Publicado em Antropologia, Ciência Política, Estudos Culturais, Estudos de Gênero, Estudos sobre Religião, Estudos Sociológicos, Filosofia, Relações Internacionais, Sociologia

Se Deus fosse um ativista dos direitos humanos [Capítulo 5 – Parte final]

SANTOS, Boaventura de Sousa. Para uma concepção pós-secularista dos direitos humanos: direitos humanos contra-hegemônicos e teologias progressistas. In: _______ Se Deus fosse um ativista dos direitos humanos [livro eletrônico]. 1. ed. São Paulo: Cortez, 2014, p. 55-62.

Sofrimento na carne

A trivialização do sofrimento humano nos nossos dias e a consequente indiferença com que encaramos o sofrimento dos outros – mesmo se a sua presença nos nossos sentidos é avassaladora – têm muitas causas. […] A tradição moderna ocidental, ao separar a alma do corpo, degradou este último ao concebê-lo como constituído por carne humana. (…) a conceitualização (e dignificação) do sofrimento humano passou a ser feita através de categorias abstratas, sejam elas filosóficas ou éticas, que desvalorizam a dimensão visceral do sofrimento, a sua marca visível de experiência vivida na carne.

Este processo de descorporalização por via de classificação e organização encontra-se (…) mesmo nos autores que mais afirmaram a importância do lugar do corpo, de Nietzsche a Foucault (…). Pela mesma razão, (…) nossos sentidos foram dessensibilizados para a experiência direta do sofrimento dos outros. (…) a carne do prazer como a do sofrimento, foi (…) privada da sua materialidade corpórea e das reações instintivas e afetivas que esta provoca e cuja intensidade consiste em estar (…) além das palavras, (…) além de uma argumentação racional ou de uma avaliação reflexiva.

As religiões e as teologias não foram imunes a este instrumento biopolítico. […] (…) levaram ao extremo a repulsa pela carne como lugar do prazer, sempre associada ao sexo e às mulheres. (…) incitaram os crentes a assistir os corpos dos seus próximos sem outra mediação para além da compaixão. Deste modo, permitiram um acesso denso, direto e intenso à carne em sofrimento (…). É, para além disso, um acesso prático que (…) não procura um equilíbrio entre a compreensão e a intervenção. Concede prioridade absoluta à intervenção (…).

Estas são as razões pelas quais as religiões permitiram (…) uma ética de cuidado e de envolvimento baseada nas reações viscerais da intersubjetividade entre o eu e o próximo, ligações (…) pré-representacionais e (…) pré-éticas, constituídas por sensibilidades e disponibilidades (…). O lado negativo deste imediatismo do sofrimento é a sua despolitização. Foi (…) isto que aconteceu no caso (…) de sofrimento na carne numa das religiões (…), o Cristianismo: a crucifixão de (…) Cristo. A natureza altamente política deste sofrimento foi sequestrada pelo dogma da ressurreição, (…) por uma fuga do mundo, (…) que, ao contrário da viagem de Allah ao céu, não teve regresso. A figura histórica do (…) Cristo dos evangelhos cristãos é obviamente diferente do Jesus Cristo do Corão (…) (Khalidi (Org.), 2001). A diferença tem muito a ver com o sofrimento carnal. (…) para os cristãos o que importa é a própria carne de Jesus e o seu sofrimento, (…) ele é a “Palavra incarnada”, para a fé islâmica Jesus é um exemplo de piedade devido à sua proximidade com o sofrimento carnal dos outros (…).

O potencial contra-hegemônico das teologias progressistas reside na articulação que buscam entre a ligação visceral de um gesto assistencial (…) e a luta política contra as causas do sofrimento como (…) tarefa inacabada da divindade. Na sua crítica do secularismo como uma forma velada de pluralismo restritivo (por excluir a religião enquanto modo legítimo de ser), William Connolly fala de “registros viscerais da subjetividade e intersubjetividade” como expressão de experiências muito intensas (…) e aponta (…) os registros de subjetividade religiosa (1999, p. 27).

Uma vontade radical insurgente e um horizonte pós-capitalista

A religião institucionalizada pagou um preço elevado para encontrar um modus vivendi com a modernidade ocidental e com o Iluminismo: a privatização. […] (…) a religião foi banida do sistema político (o que (…) não significou a incapacitação da igreja para interferir na política (…)), mas, por outro lado, foi deixada entregue a si mesma (…). […] uma ligação liberta das mediações políticas, culturais, discursivas e institucionais que dominaram, nos últimos dois séculos, outras mobilizações sociais (seculares) da esfera pública, (…) o movimento operário e o movimento feminista.

Isto explica (…) a razão pela qual as mobilizações religiosas que no nosso tempo reclamam a esfera pública são sustentadas por (…) radicalismo que não encontramos na maioria dos movimentos sociais. Esta energia radical é usada pelas teologias tradicionalistas para recuar no tempo, até (…) em que a igreja controlava as hierarquias sociais e políticas; (…) também é usada pelas teologias pluralistas progressistas para lutar contra todas as hierarquias, opressões e discriminações (…).

A ligação entre a teologia e a crítica radical do capitalismo constituem o núcleo da teologia da libertação. […] Afirmando a necessidade de uma perspectiva teológica do Terceiro Mundo informada pelo Marxismo e pela teoria da dependência, Ellacuría afirma: “é impossível ver a concretização da justiça sem uma revolução básica na ordem social e econômica, ou uma verdadeira realização do homem sem a criação de uma estrutura econômica adequada” (1977, p. 127).

