de reação.

                3. ESTRAGAR O QUE É BOM (NATURAL, ESPONTÂNEO) POR MEIO DA FALA

                A. por exemplo, elogiando D[avid] toda vez (isso é tão raro!) que ele se mostra amável, quando ele ri, lembra a letra das músicas

                B. por exemplo, explicando uma situação enquanto ele ainda a está experimentando — abarrotando sua mente com fatos

[…]

                4. NUNCA PEDIR PRESTAÇÃO DE CONTAS

[…]

                Eu não ganho o dinheiro, eu o mereço. Não pode existir nenhum pagamento justo (assim, seria injusto mais ou menos) portanto qualquer pagamento é tão bom quanto qualquer outro

                Sobre as coisas que aprendo a respeito de mim mesma:

               1) Eu não generalizo — vou passo a passo — não falsifico o valor subjacente que produz diversos tipos de comportamento. (…)

                2) Tenho de separar valores de atitudes

                A acomodação neurótica produz/se prende a um valor, um ideal, do qual se alimenta, se sustenta

[…]

            Quando eu perder a minha neurose, vou perder também boa parte do que tenho de atraente?

p. 314-317

3/3/62

[…]

                Pensei que a raiz era o medo — medo de crescer, como se eu, ao crescer, fosse abdicar da minha única pretensão de não ser abandonada, de ser objeto de cuidados.

                Pensei que isso acontecia porque eu não conseguia me entregar com firmeza (ou de qualquer modo) ao sexo, ao trabalho, a ser mãe etc. Pois se eu fizesse isso estaria me chamando de adulta.

                Mas eu nem cheguei a ser criança de verdade!

[…]

                Vejo-me como “alguém que tenta”. Tento agradar, mas é claro que jamais consigo.

                Chamo minha própria infelicidade porque é evidente para o outro que estou tentando. Por trás de “eu sou tão boa que chega a doer” reside o seguinte: “Estou tentando ser boa. Não está vendo como é difícil? Tenha paciência comigo”.

[…]

                Minha monogamia compulsiva é:

                1) uma duplicação da minha relação com minha mãe — não posso trair, senão você vai me deixar.

                Medo

                2) Você não seria importante para mim se eu fosse infiel com você.

                Vontade

                Orgulho [passa para] obstinação [passa para] medo

p. 318-320

3/9/62

[…]

   — Quero ser capaz de ficar sozinha, achar isso revitalizante — e não apenas uma espera.

[…]

                Tenho de mudar de vida para que eu possa vivê-la, e não ficar só à espera dela. Talvez eu devesse abrir mão de David.

p. 322

7/9/62

                Todos os heróis de Freud são heróis da repressão (Moisés, Dostoiévski, Leonardo); é isso o que significa, para ele, ser heroico. Trabalho e diversão. O ego versus o corpo preguiçoso. É por isso que ele atrai o Philip. As pessoas vivem me perguntando (Ann fez isso esta semana) como é que um homem interessado em Freud pode se comportar como faz o Philip. Acho que ninguém leu Freud. Claro, ele era genial quando se tratava de motivos — o que o professor Rieff seguramente não é — mas ele (Freud) era um formidável paladino da vontade “heroica” automutiladora. A psicanálise que ele criou [é] uma ciência da complacência com o corpo, com os instintos, com a vida natural — na melhor hipótese.

p. 322-323

15/9/62  1:15 DA MANHÃ

[…]

                Nesta sociedade, é preciso escolher o que “alimenta” [a palavra “entra” está riscada] — o corpo tem de destituir a mente, + vice-versa. A menos que a pessoa seja muito sortuda ou esperta, antes de mais nada, o que eu não era. Para onde eu quero que vá a minha vitalidade? Para os livros ou para o sexo, para a ambição ou para o amor, para a angústia ou para a sensualidade? Não se pode ter as duas coisas. Nem pense na chance remota de que vou ter tudo de volta no final.

[…]

Ou se é um escritor externo (Homero, Tolstói) ou interno (Kafka). O mundo da loucura. Homero + Tolstói gostam de pintura figurativa — tentam representar um mundo com misericórdia sublime, para além do julgamento — Ou — tirar a rolha da loucura. O primeiro é maior. Eu só serei o segundo tipo de escritor.

p. 323-324

20/9/62

    A mente é uma prostituta.

                Minha leitura é armazenamento, acumulação, fazer reservas para o futuro, encher o buraco do presente. Sexo e comida são apelos completamente distintos — prazeres para si mesmos, para o presente — não servir o passado + o futuro. Não peço nada deles, nem sequer a lembrança.

                A memória é o teste. O que se quer lembrar — enquanto ainda estamos no ato ou na experiência — é deturpado.

                Escrever é outro apelo, isento daquelas restrições. Quitação. Saldar a dívida com a memória.

p. 325

16/10/62

[Folha solta encontrada entre os papéis de SS]

                Sentimentalidade. A inércia das emoções. Elas não são leves e animadas — Eu sou sentimental. Eu me aferro aos meus estados emocionais. Ou são eles que se aferram a mim?

[…]

p. 326

1963

26/3/1963

                Amar a verdade mais do que querer ser boa.

                Pergunto: por acaso essa pessoa desperta em mim alguma coisa de bom? Não: Essa pessoa é bonita, boa, de valor?

[Com data de abril de 1963, sem dia, Porto Rico, e constituído de dez folhas de papel arrancadas de um caderno e grampeadas]

       O olhar é uma arma. Tenho medo (vergonha?) de usar minhas armas.

[…]

        Meu sonho de loucura: não ser mais capaz do esforço necessário para fazer contato. Desobrigada disso por causa da loucura.

[…]

                Minha aversão à manipulação, a me ver no controle consciente — esta é a fonte de X. X = o desejo de me pôr sob a proteção de outros. A título de pagamento adiantado por essa proteção, ofereço a minha amável impotência.

                Trabalho = estar no mundo.

                Amar, ser amada = apreciar o mundo (mas não estar nele)

                Não ser amada, não amar = achar o mundo sem gosto, inanimado

                Amar é a maneira mais elevada de estimar, preferir. Mas não é um estado físico.

p. 328-332

[Sem data, 1963]

          O olhar — mais íntimo (envolvente) do que o abraço sexual, porque nele não há espaço para distanciamento; o gesto é compacto demais.

[…]

                Longa e voluptuosa agonia da indecisão (toda dor sabe como encontrar o seu prazer!)

p. 333-334

[Sem data, mas quase com certeza setembro de 1963]

                Minha escrita [de ficção] é sempre sobre dissociação — “eu” e “isso”.

                [O] problema de assumir responsabilidade — Isso é tratado de forma zombeteira em O benfeitor. Hippolyte serenamente argumenta ser responsável por seus atos, mas de forma patente é mais assombrado do que admite…

p. 335-336

[Sem data, final de 1963]

                O êxtase intelectual a que tenho tido acesso desde o início da infância. Mas êxtase é êxtase.

                “Carência” intelectual como carência sexual.

p. 336

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Diários [1947-1963] – XV

Susan Sontag, Diários [1947-1963], org. David Rieff, Companhia das Letras, 2009.

1961

3/3/61 

                Jackson Pollock:

                “Estou interessado em exprimir, e não em ilustrar as minhas emoções.”

[…]

                fonte de X:

                não gostar de verdade da pessoa

                talvez eu nunca tenha gostado de ninguém

p. 282-283

13-14/4/61

[…]

                Meus sentimentos reprimidos vêm à tona — devagar

                Na forma de ressentimento

                Uma contínua perda de sentimentos

                Todavia, sem a força plena do sentimento presente em qualquer momento determinado para lhe dar respaldo, meu ressentimento carece de sustentação. Toma a forma de um apelo para que a outra pessoa dê a solução

                Duas necessidades fundamentais em guerra dentro de mim:

                necessidade de aprovação alheia

                temor dos outros

                Minhas reprimendas são sempre uma reação, não uma ação. São reprimendas ao outro por me repreender!

                Asseguro aos outros toda a liberdade que nego a mim mesma. Para exprimir seus sentimentos, ser aquilo que são (porque “eles não podem evitar”). As únicas coisas pelas quais permito a mim mesma ficar zangada são:

                trair uma relação de confiança

                recusar me ajudar

p. 283-284

23/4/61

                O problema das emoções é essencialmente um problema de escoamento de esgoto.

A vida emocional é um complexo sistema de esgoto.

                Tem de cagar todos os dias senão acaba ficando bloqueado.

[…]

                Onde começar? A psicanálise diz: por um inventário do excremento. Dissolve sob um olhar contínuo — humorístico, no final das contas.

[…]

                O moderno deslocamento da sensibilidade decorre do fato de que ainda experimentamos o espaço perceptivamente, mas não acreditamos que a nossa percepção — nossa experiência — seja verdadeira.

[…]

                A maneira “primitiva” de ver, experimentar, é a maneira humana, a maneira natural.

                A maneira científica é artificial, um produto da abstração. Nunca acreditamos nisso, i. e., não o experimentamos.

                Só agora aprendemos/acreditamos que a maneira natural de experiência + percepção é falsa, + a maneira artificial [que nunca experimentamos] é verdadeira. Disso resulta uma espécie de esquizofrenia da sensibilidade.

    Ciência é uma forma de alienação da sensibilidade.

p. 284-286

1º/5/61

[…]

                Detestar ser criticada é uma reação inevitável para quem não se sente responsável pelos próprios atos. Tal pessoa vê todos os seus atos como coerções; eles não emanam dela mesma. Portanto, é claro, toda crítica é injusta, desleal.

MAIO DE 1961 [Sem dia especificado]

[…]

                A vida da cidade: uma vida em quartos, onde a gente fica sentada, ou deitada. A distância pessoal é regida pela disposição da mobília. Numa sala de estar só há uma coisa para se fazer com outra pessoa (além de amor — i. e., ir para o quarto): sentar e conversar. A vida na sala de estar nos obriga a conversar e inibe a capacidade de brincar, e de contemplação.

                Harriet conclui: é melhor não ter móveis.

p. 291

12/6/61

[…]

                Ser lúcido = ser ativo, não querer ser “bom”, i. e., não querer que cada um, em troca, goste de mim

                Eu estou pourrie [ou seja, “podre”], com receio de que não me “permitam fazer o que eu quiser fazer”

                Porque minha carência não é forte — ela teme riscos; requer aprovação

p. 293

10/8/61

[…]

                Por que eu me desprezo em meus sonhos?

