Publicado em Antropologia, Ciência Política, Estudos de Gênero, Psicanálise, Psicologia, Relações Internacionais

A dominação masculina [Capítulo 1 – Parte I]

BOURDIEU, Pierre. Uma imagem ampliada. In: __ A dominação masculina. Tradução de Maria Helena Kühner. 2. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2002.

UMA IMAGEM AMPLIADA

  • arriscamo-nos (…) a recorrer, para pensar a dominação masculina, a modos de pensamento que são eles próprios produto da dominação;
  • necessidade de uma estratégia prática para efetivar uma objetivação do sujeito da objetivação científica;
  • estratégia: transformar um exercício de reflexão transcendental visando a explorar as “categorias do entendimento” com as quais construímos o mundo (…) ao tratar a análise etnográfica das estruturas objetivas e das formas cognitivas de uma sociedade histórica específica (…), instrumento de (…) socioanálise do inconsciente androcêntrico capaz de operar a objetivação das categorias deste inconsciente.

Sem dúvida, eu não teria sido capaz de recuperar em La Promenade au phare (Passeio ao farol), de Virginia Woolf, a análise do olhar masculino que a obra encerra (e que apresento adiante) se não a tivesse relido com o olhar informado pela visão cabila (V. Woolf, La Promenade au phare, To the Lighthouse, trad. de M. lanoire, Paris, Stock, 1929, p. 24).

  • camponeses de Cabília: salvaguardaram acima das conquistas e conversões (…) estruturas (…) de condutas e de discursos parcialmente arrancados ao tempo pela esterotipagem ritual, representam uma forma paradigmática da visão “falo-narcísica” e da cosmologia androcêntrica, comuns a todas as sociedades mediterrâneas (…), sobrevivem até hoje, mas em estado parcial e (…) fragmentadas, em nossas estruturas cognitivas e (…) sociais.
  • a escolha da Cabília em particular: (…) se sabe que a tradição cultural que aí se manteve [é] paradigmática da tradição mediterrânea (…) podemos convencer-nos disto consultando as pesquisas etnográficas consagradas em relação ao problema da honra e da vergonha (…) na Grécia, Itália, Espanha, Egito, Turquia, Cabília etc.; (…) toda a área cultural europeia partilha, indiscutivelmente, dessa tradição.
  • (…) nada pode substituir o estudo direto de um sistema que ainda está em funcionamento e que permaneceu relativamente à margem de reinterpretações semi-eruditas (…);
  • a análise de um corpus como o da Grécia (…) corre o risco de sincronizar artificialmente estágios sucessivos e diferentes do sistema e (…) conferir um mesmo estatuto epistemológico a textos que submeteram o antigo fundo mítico-cultural a diversas reelaborações (…).

“O intérprete que pretenda agir como etnógrafo arrisca-se, assim, a tratar como informantes “ingênuos” autores que já estavam agindo também como (quase) etnógrafos e cujas evocações mitológicas, mesmo as aparentemente mais arcaicas, como as de Homero e Hesíodo, são já mitos elaborados, que implicam omissões, deformações e reinterpretações (e o que dizer quando, como o fez Michel Foucault no segundo volume de sua História da Sexualidade, alguém decide começar por Platão a indagação sobre a sexualidade e o sujeito, ignorando autores como Homero, Hesíodo, Ésquilo, Sófocles, Heródoto ou Aristófanes, sem falar nos filósofos pré-socráticos, nos quais o antigo alicerce mediterrâneo aflora mais claramente?).”

A CONSTRUÇÃO SOCIAL DOS CORPOS

  • em um universo (…) como na sociedade cabila a ordem da sociedade não se constitui como tal, (…) as diferenças sexuais permanecem imersas no conjunto das oposições que organizam todo o cosmos, os atributos e ato sexuais se vêem sobrecarregados de determinações antropológicas e cosmológicas; ficamos condenados a equivocar-se sobre sua significação profunda se os pensarmos segundo a categoria do sexual em si;
  • a constituição da sociedade enquanto tal (que encontra sua realização no erotismo) nos fez perder o senso da cosmologia sexualizada, que se enraíza em uma topologia sexual do corpo socializado, de seus movimentos e seus deslocamentos, imediatamente revestidos de significação social (…).
  • arbitrária em estado isolado, a divisão das coisas e das atividades (sexuais e outras) segundo a oposição entre o masculino e o feminino recebe sua necessidade objetiva e subjetiva de sua inserção em um sistema de oposições homólogas, alto/baixo, em cima/embaixo, na frente/atrás (…), que, para alguns, correspondem a movimentos do corpo ((…) subir/descer, fora/dentro, sair/entrar);
  • tais oposições são semelhantes na diferença: concordes para se sustentarem mutuamente, no jogo inesgotável de transferências práticas e metáforas; suficientemente divergentes para conferir, a cada uma, uma espécie de espessura semântica, nascida da sobredeterminação pelas harmonias, conotações e correspondências;

“Esses esquemas de pensamento, de aplicação universal, registram como que diferenças de natureza, inscritas na objetividade, das variações e dos traços distintivos (por exemplo em matéria corporal) que eles contribuem para fazer existir, ao mesmo tempo que as “naturalizam”, inscrevendo-as em um sistema de diferenças, todas igualmente naturais em aparência;”

  • as previsões que engendram são confirmadas por todos os ciclos biológicos e cósmicos;
  • não vemos como poderia emergir na consciência a relação social de dominação que está em sua base e que, por uma inversão completa de causas e efeitos, surge como uma aplicação entre outras, de um sistema de relações de sentido totalmente independente das relações de força;
  • papel equivalente ao que incumbe ao campo jurídico: na medida em que os princípios de visão e divisão que ele propõe estão objetivamente ajustados às divisões pré-existentes, ele consagra a ordem estabelecida, trazendo-a à existência conhecida e reconhecida, oficial;
  • a divisão entre os sexos parece estar na “ordem das coisas”, a ponto de ser inevitável. Está presente também em estado objetivado das coisas (na casa, por exemplo, cujas partes são todas “sexuadas”), em todo o mundo social e, em estado incorporado, nos corpos e nos habitus dos agentes, sistemas de esquemas de percepção, de pensamento e de ação;
  • a concordância entre as estruturas objetivas e as estruturas cognitivas, entre a conformação do ser e as formas de conhecer, entre o curso do mundo e as expectativas a esse respeito, é o que torna possível o que Husserl chama de “atitude natural” ou “experiência dóxica”;
  • é por não perceberem os mecanismos profundos, como os que fundamentam a concordância entre as estruturas cognitivas e as estruturas sociais, e, por tal, a experiência dóxica do mundo social, que pensadores podem imputar todos os efeitos simbólicos de legitimação (ou de sociodiceia) a fatores que decorrem da representação mais ou menos consciente e intencional (“ideologia”, “discurso” etc.);
  • a diferença biológica entre os sexos (…), especificamente, a diferença anatômica entre os órgãos sexuais, pode ser vista como justificativa natural da diferença socialmente construída entre os gêneros e, principalmente, da divisão social do trabalho;
  • dado que é o princípio de visão social que constrói a diferença anatômica e que é esta diferença socialmente construída que se torna o fundamento e a caução aparentemente natural da visão social que a alicerça, caímos em uma relação circular que encerra o pensamento na evidência de relações de dominação inscritas ao mesmo tempo na objetividade (divisões objetivas) e na subjetividade (esquemas cognitivos que organizados segundo essas divisões organizam a percepção das divisões objetivas);
  • a virilidade, em seu aspecto ético, enquanto quididade do vir, virtus, questão de honra, princípio da conservação e do aumento da honra, mantém-se indissociável da virilidade física, através das provas de potência sexual que são esperadas de um homem;
  • o falo, sempre presente metaforicamente, mas raramente nomeado e nomeável, concentra todas as fantasias coletivas de potência fecundante;
  • o esquema ambíguo do enchimento é o princípio gerador dos ritos de fecundidade que, destinados a fazer crescer mimeticamente (o falo e o ventre da mulher), pelo recurso a alimentos que inflam, se impõem nos momentos em que a ação fecundadora da potência masculina deve se exercer, como nos casamentos e por ocasião do início das lavouras;
  • a ambiguidade estrutural, manifesta na existência de um laço morfológico (por exemplo entre abbuch, o pênis, e tabbucht, o seio) entre certo número de símbolos ligados à fecundidade, explica-se por representarem diferentes manifestações da plenitude vital, do vivente que dá vida (através do leite e do esperma);
  • a mesma relação morfológica se estabelece entre thamellalts, o óvulo, e imellalen, os testículos; e as mesmas associações são encontradas nas palavras que designam o esperma, zzel e principalmente lâamara, que, por sua raiz — âmmar significa encher, prosperar etc. — evoca a plenitude, o esquema de preenchimento (cheio/vazio, fecundo/estéril) combinando-se regularmente com os esquemas dos ritos de fertilidade;
  • quando se associa a ereção fálica à dinâmica do enchimento, a construção social dos órgãos sexuais registra e ratifica simbolicamente certas propriedades naturais indiscutíveis: contribui com outros mecanismos, dos quais o mais importante é, sem dúvida, a inserção de cada relação (cheio/vazio) em um sistema de relações homólogas e interconectadas para converter a arbitrariedade do nomos social em necessidade da natureza (physis);
  •  quando os dominados aplicam àquilo que os domina esquemas que são produto da dominação, quando seus pensamentos e percepções estão estruturados em conformidade com as estruturas mesmas da relação da dominação que lhes é imposta, seus atos de conhecimento são inevitavelmente atos de reconhecimento, de submissão;
  • porém há sempre lugar para uma luta cognitiva a propósito do sentido das coisas do mundo e particularmente das realidades sexuais;
  • a indeterminação parcial de certos objetos autoriza, de fato, interpretações antagônicas, oferecendo aos dominados uma possibilidade de resistência frente às imposições simbólicas;
  • as mulheres podem se alicerçar nos esquemas de percepção dominantes (alto/baixo, duro/mole, reto/curvo etc.) que as levam a uma representação bastante negativa do próprio sexo, para pensar os atributos sexuais masculinos por analogia com as coisas que pendem, moles, sem vigor (laâlaleq, asaâlaq ou acherbub), ou até tirar partido do estado minimizado do sexo masculino para afirmar a superioridade do sexo feminino;

“Você, sua equipagem (laâlaleq) despenca, diz a mulher ao homem, ao passo que eu, eu sou uma pedra bem soldada.” —ditado

  • a definição social dos órgãos sexuais está longe de ser um simples registro de propriedades naturais, diretamente expostas à percepção, é produto de uma construção efetuada à custa de uma série de escolhas orientadas, ou da acentuação de certas diferenças ou do obscurecimento de certas semelhanças;

“A representação da vagina como um falo invertido, que Marie Christine Pouchelle descobriu nos escritos de um cirurgião da Idade Média, obedece as mesmas oposições fundamentais entre o positivo e o negativo, o direito eo avesso, que se impõem a partir do momento em que o princípio masculino é tomado como medida de todas as coisas.”

  • sabendo que o homem e a mulher são vistos como duas variantes, superior e inferior, da mesma fisiologia, entende-se por que até o Renascimento não houvesse terminologia anatômica para descrever em detalhes o sexo da mulher, representado como composto dos mesmos órgãos que os do homem, apenas dispostos de maneira diversa;
  • seguindo a história da “descoberta” do clitóris, como a relata Thomas Laqueur, prolongando até a teoria freudiana da ligação da sexualidade feminina do clitóris para a vagina, demonstra-se que, longe de desempenhar o papel fundante que lhes é atribuído, as diferenças visíveis entre os órgãos sexuais masculino e feminino são uma construção social que encontra seu princípio nos princípios da razão androcêntrica fundamentada na divisão dos estatutos sociais atribuídos ao homem e à mulher;
  • esquemas que estruturam a percepção dos órgãos sexuais e da atividade sexual se aplicam também ao próprio corpo, masculino e feminino, que tem seu alto e seu baixo — a fronteira é delimitada pela cintura, signo de clausura, e limite simbólico entre o puro e o impuro;
  • a cintura é um dos signos de fechamento do corpo feminino e ainda hoje se impõe às mulheres das sociedades euroamericanas; simboliza a barreira sagrada que protege a vagina, socialmente constituída em objeto sagrado, submetido, como propôs Durkheim, a regras estritas de esquivança ou de acesso, que determinam rigorosamente as condições do contato consagrado, os agentes, momentos ou atos legítimos, ao contrário, os profanadores;
  • tais regras são percebidas até hoje no caso de um médico do sexo masculino ter de realizar o exame vaginal, como se tratasse de neutralizar simbólica e todas as conotações potencialmente sexuais do exame, onde o médico se submete a um verdadeiro ritual visando a manter a barreira, simbolizada pela cintura, entre a vagina e a pessoa pública, jamais vistas simultaneamente;

“É evidentemente porque a vagina continua sendo constituída como fetiche e tratada como sagrada, segredo e tabu, que o comércio do sexo continua a ser estigmatizado, tanto na consciência comum quanto no Direito, que literalmente exclui que as mulheres possam escolher dedicar-se à prostituição como a um trabalho. Ao fazer intervir o dinheiro, certo erotismo masculino associa a busca do gozo ao exercício brutal do poder sobre os corpos reduzidos ao estado de objeto e ao sacrilégio que consiste em transgredir a lei segundo a qual o corpo (como o sangue) não pode ser senão doado, em um ato de oferta inteiramente gratuito, que supõe a suspensão da violência.”

  • o corpo tem sua frente, lugar da diferença sexual, e suas costas, sexualmente indiferenciadas e potencialmente femininas, algo passivo, submisso, como nos fazem lembrar os insultos mediterrâneos contra a homossexualidade (“bras d’honneur”), tem suas partes públicas, face, fronte, bigode, boca, olhos, órgãos nobres da apresentação, nos quais se condensa a identidade social, o ponto de honra, o nif, que obriga a enfrentar ou a olhar os outros de frente, e suas partes privadas, escondidas ou vergonhosas, que a honra manda dissimular;
  • através da divisão sexual dos usos legítimos do corpo que se estabelece o vínculo (enunciado pela psicanálise) entre o falo e o lógos: os usos público e ativos, da parte alta, masculina do corpo — fazer frente a, enfrentar, frente a frente (qabel), olhar no rosto, nos olhos, tomar a palavra publicamente — são monopólio dos homens; a mulher, na Cabília, mantém-se afastado dos lugares públicos e deve renunciar a fazer uso público do próprio rosto e de sua palava (…);
  • mesmo que possa ser visto como “matriz original a partir da qual são engendradas todas as formas de união dos dois princípios opostos”, o próprio ato sexual é pensado em função do princípio do primado da masculinidade;
  • a posição considera normal é, logicamente, aquela em que o homem “fica por cima”; a vagina deve seu caráter funesto, maléfico, ao fato de que não só é vista como vazia, mas como o inverso, o negativo do falo, a posição em que a mulher se põe por cima do homem é condenada em inúmeras civilizações;
  • a tradição cabila apela para um mito de origem que legitima as posições atribuídas aos dois sexos na divisão do trabalho sexual e, em decorrência da divisão do trabalho de produção e reprodução, em toda a ordem social, e ultrapassando-a, na ordem cósmica. (ver página 14)
  • em cima ou embaixo, ativo ou passivo, essas alternativas paralelas descrevem o ato sexual como uma relação de dominação; é dominar no sentido de submeter a seu poder, também enganar, abusar ou “possuir”; as manifestações de virilidade (legítimas ou ilegítimas) se situam na lógica da proeza, da exploração, do que traz honra;
  • sociologia política do ato sexual: sempre em uma relação de dominação e as práticas e representações dos dois sexos não são simétricas; há pontos de vista muito diferentes da relação amorosa, no caso dos rapazes há a lógica da conquista mas também porque o ato em si é concebido pelos homens como uma dominação, uma forma de apropriação, de “posse”; no caso das mulheres, geralmente há uma tendência a uma experiência íntima e fortemente carregada de intimidade, que não inclui necessariamente a penetração, mas pode incluir um amplo leque de atividades; os rapazes tendem a compartilhar a sexualidade, concebida como um ato agressivo e sobretudo físico, de conquista orientada para a penetração e o orgasmo;
  • práticas aparentemente simétricas (felação, cunnilingus) revestem-se de signifcações muito diversas para os homens, que tendem a ver com atos de domínio, pela submissão ou pelo gozo obtido; “o gozo masculino é, por um lado, o gozo do gozo feminino, do poder de fazer gozar”;
  • a simulação do orgasmo pelas mulheres é uma comprovação exemplar do poder masculino de fazer com que a interação entre os sexos se dê de acordo com a visão dos homens, que esperam do orgasmo uma prova de sua virilidade e do gozo garantido por essa forma suprema de submissão;
  • a relação sexual como uma relação social de dominação é porque é construída pelo princípio de divisão fundamental entre o masculino, ativo, e o feminino, passivo, e porque este princípio cria, organiza, expressa e dirige o desejo — o desejo masculino como desejo de posse, como dominação erotizada, e o desejo feminino como desejo da dominação masculina, como subordinação erotizada, ou mesmo, em última instância, como reconhecimento erotizado da dominação;
  • no caso das relações homossexuais, a reciprocidade é possível, os laços entre a sexualidade e o poder se desvelam claramente, e as posições e os papéis assumidos nas relações sexuais, ativos ou passivos principalmente, mostram-se indissociáveis das relações entre as condições sociais que determinam sua possibilidade e sua significação;
  • a penetração, sobretudo quando se exerce sobre um homem, é uma das afirmações da libido dominandi, que jamais está de todo ausente na libido masculina; em inúmeras sociedades, a posse homossexual é vista como uma manifestação de “potência”, um ato de dominação (exercido como tal, em certos casos, para afirmar a superioridade “feminizando” o outro) e que é a este título que, entre os gregos, leva aquele que a sofre à desonra e à perda do estatuto de homem íntegro e de cidadão; para um cidadão romano, a homossexualidade “passiva” com um escravo é considerada algo “monstruoso”;
  • segundo John Boswell, “penetração e poder estavam entre as inúmeras prerrogativas da elite dirigente masculina; ceder à penetração era uma ab-rogação simbólica do poder e da autoridade”; sob esse ponto de vista da sexualidade e poder, a pior humilhação para um homem era se transformado em mulher, no sentido de feminilizá-los;

Artwork: Dead Kabyle (1867) by Mariano Fortuny

Publicado em Geração de 1945, Literatura, Modernismo

o grande passeio

[…]

                — Que cama dura, disse bem alto no meio da noite.

        É que se sensibilizara toda. Partes do corpo de que não tinha consciência há longo tempo reclamavam agora a sua atenção. E de súbito — mas que fome furiosa! Alucinada, levantou-se, desamarrou a pequena trouxa, tirou um pedaço de pão com manteiga ressecada que guardara secretamente há dois dias. Comeu o pão como um rato, arranhando até o sangue os lugares da boca onde só havia gengiva. E com a comida, cada vez mais se reanimava. Conseguiu, embora fugazmente, ter a visão do marido se despedindo para ir ao trabalho. Só depois que a lembrança se desvaneceu, viu que esquecera de observar se ele estava ou não em mangas de camisa. Deitou-se de novo, coçando-se toda ardente. Passou o resto da noite nesse jogo de ver por um instante e depois não conseguir ver mais. De madrugada adormeceu.

                E pela primeira vez foi preciso acordá-la. Ainda no escuro, a moça veio chamá-la, de lenço amarrado na cabeça e já de maleta na mão. Inesperadamente Mocinha pediu uns instantes para pentear os cabelos. As mãos trêmulas seguravam o pente quebrado. Ela se penteava, ela se penteava. Nunca fora mulher de ir passear sem antes pentear bem os cabelos.

                Quando enfim se aproximou do automóvel, o rapaz e as moças se surpreenderam com seu ar alegre e com os passos rápidos. “Tem mais saúde do que eu!”, brincou o rapaz. À moça da casa ocorreu: “E eu que até tinha pena dela.”

                Mocinha sentou-se junto da janela do carro, um pouco apertada pelas duas irmãs acomodadas no mesmo banco. Nada dizia, sorria. Mas quando o automóvel deu a primeira arrancada, jogando-a para trás, sentiu dor no peito. Não era só por alegria. Era um dilaceramento. (…)

[…]

LISPECTOR, Clarice. O grande passeio. In:_______ O Primeiro Beijo & Outros Contos. Ática: São Paulo, 1992.

Publicado em Antropologia, Ciência Política, Estudos Culturais, Estudos de Gênero, Estudos sobre Religião, Estudos Sociológicos, Filosofia, Relações Internacionais, Sociologia

Se Deus fosse um ativista dos direitos humanos [Capítulo 5 – Parte final]

SANTOS, Boaventura de Sousa. Para uma concepção pós-secularista dos direitos humanos: direitos humanos contra-hegemônicos e teologias progressistas. In: _______ Se Deus fosse um ativista dos direitos humanos [livro eletrônico]. 1. ed. São Paulo: Cortez, 2014, p. 55-62.

Sofrimento na carne

A trivialização do sofrimento humano nos nossos dias e a consequente indiferença com que encaramos o sofrimento dos outros – mesmo se a sua presença nos nossos sentidos é avassaladora – têm muitas causas. […] A tradição moderna ocidental, ao separar a alma do corpo, degradou este último ao concebê-lo como constituído por carne humana. (…) a conceitualização (e dignificação) do sofrimento humano passou a ser feita através de categorias abstratas, sejam elas filosóficas ou éticas, que desvalorizam a dimensão visceral do sofrimento, a sua marca visível de experiência vivida na carne.

Este processo de descorporalização por via de classificação e organização encontra-se (…) mesmo nos autores que mais afirmaram a importância do lugar do corpo, de Nietzsche a Foucault (…). Pela mesma razão, (…) nossos sentidos foram dessensibilizados para a experiência direta do sofrimento dos outros. (…) a carne do prazer como a do sofrimento, foi (…) privada da sua materialidade corpórea e das reações instintivas e afetivas que esta provoca e cuja intensidade consiste em estar (…) além das palavras, (…) além de uma argumentação racional ou de uma avaliação reflexiva.

As religiões e as teologias não foram imunes a este instrumento biopolítico. […] (…) levaram ao extremo a repulsa pela carne como lugar do prazer, sempre associada ao sexo e às mulheres. (…) incitaram os crentes a assistir os corpos dos seus próximos sem outra mediação para além da compaixão. Deste modo, permitiram um acesso denso, direto e intenso à carne em sofrimento (…). É, para além disso, um acesso prático que (…) não procura um equilíbrio entre a compreensão e a intervenção. Concede prioridade absoluta à intervenção (…).

Estas são as razões pelas quais as religiões permitiram (…) uma ética de cuidado e de envolvimento baseada nas reações viscerais da intersubjetividade entre o eu e o próximo, ligações (…) pré-representacionais e (…) pré-éticas, constituídas por sensibilidades e disponibilidades (…). O lado negativo deste imediatismo do sofrimento é a sua despolitização. Foi (…) isto que aconteceu no caso (…) de sofrimento na carne numa das religiões (…), o Cristianismo: a crucifixão de (…) Cristo. A natureza altamente política deste sofrimento foi sequestrada pelo dogma da ressurreição, (…) por uma fuga do mundo, (…) que, ao contrário da viagem de Allah ao céu, não teve regresso. A figura histórica do (…) Cristo dos evangelhos cristãos é obviamente diferente do Jesus Cristo do Corão (…) (Khalidi (Org.), 2001). A diferença tem muito a ver com o sofrimento carnal. (…) para os cristãos o que importa é a própria carne de Jesus e o seu sofrimento, (…) ele é a “Palavra incarnada”, para a fé islâmica Jesus é um exemplo de piedade devido à sua proximidade com o sofrimento carnal dos outros (…).