                Receio que eu nunca tenha usado o meu corpo. (Meus sonhos me dizem…)

p. 297

13/8/61

[…]

                Nunca entendi o ascetismo. Sempre achei que era proveniente da falta de sensualidade, falta de vitalidade. Nunca me dei conta de que existe uma forma de ascetismo — que consiste em simplificar nossas necessidades e procurar ter um papel mais ativo quanto a satisfazê-las — o que vem a ser exatamente uma espécie mais desenvolvida de sensualidade. A única espécie de sensualidade que compreendi supõe o amor da volúpia + conforto

    Para escrever, é preciso permitir-se ser a pessoa que você não quer ser (entre todas as pessoas que você é)

       Escrever é um bonito ato. Cria algo que dará prazer aos outros mais tarde

p. 297-298

16/8/61

[…]

                Faço contato com pessoas trocando cartões de apresentação. De onde você é? Ah, você conhece fulano? (um homossexual, se a pessoa é homossexual, um escritor, se a pessoa é um escritor, um professor se a pessoa com quem estou falando é professor etc. etc.) Mais tarde, vem: Você leu…? Você assistiu…?

p. 299

23/8/61

[…]

                Quando a gente tem um tumor, precisa fazer uma cirurgia, disse ela. Eu chorei. Ela pegou minha mão. Mas vai propor isso de novo, em breve.

                Falei com ela ontem: “Eu amo você”, e ela respondeu: “E o que isso tem a ver com a questão?”.

                Hoje à noite passei uma hora (quando ela estava lá embaixo no portão) me masturbando + estudando a minha vagina com um espelho. Quando ela voltou, eu lhe contei. “E você descobriu alguma coisa?”, perguntou. “Não”, respondi.

                PRECAUÇÃO

                Não seja tão cuidadosa quando houver uma coisa boa. Não esteja tão certa de que aquilo que vem depois deve ser bom.

[…]

                I: Sexo é hipnose. Manter um ritmo de maneiro monótona. (Se bem que nem todos os ritmos são ritmos sexuais.) Ritmos em marchas variadas e sucessivas.

    O passado não é nada mais que um sonho.

p. 299-300

24/8/61

[…]

        No sexo não há lugar para a cortesia. Cortesia  (não delicadeza) é unissexual.

p. 301

12/9/61

[Perto da data vem a seguinte anotação: “Trem Praga-Paris”]

                1. Nada de afirmações gerais sobre o meu próprio caráter, critérios — como “Eu nunca…,” ou “Eu não diria…”

                Aquilo que foi depositado dentro de mim desde a minha infância — mais como critérios do que como inclinações ou gostos — eu formulo desse modo.

                Por exemplo: “Eu não levaria o David para uma clínica” ou “Eu nunca emprestei dinheiro para Harriet” —

                Gostos, peculiaridades não generalizam a respeito de si mesmos; apenas se afirmam numa instância particular. Não ficam indignados quando não são previstos.

  A indignação é um bom sinal de que alguma coisa está errada —

                Você não diria: “Eu nunca ponho leite no meu café!”.

                A indignação, a afirmação geral, tem de atestar para todos o esforço feito para manter a atitude. Não que seja sempre contra as inclinações da pessoa (provavelmente é, na maioria dos casos), mas pelo menos é uma atitude que não foi absorvida, que a pessoa “carrega”, como um dever, uma obrigação, uma regra. E a gente fica indignado quando sabe que nem todo mundo reconhece esse dever, + o nosso esforço parece ter menos valor porque nem todo o mundo o fez.

                2. Sobre dinheiro: [não há mais nenhum texto na entrada]

                3. Ficar limpa — o problema está ligado ao sexo. Eu me sinto “pronta para o sexo” depois de tomar banho, mas não há nenhum sexo; por isso reluto em tomar banho — receio a consciência da minha própria carne que o banho sempre me traz. (Uma recordação: o banho de chuveiro — o que eu disse para Danny quando estava indo a uma festa em Near North Side [de Chicago] com ela — me pediram que saísse.)

p. 302-303

14-15/9/61

                1. Não me repetir

                2. Não tentar ser divertida

                3. Sorrir menos, falar menos. Ao contrário, e o mais importante, sorrir, quando tiver vontade de sorrir, e acreditar no que eu digo + dizer só aquilo em que acredito

                4. Pregar meus próprios botões ( + abotoar meus lábios)

                5. Tentar consertar as coisas que não estão funcionando

                6. Tomar banho todo dia, e levar o cabelo de dez em dez dias. O mesmo para D.

                7. Pensar no motivo por que fico roendo as unhas no cinema

                8. Não fazer gozação com as pessoas, não ser venenosa, não criticar o aspecto dos outros etc. (tudo isso é vulgar e presunçoso)

                9. Ser mais econômica (porque a maneira descuidada como gasto dinheiro me torna mais dependente de ganhar todo esse dinheiro)

p. 303-304

[Sem data no caderno]

[…]

                Pensar: “Isso não tem importância”.

Pensar em Blake. Ele não sorria para os outros.

                Eu não me domino. Não devo tentar dominar ninguém; é inútil, pois sou desajeitada demais.

                Não sorrir tanto, ficar sentada em posição ereta, tomar banho todo dia e acima de tudo Não Dizer Aquilo, todas essas frases que já vêm prontas para dizer na fita de telégrafo por trás da minha língua.

                “Não ter anseios” etc.

                Eu tenho de ir além até mesmo daquilo que até agora foi difícil demais para mim.

                Cuidado com tudo aquilo que você ouve a si mesma dizendo muitas vezes.

[Mais adiante na entrada 15/9/61, bem à frente no caderno, também com a observação “en avion”]

                A ideia da morte, e de medir minhas preocupações em relação à ideia de que eu devo morrer hoje.

[…]

                “Espere… Eu não terminei…”

                Sexo não é um projeto (à diferença de escrever um livro, fazer uma carreira, criar um filho). Sexo se consome todos os dias. Não existem promessas, objetivos, nada adiado. Não é uma acumulação.

                Sexo é o único bem que a morte não pode nos tomar com trapaças, uma vez que a gente tenha começado a ter vida sexual. Morrer depois de um ano de felicidade sexual não é mais triste que morrer depois de trinta anos disso.

                Então só as ações repetidas estão livres do gosto amargo da morte.

p. 305-306

[Sem data, possivelmente inserida neste caderno seis anos depois (é impossível dizer se a data escrita é “1961” ou “1967”).]

                Há alguns anos me dei conta de que ler me deixava enjoada, que eu era como um alcóolatra que no entanto experimentara uma tremenda ressaca depois de cada porre. Após uma ou duas horas folheando livros numa livraria, eu me sinto embotada, inquieta, deprimida. Mas eu sei por quê. Eu não conseguiria me manter afastada dessa história toda.

                — Também a necessidade de dormir depois de um acesso de leitura (em especial se li diversos livros) reflete isso (eu costumava passar de um para o outro — sem entender o que eu sentia — e ler daquele jeito sôfrego, com diversos livros ao lado da cama de noite, a fim de pegar no sono).

                A razão pela qual a maior parte das coisas parece melhor depois de comprada e retirada da loja — até no ônibus a caminho de casa — é que elas já começaram a ser amadas.

[…]

   “Eu gosto de pessoas que exteriorizam seus sentimentos.”

                ouverte, aimable, spontaneé

p. 306-307

[Sem data]

                Camus:

                Toda vez que alguém (que eu) se rende às vaidades de alguém, toda vez que alguém pensa e vive para “aparecer”, esse alguém está traindo… Não é preciso entregar-se aos outros, mas apenas àqueles a quem amamos. Pois aí já não se trata mais de entregar-se a fim de aparecer, mas só a fim de dar. Há muito mais força num homem que só aparece quando deve aparecer. Ir até o fim, isso significa saber como guardar um segredo de alguém. Eu sofri por estar sozinha, mas a fim de preservar meu segredo eu dominei o sofrimento de estar sozinha. E hoje não sei de outra glória maior do que viver sozinha e desconhecida.

  Escrever, minha alegria total!

                Concordar com o mundo e desfrutá-lo — mas só em nudez.

p. 307

19/9/61

[…]

                Existem mistérios (e não apenas incertezas): é isso que o espírito puritano não compreende.

[…]

                Querer dormir sem trocar de roupa está ligado a não tomar banho. É quando eu quero fazer isso.

        Ficar magra: mudança de identidade.

                Celebramos nossa mudança de caráter alterando nossa aparência pessoal.

p. 309-310

3/12/61

                Tomar consciência dos “pontos mortos” dos sentimentos — Falar sem sentir nada. (Isso é muito diferente de minha antiga repulsa a mim mesma ao falar sem saber nada.)

      O escritor tem de ser quatro pessoas.

p. 311

9/12/61

                O medo de ficar velha nasce do reconhecimento de que não estamos vivendo agora a vida que desejamos. É equivalente à sensação de maltratar o presente.

p. 312

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Diários [1947-1963] – XIV

Susan Sontag, Diários [1947-1963], org. David Rieff, Companhia das Letras, 2009.

[Sem data, fevereiro de 1960]

                X, o flagelo.

                “X” é quando a gente se sente um objeto, e não um sujeito. Quando a gente quer agradar e impressionar os outros, ou dizendo o que eles querem ouvir, ou os deixando chocados, ou contando vantagem + mencionando o nome de gente famosa a torto e a direito, ou sendo muito bacana.

                Os Estados Unidos são um país muito X. Podem limitar “X” com regras de comportamento de classe + sexo, que os Estados Unidos definiram claramente.

                A tendência de ser indiscreto — ou sobre si mesmo ou sobre os outros (as duas coisas andam juntas, como em mim) — é um sintoma clássico de X. (…)

                Quantas vezes falei para as pessoas que Pearl Kazin era uma namorada importante de Dylan Thomas? Que Norman Mailer faz orgias? Que [F.O.] Matthiessen era gay? Tudo de conhecimento público, está claro, mas quem sou eu afinal para sair por aí divulgando os hábitos sexuais dos outros?

                Quantas vezes eu já me injuriei por causa disso, o que é só um pouco menos ofensivo do que o meu costume de ficar mencionando o nome de gente importante (quantas vezes falei sobre Allen Ginsberg no ano passado enquanto estava na Commentary?). E o meu costume de criticar as pessoas se as outras pessoas solicitam isso. Por exemplo, criticar Jacob [Taubes] para Martin Greenberg, para Helen Lynd [socióloga e filósofa social, 1892-1982] (de modo mais moderado, mas foi porque ela estabeleceu o tom) (…) etc.

                Sempre entreguei as pessoas umas para as outras. Não admira que eu seja tão cheia de princípios e tão escrupulosa quando se trata de usar a palavra “amigo”!

                Pessoas que têm orgulho [uma linha foi traçada em volta da palavra nesta entrada de SS] não despertam o X na gente. Elas não imploram. Não podemos ficar preocupadas em ferir essas pessoas. Elas controlam a si mesmas por fora do nosso joguinho desde o início.

                Orgulho, a arma secreta contra X. Orgulho, o X-cídio.

                …À parte a análise, a zombaria etc., como é que eu me curo de fato de X?

                I diz que análise é bom. Uma vez que foi a minha mente que me meteu nesse buraco, tenho de cavar eu mesma para achar a saída por meio da mente.

                Mas o verdadeiro resultado é uma mudança de sentimento. Mais exatamente, uma nova relação entre sentimentos e a mente.

                A fonte de X é: eu não conheço meus próprios sentimentos.

                Não sei quais são os meus sentimentos verdadeiros, por isso olho para as outras pessoas (a outra pessoa) para que elas me digam. Então a outra pessoa me diz quais os sentimentos que ele ou ela gostaria que houvesse em mim. Para mim, isso não tem problema, pois afinal, como não sei mesmo quais são meus sentimentos, quero ser agradável etc.

                […]

Como a gente conhece os próprios sentimentos?

                Não acho que eu conheça nenhum dos meus sentimentos agora. Estou ocupada demais pondo estacas para eles se apoiarem e mantendo-os juntos.

                Lembro que manifestei admiração (+ sentimento de superioridade) quando Harriet uma vez em Paris disse que ela não sabia se á tinha estado apaixonada por alguém. Eu não conseguia entender do que ela estava falando. Eu disse que aquilo nunca tinha acontecido comigo. Claro que não. Pois para mim estar apaixonada é decidir: estou apaixonada + aferrar-se a isso, eu sempre estou bem informada.

                Não sei quais meus verdadeiros sentimentos. É por isso que sou tão interessada em filosofia moral, a qual me diz (ou pelo menos me volta para) aquilo que os meus sentimentos deveriam ser. Por que se preocupar em analisar a matéria bruta, eu argumento, se eu sei como produzir diretamente o metal refinado?

                Por que eu não sei o que eu sinto? Será que não estou prestando atenção? Ou será que estou desligada? Todo mundo não tem naturalmente razões para tudo? (…)

                …Por que não nos importamos quando os outros reagem de modo X conosco? Por acaso eu não desprezo, de fato, o jovem prematuramente careca no refeitório da faculdade que deixa o lugar todo cheio de X? Por acaso eu não desprezava Jacob [Taubes] por tentar ser amável, por dizer para Alfred e Irene, na noite da última quinta-feira, que um dia talvez experimentasse ser gay?

                Lembro como eu admirava de forma apaixonada a maneira como Nahum Glatzer ia para as festas da faculdade Brandeis, e a certa altura da noite dizia que iria embora às dez horas e exatamente às dez ele levantava + não importava o que qualquer um dissesse, ele ia embora mesmo. É claro, em geral ninguém dizia nada — só porque ele parecia um homem que estava fazendo aquilo que queria fazer, que tinha a intenção de fazê-lo, que não estava nem um pouco tentado a agir de outro modo.

O segredo está aí. Assim ninguém pode nos persuadir.

                Lembro como P + eu discutíamos sobre a maneira como Nahum ia embora das festas e como eu até disse para Nahum certa vez como eu o admirava por causa disso. Ele apenas sorriu um pouco, não falou nada.

                Tão lindo e tão não-X ele era conosco, se bem que aparentemente era muito X com a administração da Brandeis!

p. 262-266

21/6/60

                Falei com I na noite passada que quanto menos sexo eu fazia, menos eu queria. (Que coisa inacreditável o que aconteceu conosco.) É verdade. Ou então é que quando eu tenho um bloqueio sexual, e desisto do sexo, é isso o que eu quero continuar a fazer, pelo menos por um tempo.

p. 269-270

[Sem data, muito provavelmente primavera de 1960]

[…]

                Ler:

         Kierkegaard sobre o conceito de ironia (essa foi a sua dissertação, 1841)

p. 271

29/2/60

                Mais pensamentos sobre “X”:

                X é a razão por que sou uma mentirosa contumaz. Minhas mentiras são aquilo que eu acho que a outra pessoa quer ouvir.

                […]

                Será que o problema não está em que eu não conheço nenhum dos degraus entre a escravidão total a uma responsabilidade e a irresponsabilidade à maneira de um avestruz? Tudo ou nada, aquilo de que tenho me orgulhado tanto na minha vida amorosa!

                Todas as coisas que eu desprezo em mim mesma são X: ser uma covarde moral, ser mentirosa, ser indiscreta a respeito de mim mesma + outros, ser uma impostora, ser passiva.

                […]

                X é a “má-fé” de Sartre

p. 273-274

7/3/60

                É preciso distinguir a “verdade” da “verdade sobre”. É verdade que 1) estava nevando e 2) Aron Nolan pôs leite no café que me trouxe. Mas a verdade sobre, por exemplo, o relacionamento entre I e mim não é um inventário daquilo que aconteceu, do que foi dito, feito. É uma interpretação, uma visão.

                …Existem graus de “verdade sobre”.

                Que instrumento delicado é a língua.

p. 274

12/3/60

                A maneira de superar X é sentir-se (ser) ativa, e não passiva. Eu me sinto ansiosa quando o telefone toca — portanto não atendo ou peço que outra pessoa atenda. A maneira de vencer isso é não me obrigar a atender o telefone. É dar eu mesma o telefonema.

                […]

                Nada de parecido com uma tentação. Uma tentação é um desejo, uma volúpia como qualquer outra — mas da qual depois nos arrependemos + gostaríamos de desfazer (ou da qual sabemos de antemão que vamos nos arrepender depois). Portanto, não é desculpa nenhuma dizer: “Eu não tinha a intenção. Fui tentada + não consegui resistir.” Tudo o que se pode dizer com honestidade é: “Eu fiz isso. Lamento ter feito”.

                Sentir-se magoada é passivo; sentir-se zangada é ativo.

A fonte da depressão é a raiva reprimida. (…)

p. 275-276

20/3/60

                Acredito em moralidade em pequenas doses.

[…]

                A vontade. O fato de eu hipostasiar a vontade como uma faculdade à parte faz um corte no meu compromisso com a verdade. Na medida em que eu respeito minha vontade (quando minha vontade + meu entendimento entram em choque) eu nego a minha mente.

                E quantas vezes eles entraram em choque. Essa é a postura básica da minha vida, meu kantismo fundamental.

                Não admira que minha mente seja muda + lenta. Na verdade, não acredito na minha mente.

                A ideia da vontade muitas vezes se aproximou do abismo entre aquilo que digo (eu digo o que não acredito — ou sem pensar bem nos meus sentimentos) e aquilo que sinto.

p. 278-279

18/12/60

[…]

     Autodesprezo e vaidade. Distanciamento + convencionalidade.

p. 281

20/12/60

                Ler Memórias Póstumas de Brás Cubas [do romancista brasileiro Machado de Assis], [muitos anos depois, SS escreveria o prefácio para um reedição do livro em inglês]; reler Sob os olhos do Ocidente [de Conrad] + Henry de Montherlant.

                Terminar o romance [SS está escrevendo seu primeiro romance, O benfeitor, cujo personagem central se chama Hippolyte, o “H” nesta entrada do diário] com uma carta de H? — Para?

p. 281

Publicado em Antropologia, Autobiografias, Ciência Política, Estudos Culturais, Estudos de Gênero, Filosofia, Literatura, Psicanálise, Psicologia, Psiquiatria, Sociologia

Diários [1947-1963] – XIII

Susan Sontag, Diários [1947-1963], org. David Rieff, Companhia das Letras, 2009.

1960

11/1/60

[…]

                I: Sabe por que você acha tão difícil viver?

                Você tem rodado sem gasolina.

                S: Como assim? Honestidade é a gasolina?

                I: Não, honestidade é o cheiro da gasolina.

[…]

                Eu tenho medo, digo eu. Tenho medo de que levantar a tampa possa mudar minha vida, me levar a desistir. Não quero saber o que eu penso de verdade, ora bolas, se isso significa que eu iria “desistir de dar aula, mandar David para um orfanato e mandar Irene para o White Horse”. Mas I responde: “Na verdade, nada tem muita importância”. Eu começo a chorar.

“É melhor ferir as pessoas do que não ser inteira.”

[…]

                Não importa o que eu tenha dito, minha vida, meus atos dizem que eu não sei a verdade, que eu não quis a verdade.

p. 242-243

13/1/60

                …Pode levar cinco anos para que compreender por que não gosto de atender o telefone…

                …Há tantos níveis em que compreendo o problema do telefone… E a língua contemporânea, com o seu medíocre vocabulário de autoanálise, me ajuda a continuar a viver na superfície de mim mesma. Posso dizer que sou tímida; ou neurótica; ou sensível ao bárbaro insulto à privacidade representado pelo telefone. (…)

[…]

                Durante vários séculos a.C. alguns templos gregos foram conservados como refúgios, onde os emocionalmente perturbados podiam recuperar  a calma + atmosfera repousante (“terapia do meio”)

p. 244

14/1/60

                Hoje enxerguei para além de Kant (na verdade, ontem, já é uma hora da madrugada). Aulas maravilhosas, as últimas do período: sinto uma grande afeição por vários daqueles garotos —

                1. Kant começa no ponto certo, tomando como paradigmático da situação moral um estado de conflito ou de indecisão. Especificamente, o conflito entre inclinação + o sentido do dever.

                Aqui ele está no centro: Comparem com Aristóteles, que faz filosofia moral nos fazendo uma prescrição do tipo de caráter que um homem bom terá, e a variedade de comportamento que vai apresentar. (Considera antes variedades de comportamento do que decisões concretas individuais.)

                2. Por conseguinte o imperativo categórico é inútil.

                3. Curar, tornar são.

p. 245

21/1/60

[…]

                X: a sensação de estar presa, ser coagida por outra pessoa. Mas a gente não pode se libertar, quer que a outra pessoa liberte a gente. Daí vem a safadeza da pessoa-X numa relação de longo prazo, embora, em resumo, ela se manifeste em calor humano + condescendência.

                X num relacionamento sexual passageiro, ou no telefone: a incapacidade de dizer Não.

                X ligada ao sentido de vergonha. X = a compulsão para ser aquilo que a outra pessoa quer.