O potencial contra-hegemônico das teologias progressistas reside na articulação que buscam entre a ligação visceral de um gesto assistencial (…) e a luta política contra as causas do sofrimento como (…) tarefa inacabada da divindade. Na sua crítica do secularismo como uma forma velada de pluralismo restritivo (por excluir a religião enquanto modo legítimo de ser), William Connolly fala de “registros viscerais da subjetividade e intersubjetividade” como expressão de experiências muito intensas (…) e aponta (…) os registros de subjetividade religiosa (1999, p. 27).

Uma vontade radical insurgente e um horizonte pós-capitalista

A religião institucionalizada pagou um preço elevado para encontrar um modus vivendi com a modernidade ocidental e com o Iluminismo: a privatização. […] (…) a religião foi banida do sistema político (o que (…) não significou a incapacitação da igreja para interferir na política (…)), mas, por outro lado, foi deixada entregue a si mesma (…). […] uma ligação liberta das mediações políticas, culturais, discursivas e institucionais que dominaram, nos últimos dois séculos, outras mobilizações sociais (seculares) da esfera pública, (…) o movimento operário e o movimento feminista.

Isto explica (…) a razão pela qual as mobilizações religiosas que no nosso tempo reclamam a esfera pública são sustentadas por (…) radicalismo que não encontramos na maioria dos movimentos sociais. Esta energia radical é usada pelas teologias tradicionalistas para recuar no tempo, até (…) em que a igreja controlava as hierarquias sociais e políticas; (…) também é usada pelas teologias pluralistas progressistas para lutar contra todas as hierarquias, opressões e discriminações (…).

A ligação entre a teologia e a crítica radical do capitalismo constituem o núcleo da teologia da libertação. […] Afirmando a necessidade de uma perspectiva teológica do Terceiro Mundo informada pelo Marxismo e pela teoria da dependência, Ellacuría afirma: “é impossível ver a concretização da justiça sem uma revolução básica na ordem social e econômica, ou uma verdadeira realização do homem sem a criação de uma estrutura econômica adequada” (1977, p. 127).

Para as teologias políticas progressistas, a libertação, mais que a resistência ou a salvação, constitui a base de uma vontade radical de lutar por uma sociedade mais justa.

O impulso para a interculturalidade nas lutas pela dignidade humana

(…) as concepções e práticas dominantes dos direitos humanos são monoculturais, e isto constitui um dos maiores obstáculos à (…) uma luta de baixo para cima, real e universal, pelos direitos humanos. A religião (…) apenas existe como uma (…) variedade de religiões, (…) como diversidade entre as principais religiões tanto como (…) dentro de cada religião. No mundo ocidental esta diversidade é uma das consequências inesperadas da privatização da religião. […]

O (…) princípio, o da comunidade, foi (…) negligenciado, (…) concebido como um adjuvante do Estado ou do mercado. Esta negligência permitiu ao princípio da comunidade evoluir livremente fora (…) da burocracia e da estandardização mercantil e (…) de uma forma muito menos monocultural e monolítica. Afastada do Estado e do mercado, a religião refugiou-se na comunidade, um domínio de regulação social menos estandardizado e mais aberto à diversidade.

Apesar dos reveses e das falhas (seletividade arbitrária, tentação de afirmar uma única verdade revelada, ausência de consequências práticas), os diálogos ecumênicos e interreligiosos são o testemunho de um potencial para a interculturalidade no domínio da religião. Se (…) fossem mais coerentes e ativamente praticados, poderiam funcionar simultaneamente como uma poderosa memória e um campo de experimentação para diálogos mais amplos, envolvendo concepções religiosas e não religiosas de dignidade humana.

(…) o pensamento religioso (…) oscilou entre o dogmatismo estrito e a ortodoxia, por um lado, e o questionamento (…) dos textos, práticas, regras e instituições, pelo outro. No tocante ao último, roçaram muitas vezes a heresia e sofreram consequências (…), o mais notável é que (…) foram além dos materiais religiosos familiares, beberam em culturas estranhas outros tipos de conhecimento e filosofias, imergiram (…) nos detalhes das experiências do dia a dia, interagindo com mercadores, artesãos, prostitutas, e retirando consequências teóricas imediatas destas experiências e discursos. (…) quando decidiram ir às raízes das verdades estabelecidas por conta própria, os pensadores religiosos tenderam a ser mais bricoleurs do que quaisquer outros (…), misturando (…) fragmentos de diferentes proveniências com os quais criaram novos sentidos e interpretações.

Raimundo Panikkar, teólogo católico, (…) pode ser (…) considerado (…) exemplo de teólogo e pensador “numa posição limiar”, visto ter desenvolvido um pensamento cristão de expressão hindu. (…) o Cristianismo, para ser realmente “cristão”, “para pertencer ao mundo inteiro”, deveria despir-se dos seus trajes ocidentais coloniais, que fizeram crer que o Cristianismo só seria viável por meio da cultura ocidental. (…) “Ser-nos-á possível admitir que existam limites à compreensão de Deus que recebemos das tradições semítica e greco-romana? Podemos admitir que existam também limites ao nosso entendimento de religião (…) e oração (…)?” (Panikkar, 2011, p. 117-8).

As narrativas de sofrimento e libertação

A linguagem privilegiada das permutas interculturais é a narrativa. Contar histórias gera um imediato e concreto sentido de copresença (…) do qual as experiências sociais que ocorrem em diferentes tempos, espaços e culturas se tornam mais facilmente acessíveis e inteligíveis (…). (…) a memoria passionis (uma categoria judaico-cristã) do mundo reside na lembrança e nas narrativas que recontam lutas exemplares de vida e de morte, de sofrimento e de libertação, de perdas e ganhos, que reforçam os sentimentos de alegria e medo, (…) dos quais emerge de baixo para cima uma (…) sabedoria partilhada do mundo.

Ao contrário da reconstrução histórica, a memoria passionis colapsa o passado, presente e futuro, vê forças nas fraquezas e possibilidades alternativas nas derrotas. A sabedoria que dela provém é tão contemplativa quanto ativa; é uma reserva mundial de lembrança e visão que converte o passado em energia que reanima o presente e potencia o ainda não ou o talvez do futuro. […] Os contadores de histórias são sempre coautores das (…) que ouviram dos seus predecessores.

Vejo aqui uma possibilidade para outro encontro frutuoso entre os direitos humanos e as teologias políticas progressistas. Narrar e contar histórias está na base da experiência religiosa, seja (…) de textos sagrados ou a de tradições orais sagradas. (…) mesmo a filosofia, a dogmática ou a exegese religiosas apenas se sustentam na medida em que assentam em acontecimentos, ditos e vidas exemplares concretas de pessoas e povos – sejam eles extraordinários ou ordinários, mas nunca anônimos. […] (…) Elie Wiesel: “Teologia não é mais que contar histórias” (1999, p. 94). Todos os profetas se exprimiam por parábolas para que os futuros crentes as pudessem reinterpretar à luz das suas próprias experiências e da sua liberdade intelectual.

A natureza convencional do discurso dos direitos humanos reside não só numa (…) promiscuidade (…) entre a proclamação abstrata dos direitos humanos e a resignação perante as violações sistemáticas (…), como (…) na trivialização do sofrimento humano contido nessas violações. Esta (…) decorre (…) do discurso normalizado (em sentido foucaultiano) das organizações de defesa dos direitos humanos, com (…) forte componente estatístico que reduz ao anonimato dos números o horror (…). Neutraliza-se (…) a presença desestabilizadora do sofrimento (…) na qual seria possível fundar a razão militante e a vontade radical da luta contra um estado de coisas que produz (…) o sofrimento injusto. Pela sua insistência na narrativa concreta do sofrimento das vítimas e da sua luta contra os opressores, as teologias políticas progressistas podem contribuir para tornar o sofrimento injusto numa presença intolerável que desumaniza tanto as vítimas quanto os opressores (…).

A presença do mundo antes ou para além da interpretação

A concepção intercultural dos direitos humanos (…) (Santos, 2006b, p. 433-70; 2014) visa fortalecer (…) a legitimidade das políticas de direitos humanos (…) como radicalizar as lutas que podem ser travadas em seu nome. A noção de interculturalidade destina-se a tornar inteligível a ideia de que o propósito dos intercâmbios interculturais é a interpretação, produção e partilha de significados.

É (…) necessário ir (…) além (…) e demonstrar que, se uma ecologia de diferentes concepções de dignidade humana vai fundamentar uma luta mais abrangente e radical (…), isso pressupõe a criação de momentos (…) intensos de copresença (…) em que a presença precede o significado. A presença é a coisa ou materialidade sobre a qual se constroem os significados. […] É uma forma de ser que, como Gumbrecht afirma (…), “se refere às coisas do mundo antes destas se tornarem parte de uma cultura” (2004, p. 70). É por meio do seu significado que as coisas se tornam culturalmente específicas e muitas vezes também incomensuráveis ou ininteligíveis para outras culturas. (…) estas “coisas” não são exteriores à cultura, são parte dela, mas, paradoxalmente, de uma forma não cultural. Possuem a capacidade pré-representacional de serem exteriores ao pensamento e à consciência, ao mesmo tempo que os fundamentam (…). São materiais e operam no nível do instinto, da emoção e do afeto. […] (…) Gumbrecht é (…) eloquente ao contrapor culturas que são dominadas pela presença (culturas-presença) e culturas que são dominadas pelo significado (culturas-significado) (2004, p. 79). (…) em todas as culturas existe presença e significado, mas a ênfase em uma ou outra varia (…). A cultura moderna ocidental é uma cultura de significado (…). (…) algumas culturas não ocidentais são mais bem compreendidas como culturas de presença.

(…) nas permutas interculturais, o papel da presença consiste em propiciar a geração de sentidos de comunidade, indiferentes à diversidade cultural e imediatamente evidentes. Uma pilha de corpos mutilados num campo de morte, o corpo esquelético de uma criança prestes a morrer de fome, a dor de uma mulher sobre o cadáver do seu jovem filho (…), todas estas presenças são dotadas de um poder que parece relativamente autônomo em relação aos significados que lhe podem ser atribuídos.

(…) também aqui vejo uma (…) contribuição da experiência religiosa progressista e da reflexividade teológica para fortalecer, expandir e radicalizar as lutas pelos direitos humanos. A presentificação do passado ou do outro por meio de ritos, rituais e sacramentos (…) desempenha um papel central na experiência religiosa (Asad, 1993). […] se gera um sentido intensificado de partilha e presença que, se for colocado ao serviço das lutas de resistência e libertação da opressão, pode (…) fortalecer e radicalizar a (…) transformação social. Não é por um capricho proselitista ou por excesso de zelo que todas as reuniões, encontros, protestos e ocupações de terras organizadas por um dos movimentos sociais mais importantes do nosso tempo – o Movimento dos Trabalhadores sem Terra (MST) do Brasil – começam com aquilo a que chamam a “mística”, um momento de silêncio, oração e canto, com os militantes de mãos dadas, em círculo, corpos físicos individuais transformando-se num corpo físico coletivo.

Canções e cânticos têm uma forte presença histórica nas lutas de resistência e libertação como forma de unir forças, vencer o desespero e ganhar coragem para lutar contra poderosos opressores. […] as religiões dos oprimidos e as teologias da libertação a que deram azo em tempos recentes possuem uma preciosa experiência através da qual os direitos humanos podem ganhar novas vozes, nova vitalidade e novas forças. Já mencionei o papel dos blues e dos espirituais na teologia negra. Outro exemplo (…) na maneira como a teologia caribenha da descolonização usa as canções redentoras de Bob Marley (Erskine, 1998) […].