  Inspiração se apresenta para mim na forma de ansiedade.

p. 246

29/1/60

                O dormitório fedorento da alma

                Importante tornar-se menos interessante. Falar menos, repetir mais, poupar o pensamento para a escrita.

                prazer da tragédia é suicídio indireto

[…]

                Notas sobre o casamento

                Casamento + o conjunto da vida familiar é uma disciplina, muitas vezes comparada (na ortodoxia oriental) à do monasticismo. Ambas aparam as pontas mais salientes da personalidade como pedrinhas roladas pelas ondas do mar e se esfregam e se tornam lisas a longo prazo.

p. 251-252

[Sem data, também muito provavelmente final de janeiro de 1960, depois de uma longa discussão acadêmica sobre vício e virtude, não reproduzida aqui, SS escreve a seguinte paráfrase de uma citação de Nietzsche]

                Não seja gentil. A gentileza não é uma virtude. É ruim para as pessoas com as quais você é gentil. É tratá-las como inferiores etc.

[…]

                …Rosto de estrela de filme mudo — ênfase estava nos olhos; agora — na boca

                Não existe mais o mesmo tipo de closes — rosto olhando para a plateia, sedutor, suplicante etc. [Agora] rosto olha para outro rosto na tela

[…]

                há tantos níveis de sexo quantos são os níveis de intelecto

p. 251-253

[Sem data, muito provavelmente início de fevereiro de 1960]

[…]

                Não gosto de escritores que ignoram o elemento estranheza que se introduziu na vida contemporânea a partir da Bomba.

p. 253

4/2/60

                A visão platônica de Kant está correta. Vi isso na minha palestra sobre Descartes (…).

                A verdade como correspondência aos fatos significa que o modelo de verdade é concebido como informação.

                É verdade que:

                “Está chovendo lá fora.”

                “Cabul é a capital do Afeganistão.”

                + essas afirmações são afirmações verdadeiras porque é, Cabul é a capital do Afeganistão. A introspecção nunca fornecerá para nós tais resultados.

                Mas e quanto a:

                “2 + 2 = 4.”

                “É errado fazer crianças sofrerem.”

p. 254-255

7/2/60

                I acha que “X” é a razão pela qual eu não consigo conversar com duas pessoas ao mesmo tempo (mas sempre me concentro em uma só) e também a razão pela qual eu mantenho outras pessoas afastadas — mesmo algum intruso circunstancial, como garçons — quando estou com alguém…

                …O que cria “X” é o meu sentimento de que cada pessoa com quem estou tem de ser a número 1 comigo.

                Assim, com cada pessoa eu traio todo mundo. Então depois me sinto culpada, minhas contas ficam uma confusão outra vez…

[…]

p. 255

18/2/60

                I e eu não conversamos mais de verdade. Já estamos cansadas, conscientes de que tudo já foi dito ou pelo menos que foi dito mais do que foi feito (que nossa ação está defasada em relação à nossa fala). O sedimento de ressentimento se acumula e parece que a coisa civilizada a fazer é uma evitar os olhos da outra.

                Lembro quando tomei consciência disso pela primeira vez com P. Foi só alguns meses depois de nos casarmos. A primeira discussão foi um choque (…) mas pior ainda era quando discutíamos e não fazíamos mais as pazes. No início nós discutíamos, ficávamos muito zangados, em silêncio, não falávamos; depois um de nós rompia o silêncio para explicar, pedir desculpa, recriminar-se mais um pouco; a discussão mal havia terminado e nós logo púnhamos de lado a mágoa, nos arrependíamos do incidente, chorávamos, fazíamos amor. Mas então começou a acontecer que nós discutíamos, + as brigas duravam muito. Havia um silêncio esgotado, sofrido, de um ou dois dias — ou talvez só de uma noite — e depois, de forma imperceptível, a rotina + as obrigações diárias (…) obrigam a gente a falar, a se mostrar amigável, e o fio é retomado e a discussão não é abolida, mas sim encoberta por um consentimento mútuo.

[…]

Quantas vezes podemos nos queixar da mesma coisa?

[…]

                Aristóteles versus Hegel:

                Hegel é conciliável com o cristianismo, Aristóteles não

                Em Hegel existe a possibilidade de conversão (“Brechas”); em Aristóteles: crescimento natural, homem se torna mais humano, preenche a finalidade natural

                Hegel tem tempo, liberdade, história — Aristóteles não tem nenhum deles. Hegel é típico da filosofia moderna.

p. 256-258

19/2/60

                (I)

                Duas coisas se entendem por “ser passivo”. Ser alvo da ação. Não reagir. São coisas completamente distintas. Na primeira a pessoa pode ser “ativa” (?)

                Alfred diz que se sente enganado pelos anos em que foi ativo sexualmente. Sente que se deteriorou sexualmente, seu pênis ficou menos sensível. Seu corpo todo também.

                O que tem mais prazer? O polegar ou a boca? A boca. Por quê?

[…]

                …Assim como o presente é frustrante, o passado é mais real. Como I lembra o nosso passado, tantos detalhes que eu esqueci embora eu lembre muita coisa. Em todo casal existe alguém que é o historiador do relacionamento: com Philip e comigo, era eu quem lembrava; com I, é ela quem lembra…

p. 258-261

[Sem data, fevereiro de 1960]

                Nos Estados Unidos, o culto da popularidade — querer ser apreciado por todos, inclusive pelas pessoas de quem a gente não gosta

p. 262

Publicado em Antropologia, Autobiografias, Ciência Política, Estudos Culturais, Estudos de Gênero, Filosofia, Literatura, Psicanálise, Psicologia, Psiquiatria, Sociologia

Diários [1947-1963] – XII

Susan Sontag, Diários [1947-1963], org. David Rieff, Companhia das Letras, 2009.

1959

[Sem data mas quase seguramente início de 1959]

                A feiura de Nova York. Mas eu gosto de fato disto aqui, gosto até de Commentary [revista que contratou SS como editora e na qual colaborou com artigos e resenhas]. Em NY a sensualidade se transforma completamente em sexualidade — não há objetos para os sentidos reagirem, nenhum rio lindo, nem casas nem pessoas lindas. Cheiros horrorosos na rua, a sujeira… Nada senão comer, se tanto, e o frenesi na cama.

                Ajustar-se à cidade versus fazer a cidade reagir melhor ao eu.

p. 226

                exuberância é beleza (Blake)

12/4/59

                Estou em má forma. Estou aqui escrevendo isto; escrevo devagar e olho para a minha caligrafia, que parece direita. Dois martinis com vodca com Marty Greenberg. Sinto a cabeça pesada. Fumar é amargo. Tony e um sujeito com uma cara que parece um queijo ([o crítico social], Mike Harrington, estão conversando sobre Stanford-Bonets. Kleist é maravilhoso. Nietzsche, Nietzsche

12/6/59

                Orgasmo bom versus orgasmo ruim

                Existem orgasmos de todos os tamanhos: grandes, médios, pequenos.

                O orgasmo da mulher é mais profundo que o do homem. “Todo mundo sabe disso.” [Entre aspas sem a autoria no diário.] Alguns homens nunca têm orgasmo; ejaculam sem sentir nada.

                Foder versus ser fodida. A experiência mais profunda — mais vivida — é ser fodida. O memos vale para ficar por cima e ficar por baixo. Durante anos I[rene] não conseguiu ter um orgasmo deitada embaixo, porque (?) não conseguia aceitar a ideia de se entregar completamente, de ser “possuída”.

                A lésbica que for “masculinidade pura” não vai nem deixar que sua parceira toque nela.

[…]

                “A ideia do Lar — “Lar, doce lar” — deve ser destruída ao mesmo tempo que a ideia da Rua.”

                                                                                                                                 — Piet Mondrian

                “Maldito seja aquele endividamento mútuo moral… Eu seria livre como o amor; e estou afundado no mundo inteiro dos livros.”

— Melville

[Sem data, mas também quase seguramente início do verão de 1959]

 minha agressividade resulta do meu sufoco

p. 228-229

[Sem data, mas quase seguramente do outono de 1959]

[…]

                Para os judeus instruídos, nos Estados Unidos hoje em dia, a rejeição ao cristianismo é um pré-requisito para optar pelo judaísmo

                A marca do judaísmo no meu caráter, meus gostos, minhas convicções intelectuais, a própria postura da minha personalidade

                O contínuo esforço para justificar o fato de ser judia

p. 231

[Sem data, também do outono de 1959]

                Mundo de Françoise Sagan — um grupo de parisienses, na maioria ligados às artes, que formam um círculo de paixão sexual não correspondida.

[As entradas seguintes não têm data, mas é quase certo que este caderno tenha sido escrito no outono de 1959]

                Mies van der Rohe: “Menos é mais”.

                Jane Austen: “Eu escrevo sobre o amor + dinheiro. O que mais existe para se escrever?”.

                Kafka: “A partir de certo ponto, não há volta. Esse é o ponto que se deve atingir”.

[…]

                Estilo de [revista] New Yorker:

                Dicção da classe média alta bordada com coloquialismos. Dá a impressão de elegância arrevesada — de um amador inteligente — não consegue comunicar a percepção de um sentimento profundo

p. 233

Outubro de 1959 [sem dia específico]

Não sou devota, mas codevota

19/11/59

[…]

                O orgasmo põe em foco. Eu anseio por escrever. A vinda do orgasmo não é salvação, porém, mais que isso, o nascimento do meu ego. Não consigo escrever antes de achar o meu ego. O único tipo de escritor [que eu] poderia ser é o tipo que se expõe… Escrever é consumir a si mesma, apostar a si mesma. Mas até agora eu não consegui gostar nem do meu próprio nome. Para escrever, tenho de amar o meu nome. O escritor vive apaixonado por si mesmo… e faz seus livros a partir desse encontro e dessa violência.

p. 235

20/11/59

[…]

                Shelley, seguindo John Frank Newton (Shelley o conheceu [em] 1812), interpretou Platão como [um] poeta órfico que apresentou o sistema órfico de salvação em seus diálogos (a interpretação neoplatônica esotérica de Platão)

                Shelley em Prometheus unbound faz Demogorgon falar “A verdade profunda é sem imagem”. A poesia é em si mesma uma “abóbada de vidro colorido” que “mancha o esplendor branco da Eternidade”.

                Cf. [Thomas Love] Peacock, “Memoirs of Shelley”

                Dieta órfica (Pitágoras também): nenhuma carne animal (purificação)

                Orfismo derivado do hinduísmo?

                Cf. os comentários de Shelley sobre a opinião de Platão a respeito de poesia em “A defense of poetry” (escrito em resposta ao ataque zombeteiro de Peacock contra a poesia em “[The] four ages of poetry”)

p. 236

24/12/59

[…]

                Meu desejo [SS primeiro escreveu “necessidade”, depois riscou] de escrever está ligado à minha homossexualidade. Preciso da identidade como uma arma, para fazer face à arma que a sociedade tem contra mim.

            Isso não justifica minha homossexualidade. Mas me daria — eu sinto — uma autorização.

                Estou só começando a ter consciência de como me sinto culpada de ser homossexual. Com Harriet, pensei que isso não ia me incomodar, mas eu estava mentindo para mim mesma. Deixei os outros (por exemplo, Annette [Michelson] acreditarem que era Harriet, que ela era a minha depravação, e que se não fosse por ela eu não seria homossexual, ou pelo menos não seria sobretudo isso.

                Relaciono meu medo e meu sentimento de culpa a Philip, ao fato de ele ter divulgado isso para todo mundo em toda parte, na expectativa de mais um julgamento em torno da guarda do filho no verão que vem. Mas talvez ele só esteja piorando as coisas. Assim, por que eu continuo a farsa com Jacob [Taubes]?

                Ser homossexual me dá sensação de ser mais vulnerável. Aumenta meu desejo de esconder, de ser invisível — o que, de resto, sempre senti.

p. 238

Publicado em Antropologia, Autobiografias, Ciência Política, Estudos Culturais, Estudos de Gênero, Filosofia, Literatura, Psicanálise, Psicologia, Psiquiatria, Sociologia

Diários [1947-1963] – XI

Susan Sontag, Diários [1947-1963], org. David Rieff, Companhia das Letras, 2009.

26/2/58

[…]

                Sua insaciabilidade, querida Harriet, é apenas a maneira consoladora como seu talento para a saciedade aparece para você. Nunca obter aquilo que se quer é nunca querer (por muito tempo) aquilo que se obtém — exceto, às vezes, quando é tomado à força.

p. 210

26/2/58

                …Ouvi Simone de Beauvoir falar sobre o romance (ele ainda é possível) na noite passada na Sorbonne (com Jaffe). Ela é magra, tensa, cabelo preto e muito bonita para a idade, mas sua voz é desagradável, algo entre o registro agudo + a velocidade nervosa com que fala…

p. 210

24/3/58

[…]

                …Um filme incrível, Esposas ingênuas, de Stroheim, na Cinemathèque, na noite passada. Um filme de Don Juan, com a linda visão lasciva de Stroheim, o deslumbrante figurino militar e sexy, as maneiras sádicas. Volúpia não é um tema aceito nos filmes americanos — e esse homem foi assistente de [D.W.] Griffith!

p. 213

20/4/58

                Banalidade e dominação — é isso o que eu escrevi em resposta na Universidade de Connecticut [quando SS lecionava lá, alguns anos antes] e estava certa…

                Uma aristocracia da sensibilidade bem como uma aristocracia do intelecto. Não gosto nem um pouco de ser tratada como uma plebeia!

p. 215

27/4/58

                Ler Hemingway, As torrentes de primavera, Oblómov [de Ivan Gontcharov]; De profundis [de Oscar Wilde],

                “Todos os julgamentos são julgamentos da vida de alguém, assim como todas as sentenças são sentenças de morte.”

(Oscar Wilde)

p. 217

31/5/58

[…]

                De mim para Harriet: “É melhor ficar entediada consigo mesma. Não é possível construir a vida na base de um turismo emocional e sexual. É preciso uma vocação…”.

                Turismo é essencialmente uma atividade passiva. A gente se instala em determinado ambiente — esperando ficar empolgada, alegre, entretida. Sem que a gente precise acrescentar nada à situação — o ambiente já está bem carregado.

                Turismo e tédio.

p. 217

4/6/58

                Que diferença pode haver entre a situação de alguém de juízo perfeito num mundo de loucos, e de um louco onde todos têm juízo perfeito?

                Nenhuma.

                Suas situações são idênticas. Loucura e juízo perfeito são a mesma coisa, um isolamento.

p. 218

25/6/58

[Esta entrada é acompanhada de um autorretrato de SS deitada.]

                …Não procurar nas pinturas abstratas as formas — cenas — que se podem distinguir nelas. Isso é olhar a pintura de um modo antes literário do que plástico. Mas aí pouco ou nada se pode dizer a respeito delas…

p. 219

4/7/58

[…]

                Notas sobre Brecht: realismo perfeito na sensacional verossimilhança de representação nos figurinos, nos gestos, nos penteados, nos móveis (por exemplo, na cena da Juventude de Hitler em Terror e miséria do Terceiro Reich, o penteado da mãe é de fato um estilo de 1935, o Völkischer Beobachter que o pai está lendo é de fato um [exemplar do jornal nazista] da época). Mas o realismo está emoldurado, contido em algo maior, assim como os atores representam numa plataforma erguida no palco, um palco menor sobre o palco propriamente dito.

p. 219

13/7/58

[…]

                Os amores mais perfeitos são ilícitos.

                Estreita ligação entre paranoia + sensibilidade.

                A “apatia terapêutica” do [marquês de] Sade.

                Nova York: toda sensualidade é convertida em sexualidade.

p. 220-221

16/7/58

                Delfos

                Montanhas fantásticas e penhascos rosados, o mar devidamente vasto no vale, como no fundo de uma bacia, cheiro de pinheiros, colunas de mármore cinzento estendidas no chão feito troncos de árvore — meio imersas no solo, cigarras cantando, campainhas de burros e gritos de burro (a simulação da agonia) que ecoam nos penhascos, o homem de bigode moreno, sol quente, o verde-prateado palpitante das oliveiras plantadas em terraços na encosta do morro, velhas sorridentes…

                Acho que consigo viver sem Harriet, afinal…

17/7/58

                Atenas

                Atenas daria um bom cenário para um conto — sobre estrangeiros em viagem. Tem uma porção de acessórios de cena atraentes e bem definidos.

                As rechonchudas rainhas americanas de Atenas, as ruas poeirentas cheias de obras, bandas de buzuki nos jardins da taverna de noite, comer pratos de iogurte espesso, fatias de tomate, umas ervilhazinhas verdes e beber vinho resinoso, os enormes táxis Cadillac, homens de meia-idade andando ou sentados no parque, passando os dedos na cabeça cor de âmbar, os vendedores de milho assado sentados nas esquinas junto aos braseiros, os marinheiros gregos em suas calças brancas apertas e com cintas pretas e largas, ocasos cor de morango, por trás dos morros de Atenas, vistos da Acrópole, velhos nas ruas junto às suas balanças propondo pesar a gente em troca de um dracma…

p. 224-225

[Sem data, mas certamente escrito durante a viagem de SS e Harriet para a Grécia em julho de 1958]

                Não restou nenhum gesto emocional grande e livre no repertório do nosso casamento — círculos de insatisfação + dependência cada vez mais estreitos

p. 225

Publicado em Antropologia, Autobiografias, Ciência Política, Estudos Culturais, Estudos de Gênero, Filosofia, Literatura, Psicanálise, Psicologia, Psiquiatria, Sociologia

Diários [1947-1963] – X

Susan Sontag, Diários [1947-1963], org. David Rieff, Companhia das Letras, 2009.

1958

[…]

                [O que se segue está num diário cuja capa tem a indicação dez. 1957. Foi quase certamente escrito no início de 1958, embora o mês não esteja claro. É um relato um pouco ficcionalizado da decisão de SS de deixar o marido e de como ela foi parar em Paris via Oxford. A personagem no conto é chamada de Lee — segundo nome de SS. O marido de Lee é chamado de Martin, o nome do irmão caçula de Philip Rieff. De forma interessante, o amante parisiense, de resto inspirado em Harriet, é um homem chamado “Hazlitt”, e não uma mulher, e a figura que representa Irene Fornes, que viria a se tornar a amante de SS depois de Harriet, é a amante espanhola de Hazlitt, Maria. Aqui estão reproduzidas a introdução ao conto escrita por SS e a sua primeira parte. Nos primeiros parágrafos eu misturei uma versão posterior da decisão de Lee de ir para a Europa no corpo do texto, embora no caderno isso venha acrescido ao final.]

[Prefácio]

                O tempo de escrever para entreter outras pessoas terminou. Não escrevo para entreter os outros, nem a mim mesma. Este livro é um instrumento, uma ferramenta — e tem de ser duro + plasmado como uma ferramenta, comprido, grosso e rude.

                Este caderno não é um diário. Não é um socorro para a memória, para que assim eu possa recordar que em tal data eu vi aquele filme do Buñuel, ou como fiquei triste por causa de J, ou que Cádiz parecia linda mas Madri não.

p. 182-183

[…]

                “Mas eu não posso esperar!”, gritou ela. “Sempre fica para o ano que vem, e para o ano que vem, e nada acontece nunca. E a gente fica sentado nesta ratoeira virando pessoas eminentes, de meia-idade, barrigudos…” Parou, ciente de que não era “nós” o que ela queria dizer na verdade e que esse ataque era totalmente gratuito.

                Quando casou com Martin, ela era uma garota empolgada, gentil e chorosa; agora era uma mulher rabugenta, fraca, sem lágrimas, cheia de uma amargura prematura… Como Martin dependia dela no seu trabalho…

p. 184

[Versão alternativa da partida]

                …Ela sentia uma vontade terrível de ir à Europa, e todos os mitos da Europa ecoavam em sua mente. A Europa corrupta, a Europa cansada, a Europa amoral. Ela, que fora acostumada a ser precoce, aos vinte e quatro anos se sentia estúpida e grosseiramente inocente e queria que a inocência fosse violentada.

                Vivia num sonho de inocência, ela sussurrava para si mesma, enquanto contemplava o oceano enrugado e respingado pela lua, noite após noite, no navio.

                Minha inocência me faz chorar.

                Sou uma paciente, disse ela. Sou o médico e a paciente ao mesmo tempo. Mas o autoconhecimento não é o remédio que prescrevo para mim. Quero todo o autoconhecimento que conseguir obter — não quero ser enganada — mas o autoconhecimento não é o objetivo que procuro. A força, a força é o que eu quero. Força para não sofrer, eu tenho isso e foi isso o que me fez fraca — mas a força para agir —

p. 185

2/1/58

                …Minha vida emocional: dialética entre aspirar à privacidade e precisar submergir num relacionamento apaixonado com um outro. Nota — com Philip eu não tive nem uma coisa nem outra, nem privacidade nem paixão. Nem a fortificação do ego que é conquistada apenas por meio da privacidade e da solidão, nem a esplêndida, heroica e bela perda do ego que acompanha a paixão.

p. 187

4/1/58

                Noite passada, um filme incrível, Os mestres loucos, sobre o culto de Hauka (1927- ) em Accra. O mundo como representação dramática. A imagem de uma civilização morta cerimoniosa vista por meio de um fantástico e ingênuo barbarismo vivant… Com esse filme africano, o sueco Noites de circo. A longa sequência em silêncio no início é sem dúvida uma das coisas mais fortes + belas na história do cinema — fica um pouco abaixo da sequência dos degraus da sequência da escadaria de Odessa no filme Encouraçado Potemkin. O resto do filme é meio um anticlímax, ainda que seja muito bom. Closes maravilhosos do rosto do ator + as garotas.