A espiritualidade das/nas lutas materiais pela transformação social

(…) a distinção material/espiritual é uma distinção de base ocidental. Nas suas análises da epistemologia e da religião na África, Ellis e Haar argumentam (…) que os modelos existentes de relacionamento entre a religião e a política são baseados na presunção de uma distinção estrutural entre o mundo visível ou material e o mundo invisível, considerando que esta distinção rígida não reflete as ideias sobre a natureza da realidade prevalecentes na África. (…) dentre as características (…) marcantes das epistemologias africanas encontra-se a convicção de que os aspetos materiais e imateriais da vida não podem ser separados, embora possam distinguir-se entre si, tal (…) duas faces de uma moeda (…).

Esta nota (…) pode ajudar-nos a ter um entendimento mais profundo das lutas contra-hegemônicas pelos direitos humanos. As lutas contra-hegemônicas pelos direitos humanos visam a mudança das estruturas sociais que são responsáveis pela produção sistemática de sofrimento humano injusto. São (…) materiais no sentido em que o seu ímpeto político deve dirigir-se à economia política subjacente à produção e reprodução de relações sociais desiguais (…).

(…) as lutas contra-hegemônicas pelos direitos humanos são muitas vezes de alto risco, incluindo o risco de vida, lutas contra inimigos muito poderosos e desprovidos de escrúpulos. Têm, portanto, de ser baseadas numa vontade política fortemente motivada, (…) vontade que tem de ser tanto coletiva como individual, (…) não existe ativismo coletivo sem ativistas individuais.

(…) esta vontade não poderá ser construída sem uma visão crítica (…) radical e desestabilizadora da injustiça atual e sem visões credíveis de uma sociedade alternativa melhor. Nos últimos dois séculos, dominaram duas visões muito fortes de uma tal sociedade alternativa: o socialismo e a libertação do colonialismo. Estas (…) estavam (…) relacionadas com duas visões críticas igualmente fortes das sociedades contemporâneas: a crítica anticapitalista e a crítica anticolonial. […] O secularismo moderno impediu a religião de ter qualquer participação significativa nestas visões. (…) no mundo cristão, a religião institucionalizada fez as pazes com as estruturas de poder existentes, por mais injustas, sequestrou a força motivadora contida na espiritualidade e transformou os crentes em indivíduos em busca da salvação individual noutro mundo além da morte. Foi este tipo de religião que Marx tão acertadamente criticou.

No nosso tempo, (…) as teologias políticas progressistas têm partido da crítica da privatização moderna da religião para desenvolver novas concepções de salvação (…) que podem servir de fundamento às lutas pela transformação social, pela justiça e pela libertação. Para estas teologias a conversão a Deus implica uma conversão a um próximo necessitado. […] Reside aqui (…) a razão pela qual (…) muitos dos ativistas dos direitos humanos que pagaram com as suas vidas o empenho que puseram nas lutas pela justiça social eram adeptos da teologia da libertação em uma das suas (…) versões.

A intensidade da experiência religiosa é importante, mas o mais importante é a sua orientação existencial. É vivenciada como um propósito individual sem qualquer ligação relevante com as coisas do mundo ou, pelo contrário, é vivenciada como uma forma de partilhar com os outros a visão transcendental de um Deus sofredor que se manifesta nos povos sofredores deste mundo injusto?

[Foto: Landless Workers Movement (MST — Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra)]

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Se Deus fosse um ativista dos direitos humanos [Capítulo 5 – Parte I]

SANTOS, Boaventura de Sousa. Para uma concepção pós-secularista dos direitos humanos: direitos humanos contra-hegemônicos e teologias progressistas. In: _______ Se Deus fosse um ativista dos direitos humanos [livro eletrônico]. 1. ed. São Paulo: Cortez, 2014, p. 50-55.

Capítulo 5

Para uma concepção pós-secularista dos direitos humanos: direitos humanos contra-hegemônicos e teologias progressistas

O século XX foi um século anti-humanista, por razões muito válidas. (…) exerceu uma crítica progressista ao humanismo abstrato iluminista, o qual contribuiu para trivializar e silenciar tanta degradação humana causada pela dominação capitalista e por outras (…) de dominação coniventes com ela, como (…) o patriarcado e o racismo. Outra fonte de anti-humanismo (…) é chamada “morte de Deus”. Logo que a capacidade dos seres humanos para transformar a realidade se afigurou como potencialmente infinita, a modernidade ocidental tornou Deus supérfluo.

Nietzsche representa a plena realização do projeto moderno respeitante a Deus: do supérfluo à total inexistência. Ao contrário do projeto moderno, (…) a morte de Deus em Nietzsche, em vez de significar o triunfo final dos seres humanos, representa a sua decadência final, o final dos seres humanos com capacidade para seguir imperativos morais ou procurar a verdade. As novas possibilidades caberão daqui em diante ao Übermensch proclamado por Zaratustra ([1883-85] 1998).

No início do século XXI, a religião e a teologia estão de volta. […] (…) a forma como as religiões e as teologias conservadoras e integristas hoje proliferam tornam Deus tão supérfluo quanto o Deus da modernidade ocidental. Deus transformou-se na marca de uma empresa econômico-política global de produtos divinos. […] (…) desde os anos de 1960 têm vindo a emergir teologias pluralistas e progressistas e práticas religiosas baseadas na comunidade, para as quais Deus se revela no sofrimento humano injusto, nas experiências de vida de todas as vítimas de dominação, opressão ou discriminação e nas lutas de resistência que elas promovem. (…) prestar testemunho a este Deus significa denunciar este sofrimento e lutar contra ele. Tanto a revelação quanto a redenção, ou antes, libertação, têm lugar neste mundo, sob a forma de uma luta por outro mundo possível. Aqui reside a possibilidade de ligar o retorno de Deus a um humanismo transmoderno concreto.

Por meio de um autoenriquecimento mútuo, os direitos humanos e as teologias políticas progressistas podem aprofundar o potencial emancipador de ambos. O resultado será uma ecologia de concepções de dignidade humana, algumas seculares, outras religiosas, (…) hermenêutica diatópica (Santos, 1995, p. 273-78; 2006b, p. 113-43; 2014), (…) exercício de interpretação transformadora (…) para a prática social e política, entre os topoi dos direitos humanos e os topoi da revelação e libertação das teologias políticas progressistas.

O sujeito humano simultaneamente enquanto indivíduo concreto e ser coletivo

As teologias progressistas podem ajudar a recuperar a “humanidade” dos direitos humanos. (…) do lado conservador como do progressista, o humano foi sequestrado desde que as abstrações iluministas demonstraram a vacuidade histórica do conceito. (…) as teorias do fim da história e da morte do sujeito convergem para desacreditar a resistência individual e coletiva (…). O ceticismo crítico de Theodor Adorno, que declara a morte do indivíduo na sociedade de consumo e não consegue vislumbrar uma alternativa, é particularmente revelador (…). Em Prismen, escreve: “O horror, contudo, é que o cidadão não encontrou um sucessor” (1955, p. 267). […]

Não é (…) surpresa que o teólogo Johann Metz (…) se baseie em Herbert Marcuse para defender que “a solidariedade e a comunidade não implicam um abandono do individual, (…) resultam da decisão de indivíduos autônomos e que a solidariedade obtida é uma solidariedade de indivíduos, não de massas” (Metz, 1980, p. 69). […] (…) ser um sujeito na presença de Deus implica estar (…) na luta contra a opressão e o ódio que impedem vastas populações (…) de se tornar sujeitos e experimentar o mundo como coisa própria. Metz expressa bem a dialética do individual e coletivo quando escreve:

Devido ao seu pressuposto escatológico contra qualquer conceito abstrato de progresso e humanidade, a Igreja protege o indivíduo contra a sua utilização instrumental (como recurso material e meio) na construção de um futuro tecnológico e totalmente racionalizado. Critica a tentativa de ver a individualidade meramente como função de uma produção social controlada tecnologicamente (1968, p. 13).

[Preciso discordar veementemente de Boaventura mais uma vez. Em primeiro lugar, as fontes utilizadas nos excertos acima, talvez tidas como fontes primárias (pelo menos uma dela parece que o é, considerando cronologia apenas), revelam-se anacrônicas para o ano de 2022, em que a “Igreja” (provavelmente este “i” maiúscula desacompanhado da especificação de qual igreja é já revela um caráter totalmente católico) NÃO protege o indivíduo contra “a sua utilização instrumental”; em verdade, as igrejas ou as religiões todas instrumentalizam seus fiéis, as tradicionalistas totalmente e as progressistas convencendo-as de que realmente são progressistas quando são de fato também conservadoras no predomínio de sua teologia pura ou de sua teologia política. Argumentar com um texto de 1968 o que acabei de elencar é fora de contexto para os nossos tempos e, antes disto, usando um teólogo que escreveu algo no ano de 1980, é também um anacronismo sem tamanho, considerando justamente o que eles demonizam: a tecnologia, no caso atual, a velocidade aceleradíssima do avanço tecnologia, como por exemplos dos aplicativos e mídias sociais, que impossibilitam esta visão romanesca dos autores citados acima, além de serem excludentes: excluem os céticos, os agnósticos, os ateus, as pessoa que de fato acham que Deus é supérfluo e não o centro de tudo, que acreditam nas teorias evolucionistas e realmente tomam tais coisas como princípios de uma vida mais secular, o que parece não ser a opinião (o que me decepciona muito) e nem a tese portanto de Boaventura de Sousa Santos, que me parece colocar Deus quase que como uma necessidade, através das teologias políticas, ignorando até mesmo teorias consagradas como o marxismo, para a construção do que ele chama de justiça social global. Os direitos humanos não precisam de teologias políticas para tornarem-se “melhores” direitos humanos, ou para se aprimorar algum conceito mais ou menos universal de “humanidade”: o que precisa são movimentos revolucionários, que provoquem mudanças estruturais nas sociedades dos países e no sistema internacional.]

A articulação entre o coletivo e o individual torna-se (…) visível na forma como as teologias islâmicas progressistas encaram a luta pelos direitos das mulheres. (…) o critério para identificar “muçulmanos progressistas” consiste em saber quem

luta por alcançar uma sociedade justa e pluralista através de uma abordagem crítica do Islã, uma busca incessante por justiça social, uma ênfase na igualdade de gênero como fundação dos direitos humanos, uma visão de pluralismo religioso e étnico, e uma metodologia de resistência não violenta (Safi, 2005, apud Duderija, 2010, p. 412).

Múltiplas dimensões do sofrimento humano injusto

De acordo com as teologias políticas progressistas, Deus está envolvido na história dos povos oprimidos e nas suas lutas de libertação. No caso das teologias cristãs, a história de Jesus mostra como Deus se torna pobre e desprovido de poder para que os oprimidos se possam libertar a si próprios da pobreza e da impotência. A ressurreição de Jesus é apenas uma metáfora para a liberdade de lutar contra a opressão. No caso das teologias islâmicas progressistas, em particular, das teologias feministas islâmicas, parte-se da afirmação corânica de que “Allah não oprime”.

[Jamais li em toda a minha vida acadêmica reducionismo tão escancarado. Analisemos. Primeiro, a questão de que Deus está relacionado à opressão dos povos pelo mundo e nas suas lutas por libertação (não vou comentar agora, pois há um gancho com o que se segue); em segundo, que, para o cristianismo, conforme Boaventura expõe, dá a entender que a aquiescência de Jesus para ser crucificado e a “metáfora” da ressurreição como uma libertação da opressão de sua época, que Jesus então se suicidou, porque não aguentava mais ver tanto “sofrimento humano injusto”, inclusive contra ele próprio; por último, uma análise progressista do Islã como se o islamismo fundamentalista ou conservador fosse apenas uma interpretação errada ou equivocada do que Allah realmente quis dizer e jamais se ouviu alguém falar sobre isto, exceto as feministas islâmicas, as quais consideram-se apenas “pró-feministas”, mas ainda crentes. Em todos os casos, soa-me como verdadeiro absurdo.]