[Sobre Paris]

                A cidade. A cidade é um labirinto. (Nada de labirintos no campo.) Isso, entre outras coisas, me atrai.

                A cidade é vertical. O campo (+ subúrbios) é horizontal.

                Eu “me estabeleço” na cidade…

                As artes da cidade: placas, anúncios, prédios, uniformes, espetáculos de não participantes.

                A cidade se baseia no princípio de que as estações do ano (Natureza) não importam, não precisam ter importância. Por essa razão, o ar-refrigerado automático, o aquecimento central, o táxi etc. (…)

[…]

                Dever, Responsabilidade. Essas palavras significam de fato algo para mim. Contudo, uma vez que eu admita que tenho deveres, não fico comprometida a considerá-los como opostos às minhas inclinações? Posso admitir que tenho deveres, sem saber quais são? Posso admitir o que são tais deveres, sem descartá-los?

                Compreender o mundo é vê-lo de fora dos sentimentos próprios da pessoa. Essa é a diferença natural entre compreender e agir, embora essa diferença possa ser apagada — como fez Gide, na noção do “ato gratuito”.

p. 188-189

                (…) Por que ser honesto? Por que essa avidez de expor a si mesma, de se tornar transparente? Detestável, se decorre da necessidade de clamar pela piedade dos outros.

                Sentido de realidade = sentido de que as coisas devem ser como são (Spinoza, estoicos). Em mim, muito terapêutico, mas imaturo. Tive a cura antes de chegar a ficar doente.

                O preço da liberdade é a infelicidade. Tenho de torcer minha alma para escrever, para ser livre.

[…]

                Katharine Hepburn — o cabelo puxado para trás, figura magra, até ossuda; traje sob medida com blusas de pescoço alto; atitudes resolutas; sorriso direto-tímido — é a encarnação do ideal feminista de uma mulher. (Interessante que ela sempre tenha sido a atriz predileta de Philip em Hollywood.) Se mulheres exemplarmente independentes, imagens do feminismo, são homossexuais — Garbo, Hepburn, De Beauvoir (assim Annette [Michelson, crítica de cinema e professora] afirmou hoje) — será que isso mina a causa feminista?

p. 190-191

6/1/58

[…]

                Máscara nenhuma é uma máscara completa. Escritores e psicólogos têm explorado o rosto-enquanto-máscara. Não tão bem examinado: a máscara-enquanto-rosto. Algumas pessoas, sem dúvida, usam suas máscaras como invólucro para as emoções ágeis, mas insuportáveis, que estão por baixo. Mas a maioria das pessoas, seguramente, usa uma máscara para apagar o que está embaixo, e se torna apenas aquilo que a máscara representa que elas são.

                Mais interessante do que a máscara como esconderijo ou disfarce é a máscara como projeção, como aspiração. Por meio da máscara do meu comportamento, eu não projeto o meu eu autêntico e em estado bruto — eu o subjugo.

p. 193

[…]

                Quase nunca sonho com David, e nem penso muito nele. David fez poucas incursões na minha vida de fantasia. Quando estou com ele, eu o adoro completamente e sem ambivalência. Quando vou embora, contanto que saiba que estão cuidando bem dele, David se apaga depressa. Entre todas as pessoas que amei, ele é menos que tudo um objeto de amor mental, sobretudo intensamente real.

p. 194

7/1/58

[…]

                Ideia de uma vida após a morte, inclusive o inferno, exigida pela teologia religiosa? A contabilidade moral requer um ajuste de contas. Certas empresas prosperam, outras são consideradas falidas ou fraudulentas ou as duas coisas — e deve haver penalidades + recompensas, pois a vida é coisa séria. É fácil ver como a virtude da justiça, + as artes + escrúpulos de julgar andam de par com uma atitude séria em relação à vida — menos fácil ver que a caridade é coisa séria, porque boa parte do comportamento que é objetivamente caridoso decorre da indiferença e de uma incapacidade de indignação moral.

[…]

                Seriedade é de fato uma virtude para mim, uma das poucas que aceito existencialmente e aceitarei emocionalmente. Adoro ser gozadora e negligente, mas isso só tem sentido contra o fundo do imperativo da seriedade.

p. 195-196

8/2/58

[…]

                Harriet acha que está decadente porque entrou num relacionamento que não a interessa nem física nem emocionalmente. Então até que ponto eu estou decadente, eu que sei como ela se sente de fato, e ainda assim a quero?

                “eles acham… que esse amante cometeu o erro imperdoável de não ser capaz de existir — e eles acabaram com um simulacro nas mãos.” (No bosque da noite)

p. 202

15/2/58

[…]

                Casamento é uma espécie de caçada tácita em casais. O mundo inteiro em casais, cada casal na sua própria casinha, tratando dos seus próprios e pequenos interesses + cuidando da sua própria privacidadezinha — é a coisa mais repulsiva do mundo. É preciso livrar-se da exclusividade do amor casado.

p. 203

21/2/58

[…]

                Não gosto de peças didáticas. Mas gosto de peças filosóficas, divertidas.

                Peças psicológicas? Aí está uma questão mais difícil. Talvez os franceses tenham razão em não gostar de peças psicológicas, romances psicológicos, psicologia — à maneira anglo-americana e alemã — em geral.

                O ideal de peças em que a percepção psicológica é inteiramente exteriorizada, cf. Artaud: “…Il s’agit donc, pour le Théâtre, de créer une métaphysique de la parole, du geste, de l’expression, en vue de l’arracher à son piétinement psychologique et humain.” […Trata-se, para o teatro, de criar uma metafísica da palavra, do gesto, da expressão, com o objetivo de arrancá-lo de seu padrão psicológico e humano.]

p. 207

23/2/58

[…]

                …Minha ambição — ou meu consolo — foi entender a vida. (Ideia equivocada da espiritualidade de uma escritora?) Agora quero simplesmente aprender a viver com isso. Entre outras coisas, a extraordinária autoconsciência destrutiva de Harriet e a sua consciência dos outros me ensinam isso. Daí vem o seu faro para a saciedade.

                Tentei dizer isso ontem — anteontem? — mas como de costume não consegui. Ela sempre discorda das minhas ideias, daquilo que considera minha intelectualidade. Quer acreditar que ela é anti-intelectual.

                “faminta de boca, não faminta de estômago…”

p. 208

25/2/58

[…]

                Tenho pensado muito em P — na sua timidez, seu sentimentalismo, seu baixo vigor, sua inocência. Existe um tipo — o macho virgem — há uma porção deles na Inglaterra, eu imagino. Tem tanto apego ao seu santuário doméstico, a David e a mim, e tão pouco por qualquer outra pessoa — Depois eu quebrei o encanto de piedade e dependência que o unia aos pais. Tal vida, tal temperamento, não é fácil de consertar quando sofre uma avaria. P é um sangrador, de fato fisicamente, e também emocionalmente. Não vai morrer por causa dessa mágoa, mas também nunca mais vai se recuperar.

[…]

                Lição: não se render ao coração de alguém no qual não se é querido.

p. 209

Publicado em Antropologia, Autobiografias, Ciência Política, Estudos Culturais, Estudos de Gênero, Filosofia, Literatura, Psicanálise, Psicologia, Psiquiatria, Sociologia

Diários [1947-1963] – IX

Susan Sontag, Diários [1947-1963], org. David Rieff, Companhia das Letras, 2009.

5/9/57

[O dia em que SS partiu para a Inglaterra de navio.]

[…]

                Uma vez a bordo eu não tive paciência — estava muito transtornada + desatenta — para ficar parada no convés saboreando a silhueta de Nova York no horizonte etc., com os deslumbrados + viciados em câmera, + fiquei aliviada porque logo depois anunciaram a primeira refeição…

                [SS registrou sua estada no navio com muitos detalhes, mas as entradas são pouco mais que anotações de quando ela acordou e foi dormir, o que comeu etc. Não há entrada relativa à sua chegada à Inglaterra. Este caderno recomeça com SS já em Londres.]

p. 166

17/9/57

[…]

                Comecei a sentir náuseas — minha cabeça latejando. [SS sofreu de enxaquecas graves até os trinta e poucos anos.] Andei para a esquerda subindo a Tottenham Court Road; vi um cinema onde estava passando A romana e Arroz amargo e entrei. Vi a maior parte do primeiro e o segundo filme inteiro. Comprei um sorvete de baunilha horroroso entre um filme e outro.

                Me senti pior quando sai às seis horas. (…) Eu devia ter tomado alguma coisa mais cedo, mas de algum jeito tive medo de admitir a enxaqueca. Uma das piores — nas três horas seguintes tomei cinco remédios prescritos + três pastilhas de codeína, antes de conseguir algum alívio.

                Às duas da madrugada, a enxaqueca havia amainado, mas eu fiquei acordada o resto da noite como de costume. (…) Um bocado de energia nervosa despendida na leitura. Às seis da manhã comecei a redigir esta entrada no diário, + agora vou tentar dormir.

p. 166-167

                [Durante a última semana de setembro e a primeira semana de outubro de 1957, SS e Jane Degras foram passar férias na Itália. SS fez anotações abundantes, mas na maior parte um mero registro do que viu, como eram os trens, onde as duas mulheres ficaram hospedadas e o que comeram. A única entrada que incluí é a descrição que SS faz de Florença, que ela estava vendo pela primeira vez.]

                Florença é tão linda que é loucamente irreal; a beleza das cidades modernas consiste numa sensação do seu poder, crueldade, impersonalidade, solidez + variedade (como em Nova York ou em Londres) vista contra os vestígios arquitetônicos de um passado belo (…), mas não é essa beleza que encontramos aqui. Florença é inteiramente linda, ou seja, inteiramente assentada no passado, uma cidade-museu, que tem um presente (lambretas envenenadas, filmes americanos, dezenas de milhares de turistas…), porém tamanho é o esplendor, a densidade + homogeneidade estética da cidade que os elementos modernos — pelo menos a parte italiana — não destoam, não estragam nada.

                A cidade não foi bombardeada durante a guerra, mas muitas casas antigas + prédios e todas as velhas pontes (…) foram explodidas pelos alemães quando se retiraram, em 1944. Há muitas construções novas em andamento, mas a infraestrutura florentina típica (telhado de telhas vermelhas, três ou quatro andares de altura, paredes brancas ou marrons de reboco, janelas compridas com venezianas que podem ser abertas num movimento rápido) está sendo preservada + respeitada em toda parte.

[…]

                …Fiquei comovida com a missa hoje à tarde na Santa Croce. De fato só existe uma religião viável no Ocidente. E o protestantismo — como o nome é revelador; tem sentido como um protesto, em parte estético + em parte religioso (até onde as duas coisas podem ser separadas) contra o catolicismo vulgar, oriental, opressivo. Mas sem a Igreja Católica ele não tem nenhum sentido + é insípido…

p. 168-169

[Sem data, a não ser 1957 Oxford]

                Vida é suicídio, mediado.

                Lutar para pairar acima das minhas devoções, dos meus idealismos.

                Ser autoconsciente. Tratar a si como se fosse um outro. Supervisionar a si mesma.

                Qual é o segredo para começar a escrever de repente, encontrar uma voz? Experimentar uísque. Também ficar aquecida.

p. 169-170

[Sem data, mas muito provavelmente do final do outono de 1957]

                [Hieronymus] Bosch

                desenho de Bosch num museu holandês: o desenho de umas árvores com duas orelhas do lado, como que ouvindo a floresta, + o solo das florestas coalhado de olhos.

                A pintura falava uma língua desconhecida, mas falava de modo claro + a emoção transmitida comovia profundamente

p. 171

4/11/57

                Experimentar uísque. Encontrar uma voz. Falar.

                Em vez de explicar.

p. 171

28/11/57

                [Folha solta encontrada entre os papéis de SS.]

[…]

                Essência da boemia é a inveja — tem de ser uma inteligência sólida à qual a boemia é periférica — só pode existir em determinadas comunidades — por exemplo, San Francisco, Nova York — +, é claro, as escolas preparatórias da boemia — Chicago (faculdade) + Black Mountain (faculdade) etc.

                A moralidade instrui a experiência, não a experiência que instrui a moralidade.

[…]

                moralidade [menos] autointeresse = descobrir compromissos, lealdades —

                uma coisa ou outra — indiferença é respaldo — nenhum pacifismo — existe o ódio justo

[…]

                Réplica a [filosofia da “reverência à vida” de Albert] Schweitzer — Se tudo tem valor — mesmo uma formiga — se não se deve matar a formiga, se ela tem tanto valor quanto eu, então, implicitamente, eu tenho menos valor que a formiga — As pessoas não são todas iguais, não valem o mesmo — Permitir que um mal ocorra é respaldar o mal — Existe a violência justa

                Comunidade—fraternidade—“que bonito” — a maneira da classe média é o não desfrute, lares rompidos, traição sistemática —

                Política é a arte do possível — “voto de protesto” é?

                Ou é ou não é — judaísmo aristocrático — ou “um de nós” ou um dos góis [gentios — não judeus] — o perfeito ti mesmo — existe um eleito, uma elite —

p. 173-174

[Sem data, final de 1957: pouco depois de chegar a Paris, SS encheu um caderno com breves retratos das pessoas que estava conhecendo, o mundo no qual se movia. (…)]

                Os fracassos, os intelectuais fracassados (escritores, artistas, potenciais doutores). Gente como Sam Wolfenstein [um matemático], com seu andar coxo, sua maleta, seus dias vazios, seu vício em filmes, sua pão-durice e sua mania de guardar as sobras, seu ninho familiar sem graça do qual ele foge — me aterroriza.

p. 177

[Sem data, fim de 1957]

                A lua, um borrão amarelo no céu — uma impressão digital amarela na noite.

                Notas sobre filmes

                Intimidade voyeurística da câmera.

                A teoria cinematográfica da “belle image” — um filme é uma série de imagens, lindas… versus filme comovente, inteiramente integrado.

                A câmera, ao mover-se por todo lado, sutilmente nos convida a adotar um personagem + excluir um outro; olhar para cima + sentir admiração por um herói ou medo de um vilão; olhar para baixo + sentir desprezo ou piedade; um olhar para os lados da câmera nos avisa de algum problema; uma panorâmica da direita para a esquerda, invertendo a predominância do uso da mão direita que Hermann Veyl discute no seu livro sobre simetria, confere às pessoas + aos lugares uma sensação fantasmagórica.

                O filme é o romance em movimento; é potencialmente o veículo menos racionalista, mais subjetivado.

p. 178

31/12/57

                Sobre fazer um diário.

                É superficial entender o diário apenas como um receptáculo dos pensamentos privados, secretos, de alguém — como um confidente que é surdo, mudo e analfabeto. No diário eu não apenas exprimo a mim mesma de modo mais aberto do que poderia fazer com qualquer pessoa; eu me crio.

                O diário é um veículo para o meu sentido de individualidade. Ele me representa como emocional e espiritualmente independente. Portanto (infelizmente) não apenas registra minha vida real, diária, mas sim — em muitos casos — oferece uma alternativa para ela.

                Há muitas vezes uma contradição entre o sentido de nossas ações em relação a uma pessoa e o que dissemos que sentimos em relação a essa pessoa num diário. Mas isso não significa que aquilo que fazemos é superficial e só aquilo que confessamos para nós mesmos é profundo. Confissões, refiro-me a confissões sinceras, é claro, podem ser mais superficiais do que as ações. Tenho em mente agora que li hoje (quando fui ao B[oulevard] S[aint] G[ermain] 122 para ver se havia correspondência para ela) no diário de Harriet a meu respeito — aquela avaliação seca, injusta, impiedosa a meu respeito que conclui com ela dizendo que na verdade não gosta de mim mas que a minha paixão por ela é aceitável e oportuna. Deus sabe como isso magoa e me sinto indignada e humilhada. Raramente sabemos o que as pessoas pensam a nosso respeito (ou melhor, acham que pensam a nosso respeito)… Eu me sinto culpada por ter lido algo que não se destinava aos meus olhos? Não. Uma das principais funções (sociais) de um diário é exatamente ser lido escondido por outras pessoas, pessoas (como pais + amantes) sobre os quais o autor se mostrou cruelmente franco apenas no diário. Será que Harriet vai ler isto?

                Escrever. É corruptor escrever com o intuito de moralizar, elevar os padrões morais das pessoas.

                Nada me impede de ser uma escritora, a não ser a preguiça. Uma boa escritora.

                Por que escrever é importante? Sobretudo por vaidade, eu suponho. Porque eu quero ser essa persona, uma escritora, e não porque exista alguma coisa que eu devo dizer. E no entanto por que não também isso? Com um pouco de construção do ego — como o fait accompli que este diário proporciona — eu vou superar as dificuldades para adquirir a confiança de que eu (eu) tenho algo a dizer, e que deve ser dito.

p. 178-180

Publicado em Antropologia, Autobiografias, Ciência Política, Estudos Culturais, Estudos de Gênero, Literatura, Psicanálise, Psicologia, Sociologia

Diários [1947-1963] – VIII

Susan Sontag, Diários [1947-1963], org. David Rieff, Companhia das Letras, 2009.

[Sem data, muito provavelmente final de fevereiro ou início de março de 1957]

                NÃO FAZER

                1. Criticar em público alguém de Harvard —

                2. Aludir à sua idade (de modo jactancioso, respeitoso-irônico, nem de nenhum outro modo)

                3. Falar sobre dinheiro

                4. Falar sobre Brandeis

                FAZER

                1. Banho de chuveiro de duas em duas noites

                2. Escrever para a mamãe dia sim, dia não

p. 150

23/3/57

[…]

                1536 — Henrique VIII expropriou os conventos ingleses. Isso é um fato. Mas o que significa? Ninguém — nenhuma categoria ou profissão relevante — ergueu a voz em protesto. Significa que essa instituição, à qual tanta gente dedicou o coração + sangue + mente, foi morta. O mundo é atulhado de instituições mortas. Quem entre nós levantaria um dedo se a nossa universidade fosse ameaçada, ou se as sinagogas dos Estados Unidos fossem expropriadas pelo general Eisenhower; quem [riscado: “daria a sua vida”] defenderia o Estado-nação, se não fôssemos convocados à força?

                O mundo está atulhado de instituições mortas.

p. 152-153

[Sem data, muito provavelmente final de março ou início de abril de 1957]

                Para a teoria da linguagem:

                Limite do pensamento = linguagem. Linguagem é nexo entre sensação + o mundo.

[…]

                [Citação de H. L. A.] Hart: “Ele me fez andar em volta do problema. É como um labirinto com cem portas; nós entramos por uma, damos uma olhada e saímos de novo”.

[Sem data, mas quase certamente verão de 1957]

                ler o intratável feminista Três guinéus, de Virginia Woolf [ler também] A lua e + as fogueiras (vinte e cinco centavos), de [Cesare] Pavese [e o seu] Mulheres [sós]

p.  154

29/8/57

[…]

                Às cinco horas David começou a gritar — corri para o seu quarto + nós nos abraçamos + beijamos por uma hora. Ele era um solda, de modo que o México ocupou o Texas. “Papai” era um soldado americano.

                Ele me perguntou hoje de manhã se alguma vez eu já tive medo. Respondi que sim, uma vez — quando a fumaça do incinerador encheu o corredor do prédio do apartamento da vovó Sontag + eu pensei que o prédio estava pegando fogo.

                Philip e eu na verdade nunca tivemos uma chance de nos despedirmos adequadamente — nunca houve uma conversa demorada no decorrer desses últimos dias — pois foi só então que paramos de discutir. Ainda estou zonza por causa dessa amargura, + banaliza tudo fingir que não foram trocados todos aqueles insultos amargos.

                Houve lágrimas e abraços apertados sem sexo, e pedidos sobre cuidados com a saúde, e mais nada. A despedida foi vaga, porque a separação ainda parece irreal.

[…]

                Li um pouco de Arte pela arte, de [Albert] Guerard (tão presunçoso + juvenil) e fui dormir por volta das doze horas.

p. 155-156

30/8/57

                (…) dizer “como Gertrude Stein disse para William James, hoje não estou muito a fim de fazer filosofia”. (…)

[…]

                No Elsie [lanchonete em Cambridge]: um sanduíche de rosbife, bolo de maçã aberto, água (sessenta e cinco centavos). Voltei para casa às três e quinze. Continuei a arrumar os papéis sobre Freud, fiz anotações, trabalhei em alguns trechos ruins do capítulo 2. [SS se refere a Freud: The mind of a moralista, o livro que ela e PR estavam escrevendo juntos durante a segunda metade do seu casamento, mas que foi publicado apenas com os créditos de PR, depois da separação e do divórcio subsequente.]