A primeira geração das teologias da libertação latino-americanas centrou-se na desigualdade social moralmente repugnante. Incidiu a sua atenção nos pobres e nos excluídos, camponeses, trabalhadores rurais sem-terra, desempregados, trabalhadores da indústria miseravelmente pagos, mineiros, novos escravos das plantações neocoloniais (…) em condições sub-humanas, moradores das favelas. Nos anos seguintes, outras (…), como a discriminação sexual contra as mulheres, foram incluídas (…). […] A importância da teologia da libertação feminista é decisiva precisamente porque todas as religiões principais discriminam as mulheres. (…) desenvolvem áreas de reflexão (…) negligenciadas pelos teólogos da libertação masculinos. De acordo com Rosemary Ruether, estas áreas incluem: a questão da cultura e espiritualidade, (…) suporte pessoal e apoio comunitário (…) (Pílar Aquino, 1996; Pereira, 2002; Marcos, 2002; Ville, 2012); (…) nova concepção (…) entre o humano e o natural que interliga a degradação ecológica e a injustiça social (Ress, 2006; Gebara, 1998); a incidência nas mulheres-igreja: pequenas comunidades, (…) de apoio mútuo e conscientização, e que colaboram com outros movimentos sociais (…); uma transformação abrangente das relações interpessoais e sociais (…); o reconhecimento da inter-relação nos sistemas sociais de vários tipos de opressão (…), conduzindo a uma visão inclusiva da libertação (…) contra as visões modernistas direcionadas para um grupo oprimido específico, deixando outros tipos de opressão intactos (1991, p. 228-9).

A (…) persistência de relações coloniais em Estados (…) pós-coloniais trouxe para (…) análise teológica a questão do racismo. (…) o sofrimento e lutas dos povos indígenas, as vítimas mais evidentes do racismo branco cristão, conduziu a uma nova perspectiva na teologia da libertação, a teologia indígena (…). […] Outras perspectivas da teologia da libertação latino-americana foram desenvolvidas a partir da experiência (…) da pobreza e discriminação dos chicanos, la Raza, dos mestizos (…). […]

No final dos anos 1960, os direitos cívicos e o movimento pelo poder negro nos EUA ganharam uma componente teológica por meio do trabalho pioneiro do teólogo afro-americano James Cone (1969). […] (…) o conceito teológico central nos espirituais negros é a libertação divina dos oprimidos pela escravatura (1972). A denúncia do racismo como (…) incompatível com (…) um Deus justo deu origem a uma nova perspectiva na teologia da libertação: a teologia negra.

A discriminação étnica e religiosa e a opressão (…) constituem outro tópico principal das teologias progressistas. No judaísmo, o sofrimento histórico dos judeus constitui o tema central da reflexão teológica. Mark Ellis, um dos mais eloquentes expositores da teologia da libertação, tem vindo a assinalar que a teologia judaica contemporânea demonstra (…) falta de interesse pela teologia da libertação (…). […] Eis a explicação de Ellis para este fenômeno:

A comunidade judaica contemporânea que recentemente conquistou o poder (…) parece receosa – e talvez ameaçada – por este revivalismo profético na cristandade, uma vez que, no uso que faz do Êxodo e dos seus profetas, a teologia da libertação cristã fala daqueles que estão do lado subterrâneo da história, os marginalizados e oprimidos. A tradição judaica está a atrofiar sob o manto do poder político (2004, p. 145).

Esta explicação surge reforçada pela (…) teologia da libertação palestina, (…) que, apesar de (…) pequena minoria na região, tem produzido uma (…) reflexão teológica por parte de cristãos árabes e palestinos sobre a opressão do povo da Palestina e seus opressores: o sionismo e o Estado de Israel. (…) o ímpeto para o sionismo tem sido a história de um violento antissemitismo ocidental, os teólogos da libertação palestinos falam da transferência do pecado do Ocidente para o Oriente: atribuindo à população (…) da Palestina a expiação de um crime cometido pelos cristãos do Ocidente.

(…) Ateek defende que o Velho Testamento se tornou problemático para os cristãos palestinos a partir do momento em que ele passou a ser utilizado para justificar o sionismo. Segundo Ateek, a história do sofrimento dos judeus na Europa é um prelúdio da colonização e ocupação sionista da Palestina. […] A teologia da libertação palestina tem um interesse específico na mensagem bíblica, por encontrar (…) caminho alternativo à confrontação e destruição tanto para palestinos como para judeus. […] Sobre a questão do Holocausto, (…) deveria preparar o terreno para uma paz honrosa (…): “Devemos entender a importância e o significado do Holocausto para os judeus, e insistir para que os judeus entendam a importância e o significado da tragédia da Palestina para os palestinos” (1989, p. 168).

O fato de os governos de Israel terem caído na “idolatria da segurança nacional” (1992, p. 95) levou os palestinos a assumirem o papel dos profetas do Antigo Testamento, convertendo-os na voz e ação críticas desta idolatria. Mitri Raheb (1992) considera que, em face da situação em que os palestinianos se encontram, não cabe aos cristãos manter-se neutros: cabe-lhes colocar-se ao lado dos oprimidos.

Os árabes e os palestinos cristãos são uma minoria, (…) fator de discriminação e sofrimento humano injusto. Este fato sobressai (…) numa outra (…) teologia da libertação desenvolvida por cristãos na Coreia. A palavra (…) “minjung”, que significa povo, deu o nome a esta teologia. A teologia minjung incide sobre a opressão dos cristãos coreanos sob os regimes ditatoriais que governaram o país durante mais de três décadas. […]

(…) outra forma de sofrimento humano injusto tem sido objeto de reflexão teológica e ativismo religioso progressista: o sistema de castas, (…) a luta dos dalits, também denominados de “intocáveis” na Índia. Os dalits representam (…) 20% da população (…) e, apesar das leis que proíbem práticas discriminadoras com base na casta, são-lhes negados (…) os direitos humanos mais básicos e são discriminados no acesso ao emprego, à educação, aos serviços públicos, aos templos hindus (…). […] A reflexão teológica sobre a sua opressão e libertação deu origem a uma teologia da libertação dalit (Irudayaraj, 1990).

As teologias da libertação estão contextualizadas social e culturalmente e (…) podem contribuir para aprofundar a consciência crítica de pessoas e grupos sociais concretos, oprimidos por formas igualmente muito concretas de relações desiguais de poder.

[Arte: Shunned by Her Pueblo (2000) por Sonya Fe]

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Se Deus fosse um ativista dos direitos humanos [Capítulo 4 – Parte final]

SANTOS, Boaventura de Sousa. Os direitos humanos na zona de contato das teologias políticas. In: _______ Se Deus fosse um ativista dos direitos humanos [livro eletrônico]. 1. ed. São Paulo: Cortez, 2014, p. 46-50.

São possíveis outros direitos humanos?

(…) trata-se de um amplo conjunto de zonas de contato, e as assimetrias de poder no seu interior são óbvias. […] O que há de novo é (…) o âmbito e a intensidade dos fluxos na zona de contato e (…) novas formas de medo e resistência. Estes (…) são responsáveis pela fragilidade discursiva e prática dos direitos humanos nas zonas de contato. Quanto mais fortes são as perguntas que se suscitam, mais claramente se revela a fraqueza da resposta dada pelos direitos humanos.

Isto não significa que os direitos humanos devam ser descartados. […] só reconhecendo as debilidades (…) dos direitos humanos é possível construir a partir deles, mas também para além (…), ideias e práticas fortes de resistência. Esta reconstrução vai permitir que os direitos humanos se tornem um instrumento de luta, resistência e alternativa, ainda que limitado. […] (…) de uma perspectiva ético-política, as diferentes turbulências refletem diferentes dimensões da injustiça global constitutiva da ordem imperial na sua fase mais recente: injustiça socioeconômica, injustiça cognitiva (incluindo a injustiça epistêmica, sexual, racial e religiosa) e a injustiça histórica. (…) as diferentes formas de injustiça social global não têm existência independente e (…), em cada uma delas, todas (…) estão presentes. […]

A injustiça cognitiva decorre do confronto, (…) da ação e da interpretação, entre paradigmas culturais, princípios éticos e formas de racionalidade (…). A justiça cognitiva global apela a um novo relacionamento capaz de criar um cosmopolitismo vernáculo de baixo para cima. (…) uma nova relação, entre raças, sexos, tipos de saber e modos de ser. A fragilidade dos direitos humanos, (…) da injustiça cognitiva global, decorre (…) de as concepções e práticas dominantes dos direitos humanos serem, elas próprias, produtoras de injustiça cognitiva. (…) não pelos seus pressupostos serem ocidentais, mas pelo modo unilateral como, com base neles, se constroem pretensões universais abstratas. (…) a solução não é o relativismo, mas (…) um novo relacionalismo.

A injustiça histórica está (…) relacionada com a injustiça cognitiva, mas distingue-se dela por se centrar nas teorias da história que produziram uma distribuição injusta das possibilidades e potencialidades do passado, do presente e do futuro. Corrigir a injustiça histórica significa (…) reparação, alternativas ao desenvolvimento capitalista, descolonização das relações entre Estados, (…) das relações entre povos e das relações interpessoais. Como resultado (…) foi atribuído ou imposto a muitos povos (…) um passado sem futuro por parte de outros povos (…) que reivindicaram para si um futuro sem o constrangimento do passado. Os primeiros foram obrigados a esquecer o passado e o futuro para poder viver o presente; os segundos transformaram o presente na (…) ratificação do passado e no momento (…) da ignição do pathos da transformação social futura.

Esta injustiça histórica só poderá ser relevada à luz de uma teoria e de uma prática histórica pós-colonial. E aqui reside a específica fragilidade da resposta dos direitos humanos (…). Os direitos humanos são concebidos pelo pensamento e prática (…) como a-históricos. Daí a dificuldade em serem reconhecidos os direitos coletivos de povos e grupos (…) vítimas de opressões históricas e a impossibilidade de ver nas violações dos direitos humanos (…) outras violações muito mais graves e massivas (…).

(…) a turbulência que diz respeito às relações entre o sagrado e o profano, o transcendente e o imanente, o religioso e o profano é aquela em que a colisão entre os direitos humanos convencionais e as teologias políticas é mais frontal. A fraqueza da resposta dos direitos humanos (…) decorre de três fatores. (…) os direitos humanos assumem a secularização como um fato consumado e não como um processo histórico (…). (…) ignoram o seu próprio caráter inacabado e contraditório ao defender a secularização sem questionar as concepções cristãs e ocidentais da dignidade humana que lhes estão subjacentes (…). (…) ao reduzir a (…) religião à questão da liberdade religiosa, (…) transformam a religião num recurso privado, (…) objeto de consumo desligado das relações da sua produção. Não podem (…) distinguir entre religião dos opressores e religião dos oprimidos.

(…) a reinvenção dos direitos humanos e a sua transformação num instrumento de emancipação social (…) exige um exercício de tradução intercultural (Santos, 2004; 2006a, p. 122-66) e hermenêutica diatópica (Panikkar, 1984; Santos, 1995, p. 273-78; 2006b, p. 433-70; 2014) através do qual as limitações recíprocas de concepções alternativas de dignidade humana possam ser identificadas, abrindo assim a possibilidade de novas relações e diálogos (…). A isto chamo ecologia de saberes (Santos, 2006b, p. 137-66; 2009b, p. 31-83; e 2014) (…). […] O objetivo da ecologia de saberes é ampliar a legitimidade intelectual e cultural das lutas pela dignidade humana.

Segundo as teologias políticas tradicionalistas, os direitos humanos são uma usurpação secular dos direitos de Deus. Estes direitos divinos (…) são a única fonte legítima de direitos e implicam mais deveres que direitos. (…) não é possível uma ecologia de saberes entre os direitos humanos e as teologias políticas tradicionais. Da perspectiva destas, os direitos humanos, (…) construção humana, carecem de legitimidade para (…) diálogo com uma construção divina.

(…) encontro um enorme potencial para a tradução intercultural entre os direitos humanos reconstruídos e as teologias políticas progressistas plurais (…). De acordo com estas, as políticas convencionais de direitos humanos são (…) hipocrisia política institucionalizada. (…) outras concepções de direitos humanos, (…) contra-hegemônicas e interculturais, podem (…) fortalecer ou ampliar as lutas sociais ancoradas nestas teologias. (…) o (…) Islã não aceitar uma concepção secularizada da dignidade humana ou (…) as teologias cristãs considerarem que a dignidade humana radica na imagem e na semelhança com Deus não constitui um obstáculo para que se encontrem nos seus livros e leis sagradas (…) concepções de dignidade humana que, na prática, são (…) compatíveis com a (…) de dignidade humana subjacente aos direitos humanos.

A emergência das teologias políticas teve pelo menos o mérito (…) de lançar uma nova luz sobre as limitações, peculiaridades e fragilidades das políticas dos direitos humanos convencionais. […] Esse trabalho de reconstrução e de reinvenção dos direitos humanos não é uma utopia ou um objetivo demasiado longínquo ou remoto. (…) está a ter lugar e assume formas surpreendentes. […] (…) determinam os artigos 71 e seguintes da Constituição do Equador aprovada por referendo (…) em 2008. Diz o artigo 71: “A natureza ou Pacha Mama, onde se reproduz e realiza a vida, tem direito a que se respeite integralmente a sua existência e a manutenção e regeneração dos seus ciclos vitais, estrutura, funções e processos evolutivos”. É clara a influência da cosmogonia e da ontologia indígenas nesta concepção de natureza (…).

[Arte: Regalo para la Pacha Mama (2017) por Magdalena Giesek]

Publicado em Ciência Política, Estudos sobre Religião, Estudos Sociológicos, Filosofia, Relações Internacionais, Sociologia

Se Deus fosse um ativista dos direitos humanos [Capítulo 4 – Parte III]

SANTOS, Boaventura de Sousa. Os direitos humanos na zona de contato das teologias políticas. In: _______ Se Deus fosse um ativista dos direitos humanos [livro eletrônico]. 1. ed. São Paulo: Cortez, 2014, p. 42-46.

As afinidades surpreendentes entre a globalização neoliberal e as teologias fundamentalistas

Do lado da modernidade ocidental hegemônica, podemos constatar a radicalização das opções mediante a perda das raízes. O contrato social, (…) raiz fundacional da modernidade ocidental, está a transformar-se numa opção entre muitas (…). Assim deve ser lido o movimento neoliberal de recuo (…) ao contrato social e em direção ao contratualismo individualista e possessivo. (…) o movimento fundacional do estado de natureza para a sociedade civil (…) revela-se afinal reversível.

Grupos sociais cada vez mais vastos que são expulsos do contrato social (pós-contratualismo) ou que a ele não têm sequer acesso (pré-contratualismo) tornam-se populações descartáveis. Sem direitos mínimos de cidadania são, de fato, lançados num novo estado de natureza, a que chamo fascismo social (2006b, p. 295-315).

Na realidade – a realidade dos trabalhadores desempregados ou precários, dos trabalhadores mal remunerados, dos imigrantes, das famílias e dos estudantes endividados, das classes médias empobrecidas –, quanto maior é a autonomia abstrata para selecionar entre opções, menor é a capacidade concreta para fazê-lo.

Do lado das culturas e sociedades que foram (…) colonizadas (…) e, em particular, nas culturas e sociedades islâmicas, está em curso um processo aparentemente inverso, o da radicalização das raízes (especialmente fortes no caso dos diversos fundamentalismos), a busca de uma identidade originária e de um passado glorioso (…) forte e vivo para (…) um futuro alternativo. (…) as opções deixam de ter qualquer sentido na medida em que a única alternativa consiste em recorrer ao que não tem alternativa, a raiz fundadora.

Apesar das muitas diferenças entre os dois processos (…) da equação entre raízes e opções, nas sociedades ocidentais e nas (…) islâmicas, existem (…) semelhanças (…). (…) os fundamentalismos cristãos e os fundamentalismos islâmicos partilham o mesmo medo abissal do futuro embora o expressem de formas distintas. […] O Islã fundamentalista exorciza o futuro com o recurso radical e politizado ao passado, convertendo-o num passado todo-poderoso, (…) raiz que tudo funda e (…) não permite opções. […] O mesmo acontece com as teologias integristas cristãs (…). O seu medo do futuro transmutou-se em um mal-estar radical (em casos extremos, mesmo suicida) perante a intolerável repetição do presente. (…) Walter Benjamin (1977), recorre à repetição radical do presente como única substituição possível do futuro (o fim da história em muitas versões).

Uma segunda semelhança reside na polarização entre processos autoritários de despolitização e de repolitização (…). A instrumentalização das questões de princípio é (…) observável nas teologias fundamentalistas islâmicas. A politização do passado implica a instrumentalização dos atributos considerados questões de princípio e, como tal indisponíveis, (…) a sharia. O Estado moderno destina-se a ser destruído ou ocupado e administrado de acordo com a lógica da regência religiosa.

No caso da globalização neoliberal, (…) celebrada (…) pela maioria dos fundamentalismos cristãos, a erosão do contrato social como raiz torna possível o uso instrumental de todos os princípios que dele decorrem (…). Os sintomas desta instrumentalização são múltiplos: níveis extremos de desigualdade social (…); concentração extrema de poder que esvazia o processo democrático e manipula a representação democrática (…); preços de mercado para todos os valores sociais por meio dos quais a economia de mercado, socialmente útil, desliza para uma sociedade de mercado moralmente repugnante; a erosão dos direitos sociais e econômicos e a emergência de uma sociedade incivil ou do fascismo social que a acompanha; a (…) duplicidade de critérios na avaliação dos desempenhos dos direitos humanos; o Estado de exceção permanente, usando pretextos (…) como a guerra contra o terrorismo ou a austeridade econômico-financeira para controlar os cidadãos, promulgar leis secretas (…), criminalizar o protesto social e erodir os direitos civis e políticos (…) cidadania se tornar indistinguível da sujeição.

Dada a instrumentalização radical a que estão (…) sujeitos, os direitos humanos tornam-se simultaneamente banais e estranhos no interior da própria modernidade ocidental. (…) a superioridade da modernidade ocidental só se sustenta (…) na negação de tudo o que ofereceu historicamente como justificação (…). A instrumentalização do primado do direito e dos direitos humanos é (…) patente no caso do fundamentalismo cristão e das teologias integristas. A legitimidade estruturante das sociedades provém da lei de Deus, não das leis humanas. A total indisponibilidade do direito como raiz torna-se um disfarce para a sua livre instrumentalização como opção.

Tanto na versão hegemônica da modernidade ocidental, a globalização neoliberal, como nas teologias políticas fundamentalistas, o autoritarismo alimenta-se do encolhimento do espaço público e da crise do Estado, reforçando-os. […] (…) apesar das muitas diferenças (…) a globalização neoliberal e as teologias fundamentalistas islâmicas e cristãs revelam dinâmicas destrutivas (…) por meio de novos extremismos.

A violência sacrificial significa a imolação do que é mais precioso (…) com o propósito de o salvar. No caso do fundamentalismo islâmico, a violência sacrificial é (…) contra o que é considerado (…) uma humilhação e opressão intoleráveis por parte do capitalismo ocidental e interesses imperialistas. No tocante às formas mais agressivas da globalização neoliberal (imperialismo e neocolonialismo), destrói-se a vida para “salvar” a vida; violam-se os direitos humanos para “defender” os direitos humanos; eliminam-se as condições para a democracia de modo a “salvaguardá-la”.

As duas formas de violência sacrificial, a islâmica e a ocidental, embora similares, não são simétricas. A verdade é que (…) ambas são justificadas como defensivas. Mas se os desequilíbrios extremos de poder destrutivo forem levados em conta, é difícil não ver a violência sacrificial islâmica como defensiva e a violência sacrificial de base ocidental como agressiva.

De fato, só uma profunda redistribuição social, política e cultural do passado e do futuro permitiria revelar que os dois dramas estão a olhar-se um ao outro no mesmo espelho. Essa redistribuição significaria o cumprimento da justiça histórica e pós-colonial (…).

A turbulência entre o sagrado e o profano, o religioso e o secular, o transcendente e o imanente

Esta turbulência mostra, mais dramaticamente que qualquer outra, as clivagens entre os direitos humanos e a modernidade ocidental (…) e as teologias políticas e, em particular, as (…) fundamentalistas (…).

[…] As teologias políticas fundamentalistas (ou integristas) entendem a turbulência (…) como decorrente (…) de que ainda nem todo o profano foi reduzido ao sagrado, todo o secular ao religioso, todo o imanente ao transcendente. A religião deve ser onipresente e permear todas as dimensões da vida (…). Este entendimento da religião, (…) consensual no Islã, é convertido pelo islamismo político fundamentalista na arma política mais decisiva. O Islã fundamentalista político é um projeto geopolítico que se afirma como teopolítico. A sua universalização ocorre por meio da universalização da religião islâmica. […] O ressurgimento deste tipo de teologia política (…) tornou-se visível a partir da revolução iraniana de 1979 (…).

No caso da modernidade ocidental, a religião foi, desde cedo, transferida do espaço público para o (…) privado, um processo histórico conhecido por secularização. O seu momento fundador pode ser (…) 1648, com o Tratado de Westphalia, que pôs fim às guerras religiosas, conhecidas por Guerra dos Trinta Anos. A separação entre o poder espiritual da Igreja e o poder temporal do Estado moderno foi um processo (…) muito complexo que assumiu diferentes formas em diferentes (…) regiões do mundo e períodos históricos. Não impediu (…) a religião (…) a serviço do colonialismo como parte (…) da missão civilizadora.

(…) para o Iluminismo, a religião foi (…) um anacronismo, (…) sua remissão para o espaço privado (…) como uma fase de transição para o seu total desaparecimento, por outro lado, o poder do Estado moderno constituiu-se através de um complexo jogo de espelhos com o poder sagrado da Igreja, assumindo muitas das suas características sacramentais e rituais (Marramao, 1994, p. 23). Isso para não falar dos “valores cristãos” que, através das teorias do direito natural do século XVII em diante, tiveram um impacto decisivo na concepção dos direitos humanos. […] O secularismo e a religião cristã fizeram parte do mesmo “pacote” colonial. Foram (…) parceiros próximos na imposição da monocultura do conhecimento científico ocidental, através do qual tanto epistemicídio (supressão de conhecimentos indígenas, locais, camponeses e outros conhecimentos rivais não ocidentais) foi cometido (Santos, 2000; 2009b).

Um dos paradoxos desta concepção é (…) a influência cristã coexistir com o direito da liberdade religiosa. Carl Schmitt defendeu efetivamente na sua obra Teologia Política que todos os conceitos do poder do Estado eram versões secularizadas de conceitos teológicos. […]

(…) talvez por esta (…) razão, o destino da religião na modernidade ocidental ficou intimamente ligado ao da distinção entre espaço público e espaço privado. A estabilização da religião foi o correlato da estabilização, por via da religião, das opressões e dos medos no espaço privado (…). (…) este espaço nunca foi ele próprio estabilizado, quanto mais não seja por se encontrar intimamente ligado às transformações em curso no espaço público. A amplitude da esfera pública, (…) o domínio do político, foi desde sempre condicionada pela intensidade da democracia e das políticas públicas (especialmente das políticas sociais) do Estado democrático.

(…) a moderna distinção entre esfera pública e (…) privada tem vindo a ser posta em questão. (…) foi questionada pelos movimentos sociais, sobretudo feministas e de gays e lésbicas, para os quais, contra o entendimento liberal, o espaço privado é também político e, por isso, devia ser objeto de debate público e de decisões políticas. […] Assim, o espaço privado deixou de ser o limite do político para se transformar num dos campos do político. Paradoxalmente, esta expansão da esfera privada ocorreu em simultâneo com a contração da esfera pública.