[…]

                Eu ia tomar um banho de chuveiro + lavar o cabelo, mas fiquei com muita preguiça. Li cinquenta e quatro páginas de O sol também se levanta (chato) + peguei no sono à meia-noite e meia.

p. 157-158

1º/9/57

[…]

                Passei o dia todo brigando com o trabalho — esse artigo é uma tolice, + não tenho o menor interesse no assunto. Na verdade, não tenho nenhum interesse em filosofia neste momento. Minha mente está vazia, sofro por causa de uma inquietação. Devo ter caminhado quilômetros dentro desta casa nos últimos três dias. Antes de dormir (mais ou menos à uma hora) terminei O sol também se levanta, li quatro ou cinco contos de Hemingway + “A quinta coluna”. Que podridão!, eu diria, como Lady A.

[…]

                Fui dar uma caminhada às quatro horas. Vi uma hora do filme Matar para viver (Anthony Quinn) no U.T. (Suportável -Technicolor.) Em casa às cinco e quinze.

Me afogando no silêncio; neuroticamente cansada, inquieta…

                (…) Servi uma coqueteleira de creme de mente + fui para o primeiro andar. Comecei a trabalhar a sério às oito horas. Parei às dez e cinquenta. Telefonei para P, que disse que as coisas andam péssimas e à la Balzac em Chicago [na casa dos pais de PR] (Dinheirodinheiro)

p.  160-161

3/9/57

                [Tive de optar por reproduzir o último dia de SS em Cambridge e, na realidade, o último dia de seu casamento com todos os detalhes que ela registrou, mas em seguida o seu igualmente detalhado relato da viagem de trem, sua chegada a Nova York e o que fez na primeira noite que passou lá.]

[…]

                Ele me perguntou o que eu achava do seminário de Hart [o filósofo jurídico e ex-promotor representante da Inglaterra no julgamento de Nuremberg H. L. A. Hart] — eu me mostrei presunçosa, educadamente negativa: a posição que eu sei que é a dele. Juntos “nós” dissecamos o seminário. Eu disse que a analogia básica subjacente que Hart apresenta (mais que isso — identidade, ele postulou) entre as indagações causais do advogado, do romancista, + do historiador era equivocada. Todas eram diferentes — + desenvolvi isso em passagens no meu artigo: Nenhuma distinção entre uso e justificação etc. Ele disse (+ esse foi o único comentário de visão da hora que durou o encontro) que o que mais o aborrecia na maior parte do trabalho que fazia em Oxford (com exceção de Austin, é claro) era que eles pareciam interessados numa descrição fenomenológica de um discurso que não tem clareza. Exatamente, falei; e mais que isso, eles sustentam que isso é tudo o que a filosofia pode fazer com segurança — quando se tenta ir além disso (à maneira dos reconstrucionistas racionais), só se conseguem “mixórdias”, “charadas” etc. — que têm de ser dissolvidas. White achava que é análogo às disputas entre os economistas americanos, entre os “institucionalistas” (por exemplo, Veblen) + aqueles interessados em construir modelos abstratos (ou fórmulas matemáticas) do comportamento econômico. Naturalmente, White achava que ambos estão certos e errados, advogava uma posição intermediária.

                A última parte da hora foi consumida num bate-papo sem compromisso… [e] sobre onde ficar hospedado em Londres + Oxford — (…). Recomendou-me ir a Londres para ouvir [o filósofo A. J.] Ayer e [Karl] Popper. Escreveu uma carta de apresentação para Austin. (Havia uma ponta de hostilidade expressa lá em relação à “srta. Sontag”.) Uma saída sem graça, na qual saí primeiro pela porta + fiquei parada na frente do elevador, depois ele veio atrás + saltou no segundo andar.

                Fui até o térreo + saí pelos fundos na avenida Massachusetts + fui a pé para casa. (…) Eram duas horas em ponto quando o táxi chegou lá, + o trem devia chegar em cinco minutos, + não havia carregadores em parte alguma. O taxista se ofereceu para levar minha bagagem (isso é contra as regras) quando eu fiquei ligeiramente frenética — levou-as para dentro da estação, onde ainda não havia carregadores, + depois levou escada abaixo para o trem que estava acabando de chegar. Por tudo isso mais a corrida de táxi (2,15 dólares) eu lhe dei quatro dólares — ele me cumprimentou com um toque dos dedos no chapéu e me desejou boa viagem (…).

p. 163-165

Publicado em Antropologia, Autobiografias, Ciência Política, Estudos Culturais, Estudos de Gênero, Filosofia, Literatura, Psicanálise, Psicologia, Sociologia

Diários [1947-1963] – VII

Susan Sontag, Diários [1947-1963], org. David Rieff, Companhia das Letras, 2009.

6/1/57

[…]

                 Sobre o casamento. É só isso. Não tem mais nada. As brigas + o carinho, infinitamente reduplicados. Só que as brigas têm uma densidade maior, diluindo a capacidade de carinho.

                O escapamento da fala. Minha mente está escorrendo através da minha boca.

                Minha vontade está mais frouxa do que nunca. Que isso seja o mergulho antes da ascensão.

                Discussões são adequadas para amizades. Mas pessoas que têm de viver juntas não deviam discutir.

                Notas sobre o casamento

                Ser apresentada aos meus bisnetos, no dia das minhas bodas de ouro? “Bisavó, você tinha sentimentos?” “Sim. Foi uma doença que peguei na adolescência. Mas fiquei curada.”

                P:  “Você não sabe como é… se preparar para escrever. A gente senta, com a caneta em punho, folha de papel à mão. Se apronta, fica em posição, se apruma: muito bem, lá vamos nós. Preparar, apontar, escrever… A ideia de escrever varreu de minha cabeça qualquer outra ideia.”

                …”É muito penoso estar sempre no ponto de partida…”

                “Detesto ser tão autoconsciente.”

                A coisa mais preciosa é a vitalidade — não em algum sinistro sentido [D. H.] lawrenciano, mas apenas a vontade + energia + apetite para fazer o que se quer fazer + não ser “afundado” pelas frustrações. Aristóteles tem razão: a felicidade não deve ser almejada; ela é um subproduto da atividade almejada —

p. 119

14/1/57                                                                  

                Ontem David declarou na hora em que estava sendo preparado para ir para a cama: “Sabe o que eu vejo quando fecho os olhos? Toda vez que fecho os olhos eu vejo Jesus na cruz”. Está na hora de Homero, eu acho. A melhor maneira de distrair dessas fantasias religiosas mórbidas e individualizadas é subjugá-las com a sanguinolência impessoal homérica. Paganizar seu espírito meigo…

p. 121-122

                Royce Hall [Universidade da Califórnia, Berkeley]: “O mundo é uma comunidade de interpretação que se concretiza progressivamente”.

p. 133

15/1/57

                Regras + obrigações por ter vinte e quatro [SS nasceu no dia 16 de janeiro de 1933.]

                1. Ter uma postura melhor.

                2. Escrever para a mamãe três vezes por semana.

                3. Comer menos.

                4. Escrever duas horas por dia, no mínimo.

                5. Nunca me queixar em público sobre Brandeis ou sobre dinheiro.

                6. Ensinar David a ler.

                Noite passada, Philip disse: “Não quero mais ser autoconsciente. Como eu odeio Hegel + todos aqueles que enaltecem a autoconsciência como a conquista mais elevada. Estou cheio de ser autoconsciente!”.

[…]

                Será que sou eu mesma quando estou sozinha?

                Sei que não sou eu mesma quando estou com os outros, nem com o Philip — disso decorre a constante sensação de irritação, com ele, comigo mesma. Mas e sozinha, eu sou eu mesma? Também parece improvável.

[…]

                Para interpretação:

                Interpretação é transporte cultural. Quando não se pode mais acreditar nas histórias das Escrituras, nós as interpretamos.

                O mito é “quebrado” no prisma da interpretação.

[…]

                “Ele tinha dois sistemas de interpretação para explicar seu fracasso.” (Sartre)

p. 140-143

19/1/57

                nova conversa na noite passada no jantar com Alan Fink + Barbara Swan: Convenções versus espontaneidade. Essa é uma escolha dialética, depende da avaliação que a gente faz da nossa própria época. Se a gente acha que o nosso tempo está sobrecarregado de formalidades intrínsecas e vazias, a gente opta pela espontaneidade, até pelo comportamento indecoroso… Boa parte da moralidade é a tarefa de compensar a própria época em que se vive. A gente adota virtudes fora de moda, numa época indecorosa. Numa época esvaziada pelo decoro, devemos nos educar na espontaneidade.

p. 145-146

20/1/57

[…]

                …

                Emerson disse: “Um homem é aquilo que ele pensa o dia todo”. Emerson, o existencialista.

                …

p. 147

14/2/57

                No casamento, sofri certa perda de personalidade — no início, a perda era agradável, fácil; agora ela machuca e atiça minha propensão geral ao descontentamento com uma nova agressividade.

p. 147

18/2/57

                “Meu filho de quatro anos, lendo Homero pela primeira vez”

               

Rosto rechonchudo e fofo

Relaxado de admiração

Eu declamo.

                Os nomes estranhos foram aprendidos,

                E também os muitos resultados da volúpia de Zeus.

                Horrores e mais horrores.

                Pobre Pátroclo.

                A gente se vê depois, Ájax, o Grande!

                Meu filho se emocionou até as lágrimas ao saber

                   que esse Ájax, embora forte,

                   era um tolo.

                Ficou impassível diante de Heitor,

                   morto, aviltado, seus ossos

                   empalidecidos pelo fogo.

                Pobre Heitor. Lamentamos por Troia. Pobre Troia.

                Contudo, meu filho preferia

                 ser um grego. Eles venceram.

                Essa criança aceita o mistério

                   da violência, como os gregos.

                Não se sente repelido pela brevidade

                   do luto deles, nem pela

                    demora das suas refeições deliciosas.

                Ele moraliza, mas brevemente:

                Helena não valia tudo aquilo.

                Entende por que Aquiles chora,

                    pela sua armadura de ouro, seu

    capacete, seu escudo, suas perneiras,

    capturadas por Heitor, assim como

    pelo querido Pátroclo, morto…

p. 148-149