À medida que a esfera pública encolhe – (…) mais e mais dimensões da vida coletiva são despolitizadas –, a esfera privada, transformada no fundamento da autonomia política do indivíduo, expande-se simbólica e materialmente. A religião emerge como uma das características (e um dos motores) principais desta expansão. A fragilização das redes de segurança criadas pelo Estado Providência torna o indivíduo vulnerável ao medo, à insegurança e à perda de esperança. A religião sempre prosperou nessa vulnerabilidade, como bem mostraram (…) Feuerbach e Marx (Feuerbach [1841], 1957; Marx [1843], 1964).

Estas condições políticas e sociais têm sido terreno fértil para as teologias políticas conservadoras e (…) ataques radicais à distinção público/privado, especialmente no caso das teologias fundamentalistas para as quais o tempo e o espaço sagrados têm um domínio absoluto sobre o tempo e o espaço profanos. […] Capitalizando na crise de legitimidade do Estado e na (…) crise dos valores republicanos, as teologias políticas conservadoras são simultaneamente a causa e a consequência da crise do projeto histórico da secularização.

[Arte: Las Meninas (1656) por Diego Velázquez]

Publicado em Ciência Política, Estudos sobre Religião, Estudos Sociológicos, Filosofia, Relações Internacionais, Sociologia

Se Deus fosse um ativista dos direitos humanos [Capítulo 4 – Parte II]

SANTOS, Boaventura de Sousa. Os direitos humanos na zona de contato das teologias políticas. In: _______ Se Deus fosse um ativista dos direitos humanos [livro eletrônico]. 1. ed. São Paulo: Cortez, 2014, p. 41-42.

A turbulência entre raízes e opções

A segunda dimensão da turbulência na zona de contato com impacto nos direitos humanos é a turbulência entre raízes e opções. Esse tipo (…) permeia todas as zonas de contato entre os direitos humanos e as teologias políticas (…). […] Esta turbulência particular levanta uma terceira dimensão da justiça no coração da zona de contato, para além da justiça socioeconômica e da justiça cognitiva: a justiça histórica, pós-colonial.

A construção social da identidade e da mudança na modernidade ocidental é baseada numa equação entre raízes e opções. […] O pensamento de raízes é o pensamento de tudo (…) que é profundo, permanente, singular e único, (…) que dá segurança e consistência; o pensamento das opções é o pensamento de tudo (…) que é variável, efêmero, substituível e indeterminado do ponto de vista das raízes.

As raízes são entidades de grande escala. Como sucede na cartografia, cobrem vastos territórios simbólicos e longas durações históricas, mas não permitem cartografar em detalhe e sem ambiguidades as características do terreno. Ao contrário, as opções são entidades de pequena escala. Cobrem territórios confinados e durações curtas, mas (…) com o detalhe necessário para permitir calcular o risco da escolha entre opções alternativas. Devido a esta diferença de escala, as raízes são únicas, enquanto as escolhas são múltiplas. […] (…) não há a opção de não pensar em termos de raízes e opções.

A eficácia desta equação assenta numa dupla astúcia. Em primeiro (…), a astúcia do equilíbrio entre o passado e o futuro. […] Trata-se de uma astúcia porque (…) tanto o pensamento das raízes como o das opções são pensamentos do futuro. (…) o passado permanece largamente sub-representado. Esta sub-representação não significa esquecimento. (…) pode manifestar-se como “memória excessiva” (…) num exercício de melancolia que, em vez de recuperar o passado, neutraliza o seu potencial de redenção ao evocar o passado em vez de lutar contra as expectativas fracassadas.

A segunda astúcia é a (…) do equilíbrio entre raízes e opções. (…) apresenta-se como simétrica: equilíbrio entre raízes e opções e equilíbrio na distribuição das opções. Efetivamente, não é assim. (…) o predomínio das opções é total. […] O equilíbrio é inatingível. Consoante o momento histórico ou o grupo social, as raízes predominam (…) ou, ao contrário, as opções predominam sobre as raízes. O jogo é sempre das raízes para as opções e das opções para as raízes (…). (…) não existe equilíbrio ou equidade na distribuição social das opções. Pelo contrário, as raízes (…) são (…) constelações de determinações que, ao definir o campo das opções, definem também os grupos sociais que lhes têm acesso e os que delas estão excluídos. […]

A sociedade medieval não é necessariamente uma sociedade estática, mas evolui segundo uma lógica de raízes. Ao contrário, a sociedade moderna vê-se como (…) dinâmica que evolui segundo uma lógica de opções. Prova-o ao conceber como raiz fundadora o contrato social e a vontade geral que o sustenta. O contrato social é a metáfora fundadora de uma opção radical – a de deixar o estado de natureza para formar a sociedade civil –, que se transforma em raiz a partir da qual quase tudo é possível, tudo exceto voltar ao estado de natureza. A contratualização das raízes é irreversível, e este é o limite da reversibilidade das opções. […] Esta autodescrição da modernidade ocidental levou-a a conceber não só a sociedade medieval, mas todas as outras culturas e sociedades como baseadas em raízes e concomitantemente na supremacia do primordialismo, status, identidade, comunidade, etnicidade e nação étnica, omitindo o fato de que, em todas as sociedades, a lógica de raízes opera em articulação com a lógica de opções.

(…) a modernidade ocidental procedeu a uma redistribuição brutal do passado, do presente e do futuro dos povos e das culturas na zona de contato. Reservou para si o futuro e permitiu que coexistissem com ele vários passados, desde que todos convergissem num mesmo futuro, o seu. (…) distribuiu aos povos e às culturas dominados passados neutralizados, sem capacidade de produzir futuros alternativos ao da modernidade ocidental. A descolonização e as independências (…) não significaram a ruptura com esta teoria da história. (…) a zona de contato continuou a ser uma zona colonial, apesar de ter terminado o colonialismo político.

[Arte: The Missionary, 1912 por Emil Nolde]

Publicado em Ciência Política, Estudos sobre Religião, Relações Internacionais, Sociologia

Se Deus fosse um ativista dos direitos humanos [Capítulo 4 – Parte I]

SANTOS, Boaventura de Sousa. A globalização das teologias políticas. In: _______ Se Deus fosse um ativista dos direitos humanos [livro eletrônico]. 1. ed. São Paulo: Cortez, 2014, p. 38-41.

Capítulo 4

Os direitos humanos na zona de contato das teologias políticas

A emergência das teologias políticas gera novas zonas de contato entre concepções rivais de ordem social e transformação social com as novas formas de turbulência política, cultural e ideológica daí derivadas, que têm impacto nos direitos humanos (…).

(…) zonas de contato são campos sociais em que diferentes mundos da vida cultural se encontram, medeiam, negociam e confrontam. (…) são, portanto, zonas em que ideias, conhecimentos, formas de poder, universos simbólicos e modos de agir rivais se encontram em condições desiguais e interagem de múltiplas formas (…) de modo a dar origem a constelações culturais híbridas, nas quais a desigualdade das trocas pode ser reforçada ou reduzida.

Será a diferença entre culturas ou mundos da vida normativa tão profunda que os torna incomensuráveis?

Pratt define as zonas de contato como “espaços sociais em que culturas distintas se encontram, chocam entre si e se envolvem umas com as outras muitas vezes em relações de dominação e subordinação altamente assimétricas – como o colonialismo, a escravatura e as suas sequelas que sobrevivem hoje pelo mundo afora” (1994, p. 4).

A zona de contato pode envolver diferenças culturais selecionadas e parciais, as diferenças que, num espaço-tempo determinado, se encontram em concorrência para dar sentido a uma determinada linha de ação.

A turbulência entre princípios rivais

(…) conhecida tensão inerente ao discurso e à prática dos direitos humanos resultante da discrepância entre princípios e práticas. (…) esta discrepância é muito mais antiga que os direitos humanos.

(…) São Tomás de Aquino (1265-1273 [1948]) identificou-a de modo lapidar ao criticar os cristãos do seu tempo (…) por habitus principiorum, o hábito de invocar obsessivamente os princípios cristãos para se dispensar de os observar na prática. A modernidade ocidental herdou esse habitus e transformou-o num princípio de ação política, consagrado pelo constitucionalismo moderno: os (…) direitos humanos reconhecidos pelas constituições modernas têm vindo a tornar-se crescentemente inclusivos, mas as práticas políticas prevalecentes continuam a cometer ou tolerar violações, muitas vezes massivas, dos direitos humanos. Esta inconsistência atinge hoje níveis sem precedentes (…) depois de a globalização neoliberal ter baseado a legitimidade da mudança social em três princípios (…) altamente vulneráveis à discrepância entre princípios e práticas: primado do direito, democracia e direitos humanos.

As teologias progressistas têm (…) papel importante no (…) inconformismo perante a hipocrisia do pensamento e prática convencional dos direitos humanos. […]

Sempre que os direitos humanos são postos ao serviço de lutas contra-hegemônicas – sejam elas a luta pelo cancelamento da dívida dos países pobres, pelo acesso à terra e à água, pela autodeterminação dos povos indígenas etc. – são submetidos a um processo de reconstrução política e filosófica que torna ainda mais visível e mais condenável a discrepância entre princípios e práticas subjacente ao complexo hegemônico, liberal e imperialista dos direitos humanos.

A resiliência da discrepância entre princípios e práticas e a hipocrisia dos direitos humanos convencionais a este respeito têm alimentado a presente turbulência na zona de contato entre princípios rivais.

A clivagem entre princípios rivais é (…) visível no conflito entre a globalização baseada no ocidente, (…) hegemônica ou contra-hegemônica, e a emergência das teologias políticas não cristãs. Esta clivagem acrescenta novas dimensões à questão da justiça social global, (…) à injustiça socioeconômica se junta injustiça cognitiva, (…) a longa história das relações desiguais entre diferentes tipos de conhecimento e entre diferentes formas de ver o mundo.

Na sequência de uma longa série de fórmulas – missão civilizadora, progresso, desenvolvimento e modernização – a globalização neoliberal prossegue com o projeto imperial global, baseado em princípios claramente ocidentais e cristãos inteiramente congruentes com os direitos humanos convencionais (…).

Estas concepções chocaram-se sempre com outras (…) rivais. Os povos que entraram na zona de contato com a modernidade ocidental fizeram-no em condições de inferioridade forçada, como (…) o caso do colonialismo. Muitos foram forçados a abandonar as concepções que os tinham guiado antes de chegar à zona de contato, outros adotaram de modo mais ou menos voluntário os novos princípios ou apropriaram-se deles, conferindo-lhes outros sentidos. A força das novas concepções raramente residiu em si mesmas, mas antes no poder daqueles que as queriam impor.

Entre todos os povos, culturas e sociabilidades não ocidentais que foram sujeitos a este projeto colonial e imperial, os povos islâmicos estão entre aqueles que mais claramente definiram a submissão a esse projeto como uma derrota histórica. […]

A derrota e a memória desta transmitida ao longo de gerações terão contribuído decisivamente para que os povos islâmicos tenham sentido de maneira (…) radical e dilemática as suas opções históricas: imitar a modernidade ocidental, os seus princípios e monoculturas, mas com isso perder a identidade, rejeitar o seu passado (…), tornar-se estranho a si mesmo (imitação, alienação e estranheza); ou, pelo contrário, rejeitar radicalmente a modernidade e arcar com os custos de continuar a viver num tempo moldado há séculos por princípios (…) que lhes são adversos, os dominam e humilham (rejeição e projeto social alternativo). A primeira opção pareceu dominar no período (…) do nacionalismo árabe (…), quando a (…) ordem era “modernizar o Islã”. Hoje, a segunda opção parece dominar no (…) Islã político e a (…) ordem é “islamizar a modernidade”, (…) no caso das teologias fundamentalistas, rejeitar por completo a modernidade. É por essa razão que, na zona de contato entre direitos humanos e teologias islâmicas, esta segunda opção é hoje a que mais contribui para criar a turbulência entre princípios rivais.

A turbulência entre princípios rivais decorre do inconformismo politicamente organizado perante a derrota histórica de um dado conjunto de princípios insubstituíveis – sejam eles a derrota da Igreja medieval (…) ou a derrota do Islã pelo imperialismo ocidental – e a recusa de os considerar irreversíveis. […] (…) estamos perante monoculturas rivais. (…) a zona de contato tende a assumir um caráter particularmente confrontacional, e as negociações e composições só serão imagináveis com (…) laboriosos procedimentos de mediação e de tradução intercultural.

[A imagem desta publicação é de lixo eletrônico e tóxico enviado pelos países ocidentais à África, onde muitas nações não tem regulamentação sobre essa questão e acabam aceitando, o que representa a continuidade do espírito colonialista europeu (a maioria vem da UE) e também pode significar a discrepância entre os princípios e as práticas, mesmo que aqui não seja somente um assunto de direitos humanos, mas também ambiental. Isto faz com que nações africanas pobres não consigam cumprir as metas das Nações Unidas para um desenvolvimento sustentável, enquanto que os países ocidentais “liberam-se” de seus detritos ficando, dessa forma, de acordo com os objetivos da ONU às custas de outros Estados. Fonte da imagem: Portal allafrica.com]

Publicado em Antropologia, Ciência Política, Estudos sobre Religião, Estudos Sociológicos, Filosofia, Relações Internacionais, Sociologia

Se Deus fosse um ativista dos direitos humanos [Capítulo 3]

SANTOS, Boaventura de Sousa. O caso do fundamentalismo cristão. In: _______ Se Deus fosse um ativista dos direitos humanos [livro eletrônico]. 1. ed. São Paulo: Cortez, 2014, p. 33-37.

Capítulo 3

O caso do fundamentalismo cristão

Se o fundamentalismo islâmico levanta questões (…) relacionadas com a rejeição da modernidade ocidental, a interpretação estática da shari’a (…), a incompatibilidade com regimes democráticos e com os direitos das mulheres, o mesmo acontece, ainda que de formas diversas, com o fundamentalismo cristão, sobretudo protestante, reemergente nos anos 1980, nos Estados Unidos da América (mas também na América Latina, na África e na Ásia) e conhecido como “a Nova Direita Cristã”. […] Segundo Casanova, a tendência dominante do protestantismo fundamentalista reestabeleceria (…) “a hegemonia cultural do protestantismo evangélico [para] recristianizar a constituição, a república, e a sociedade civil americana” (1994, p. 159). O argumento central destes movimentos (…) é que a sociedade moderna liberalizou a família, a educação e o aborto, o que é considerado uma traição aos valores cristãos. […] Preconizam (…) o reenvio para o domínio privado de questões que os movimentos de emancipação, nomeadamente, das mulheres e dos homossexuais, remeteram para o espaço público. Segundo Falwell: “Devemos insurgir-nos contra a Lei de igualdade de direitos, a revolução feminista, e a revolução homossexual” (Falwell, 1980, p. 19). E pugnam (…) pela cristianização das estruturas do Estado, como, por exemplo, as da educação (…). […] Em 1984, Richard Viguerie, (…) da Nova Direita Cristã, afirmou que “os conservadores devem trabalhar para o dia em que [eleições presidenciais nos EUA] seja entre um Democrata conservador e um Republicano conservador. Aí poderemos ir pescar ou jogar golfe no dia da eleição sabendo que não importa se vence o Democrata ou o Republicano…” (Bruce, 1990, p. 479).

(…) a recristianização da sociedade americana passa também por uma articulação entre aquela que é considerada a ética cristã da responsabilidade e a economia de mercado. Gary North, presidente do Instituto para a Economia Cristã (…), apresenta as intenções do instituto (…). […]

North considera que as vozes que mais se fizeram ouvir nos últimos cinquenta anos foram aquelas que defenderam um Cristianismo social, o qual (…) é “francamente a favor da intervenção governamental”. Na sua opinião (marcadamente teocrática), os cristãos conservadores remeteram-se ao silêncio […]

A teologia da prosperidade (“Gospel prosperity”) constitui outra forma de legitimar religiosamente a economia capitalista e as desigualdades sociais daí resultantes. Partindo do pressuposto de que Deus quer que o ser humano seja próspero, considera que este é incapaz de o ser por si próprio, sendo Deus o princípio legitimador da riqueza e do enriquecimento. […]

(…) o Estado social é considerado uma tentativa sacrílega de substituir o papel regulador de Deus e uma forma de tornar os indivíduos “preguiçosos”. […]

Murray chama a atenção para o impacto econômico destes movimentos fundamentalistas (carismáticos e pentecostais), também designados como “renovaristas” (“renewalists”), tendo em mente o seu papel no reforço da hegemonia neoliberal e a sua expansão à escala global: “Com mais de 500 milhões de crentes em todo o mundo, o Renovarismo representa um dos movimentos de fé em crescimento mais rápido em todo o planeta – especialmente entre as massas populares em diferentes regiões do mundo em desenvolvimento” (2012, p. 266). (…) este fenômeno gerou um grupo demográfico com ligações transnacionais que partilha a mesma concepção do mundo e as (…) formas de ativismo dentro dos Estados, entre diferentes Estados, sociedades e mercados. (…) não só estruturam um mercado financeiro global, pelo fato de fazerem circular financiamentos de umas igrejas e comunidades para outras em nível interno, externo e global, como têm criado (…) microcrédito orientados para apoiar o empreendedorismo cristão e “associações cristãs de negócios de nível regional, nacional e global (…) e promover a sua influência sobre os mercados” (Murray, 2012, p. 270). Além disso, estes movimentos também influenciam o mercado de trabalho, de forma direta […].

Existe também uma vertente católica de legitimação divina do capitalismo. Embora o Papa João Paulo II (1991), a par de uma crítica feroz ao marxismo, tenha feito uma forte crítica ao capitalismo como sistema econômico, sobretudo pelo consumismo e materialismo, alguns autores católicos vêm tecendo elogios ao capitalismo como sendo o sistema que dá mais oportunidades aos pobres.

A expansão dos movimentos fundamentalistas cristãos por todo o mundo, quer por meio da missionação proselitista, quer por meio dos recursos eletrônicos, tem um impacto político importante. Ao expandir-se, estes (…) também se “indigenizam”. No Brasil, (…) o neopentecostalismo ou terceira onda do pentecostalismo é um capítulo do evangelicalismo que congrega denominações oriundas do pentecostalismo clássico ou (…) das igrejas cristãs tradicionais (batistas, metodistas etc.). Uma boa parte destes movimentos possui ou utiliza canais de televisão, rádio, jornais, editoras e portais ou páginas web próprias. (…) os neopentecostais formam a segunda maior bancada do Congresso Nacional do Brasil (…), o que explica que nas três últimas eleições o debate eleitoral tenha estado centrado na questão do aborto, e não em temas como a economia, a habitação ou a educação, ou que Marco Feliciano, um pastor da Igreja Evangélica Assembleia de Deus, se tenha tornado presidente da Comissão Parlamentar para os Direitos Humanos e proposto uma lei controversa conhecida como “cura gay”, que, caso fosse aprovada, permitiria aos psicólogos tratar a “homossexualidade” como uma doença.

A extraordinária difusão do fundamentalismo cristão é um fenômeno de cultura de massas, não de cultura popular. Esta última, tão importante para as teologias da libertação, assenta na valorização do autêntico e autóctone, do que corresponde a uma identidade específica, contextualizada no tempo e no espaço. A densidade cultural e vivencial desta autenticidade exige um esforço de tradução intercultural da parte da mensagem e dos mensageiros e mensageiras cristãos para que a evangelização não surja como um ato de violência pura e dura. Ao contrário, as correntes fundamentalistas, sobretudo as neopentecostais, transformam a sua performance no único contexto relevante e para ela congregam o estranho e o familiar, o inteligível e o ininteligível, o ancestral e o hipermoderno, como se fossem componentes homogêneos do mesmo artefato religioso.

[Eu apenas gostaria de acrescentar que o livro foi escrito antes de 2014, provavelmente em 2013, pois ele cita as manifestações contra o aumento da tarifa de ônibus, depois para por aí, portanto a obra não abarca o exponencial crescimento e o abocanhamento dos cristãos fundamentalistas neopentecostais evangélicos no Brasil, especialmente após 2016, golpe de estado contra a Presidenta Dilma Rousseff, e, a partir de então, não era mais um simples Marcos Feliciano que incomodava na Comissão de Direitos Humanos na Câmara propondo a “cura gay” (a qual só foi apoiada por um bando de loucos + imbecis, nas definições de Hegel em Filosofia do Direito, mas por nenhuma pessoa sensata, tendo estudado ou não), mas foi muito além, interpenetrando não apenas a esfera das metrópoles urbanas, mas avançando e tomando um lugar que há séculos foi da Igreja Católica na evangelização dos índios, o que destruiu e destrói a cultura nativa deles; além do mais, avançaram sobre a África, pois a maioria dos bilionários bispos das Igrejas Evangélicas do Brasil possuem passaportes diplomáticos, inclusive dados na época dos governos petistas (não há como negar os fatos), e eles podem com dinheiro, retirando, através do dízimo, o pouco que alguns povos dos países mais vulnenáreis africanos tem, assim como fazem com as populações mais pobres do país, de periferias, vilas e cidades pequenas do interior. Mas foram mais longe ainda e nisto eles coincidem exatamente com a ideologia proposta lá nos anos 1980 pelos reemergentes fundamentalistas protestantes cristãos, que é a “recristianização da estrutura do Estado”, avançando principalmente sobre setores que envolvem as tradições e os costumes que as religiões costumam intervir, como é o caso da Educação, do ensino religioso ou da oração nas escolas públicas etc., e eles avançaram tanto neste projeto que engajaram-se todos em Bolsonaro para elegê-lo em 2018 e, já no ano seguinte, o governo estava lotado de Ministros e Ministras cristãos protestantes fundamentalistas evangélicos das mais diferentes religiões; o próprio Presidente nunca se decidiu qual era a sua religião de fato, ele tenta agradar a todas, mas, tenho certeza, está agradando somente os fundamentalistas mais radicais, pelo menos eu preciso acreditar nisto e precisamos lutar contra a imersão das teologias políticas na política em si, na política como ciência e na política prática do Executivo, do Legislativo e demais instituições, não é possível que séculos e séculos em prol do secularismo sejam jogados na lata do lixo em razão de uns radicais que tentam impor seus modos de vida religiosos à toda uma nação.]

[…] Isto é particularmente notório (…) na influência exercida pela Nova Direita na política e na legislação norte-americanas (…): George W. Bush foi eleito com o apoio massivo destes setores (ainda que também com o apoio de católicos tradicionalistas(…)). Nas eleições para o seu mandato de 2000-2004, “os protestantes evangélicos foram os maiores apoiantes do presidente Bush nestas eleições, dando-lhe quase nove em cada dez dos seus votos” (Green, 2009, p. 320). Davidson & Harris (2006) não hesitam em considerar os cristãos teocráticos nos Estados Unidos como uma “nova forma de fascismo” (…).

A questão dos direitos das mulheres (…) constitui um critério relevante para a identificação do fundamentalismo cristão. Na Igreja Católica, segundo Casanova, o aggiornamento do Concílio Vaticano II operou uma transformação que “assumiu o caráter de uma reforma oficial, relativamente uniforme e rápida vinda de cima que encontrou uma fraca contestação e pôde ser facilmente aplicada ao mundo católico, gerando como resultado uma notável homogeneização da cultura católica pelo menos entre as elites” (2005, p. 101). […] Do mesmo modo, a Igreja Católica não hesitou em associar-se aos governos mais reacionários de países islâmicos para tentar contrariar as formulações da Plataforma de Pequim relativas aos direitos reprodutivos das mulheres.

(…) torna-se evidente que os desafios colocados pelas teologias políticas aos direitos humanos e as formas como estes se relacionam com processos contraditórios de globalização requerem uma análise mais específica e diferenciadora. […]

[Fotografia: Templo do Salomão, da Igreja Universal do Reino de Deus, em São Paulo. Foto: Divulgação / Igreja Universal]