Para as teologias políticas progressistas, a libertação, mais que a resistência ou a salvação, constitui a base de uma vontade radical de lutar por uma sociedade mais justa.

O impulso para a interculturalidade nas lutas pela dignidade humana

(…) as concepções e práticas dominantes dos direitos humanos são monoculturais, e isto constitui um dos maiores obstáculos à (…) uma luta de baixo para cima, real e universal, pelos direitos humanos. A religião (…) apenas existe como uma (…) variedade de religiões, (…) como diversidade entre as principais religiões tanto como (…) dentro de cada religião. No mundo ocidental esta diversidade é uma das consequências inesperadas da privatização da religião. […]

O (…) princípio, o da comunidade, foi (…) negligenciado, (…) concebido como um adjuvante do Estado ou do mercado. Esta negligência permitiu ao princípio da comunidade evoluir livremente fora (…) da burocracia e da estandardização mercantil e (…) de uma forma muito menos monocultural e monolítica. Afastada do Estado e do mercado, a religião refugiou-se na comunidade, um domínio de regulação social menos estandardizado e mais aberto à diversidade.

Apesar dos reveses e das falhas (seletividade arbitrária, tentação de afirmar uma única verdade revelada, ausência de consequências práticas), os diálogos ecumênicos e interreligiosos são o testemunho de um potencial para a interculturalidade no domínio da religião. Se (…) fossem mais coerentes e ativamente praticados, poderiam funcionar simultaneamente como uma poderosa memória e um campo de experimentação para diálogos mais amplos, envolvendo concepções religiosas e não religiosas de dignidade humana.

(…) o pensamento religioso (…) oscilou entre o dogmatismo estrito e a ortodoxia, por um lado, e o questionamento (…) dos textos, práticas, regras e instituições, pelo outro. No tocante ao último, roçaram muitas vezes a heresia e sofreram consequências (…), o mais notável é que (…) foram além dos materiais religiosos familiares, beberam em culturas estranhas outros tipos de conhecimento e filosofias, imergiram (…) nos detalhes das experiências do dia a dia, interagindo com mercadores, artesãos, prostitutas, e retirando consequências teóricas imediatas destas experiências e discursos. (…) quando decidiram ir às raízes das verdades estabelecidas por conta própria, os pensadores religiosos tenderam a ser mais bricoleurs do que quaisquer outros (…), misturando (…) fragmentos de diferentes proveniências com os quais criaram novos sentidos e interpretações.

Raimundo Panikkar, teólogo católico, (…) pode ser (…) considerado (…) exemplo de teólogo e pensador “numa posição limiar”, visto ter desenvolvido um pensamento cristão de expressão hindu. (…) o Cristianismo, para ser realmente “cristão”, “para pertencer ao mundo inteiro”, deveria despir-se dos seus trajes ocidentais coloniais, que fizeram crer que o Cristianismo só seria viável por meio da cultura ocidental. (…) “Ser-nos-á possível admitir que existam limites à compreensão de Deus que recebemos das tradições semítica e greco-romana? Podemos admitir que existam também limites ao nosso entendimento de religião (…) e oração (…)?” (Panikkar, 2011, p. 117-8).

As narrativas de sofrimento e libertação

A linguagem privilegiada das permutas interculturais é a narrativa. Contar histórias gera um imediato e concreto sentido de copresença (…) do qual as experiências sociais que ocorrem em diferentes tempos, espaços e culturas se tornam mais facilmente acessíveis e inteligíveis (…). (…) a memoria passionis (uma categoria judaico-cristã) do mundo reside na lembrança e nas narrativas que recontam lutas exemplares de vida e de morte, de sofrimento e de libertação, de perdas e ganhos, que reforçam os sentimentos de alegria e medo, (…) dos quais emerge de baixo para cima uma (…) sabedoria partilhada do mundo.

Ao contrário da reconstrução histórica, a memoria passionis colapsa o passado, presente e futuro, vê forças nas fraquezas e possibilidades alternativas nas derrotas. A sabedoria que dela provém é tão contemplativa quanto ativa; é uma reserva mundial de lembrança e visão que converte o passado em energia que reanima o presente e potencia o ainda não ou o talvez do futuro. […] Os contadores de histórias são sempre coautores das (…) que ouviram dos seus predecessores.

Vejo aqui uma possibilidade para outro encontro frutuoso entre os direitos humanos e as teologias políticas progressistas. Narrar e contar histórias está na base da experiência religiosa, seja (…) de textos sagrados ou a de tradições orais sagradas. (…) mesmo a filosofia, a dogmática ou a exegese religiosas apenas se sustentam na medida em que assentam em acontecimentos, ditos e vidas exemplares concretas de pessoas e povos – sejam eles extraordinários ou ordinários, mas nunca anônimos. […] (…) Elie Wiesel: “Teologia não é mais que contar histórias” (1999, p. 94). Todos os profetas se exprimiam por parábolas para que os futuros crentes as pudessem reinterpretar à luz das suas próprias experiências e da sua liberdade intelectual.

A natureza convencional do discurso dos direitos humanos reside não só numa (…) promiscuidade (…) entre a proclamação abstrata dos direitos humanos e a resignação perante as violações sistemáticas (…), como (…) na trivialização do sofrimento humano contido nessas violações. Esta (…) decorre (…) do discurso normalizado (em sentido foucaultiano) das organizações de defesa dos direitos humanos, com (…) forte componente estatístico que reduz ao anonimato dos números o horror (…). Neutraliza-se (…) a presença desestabilizadora do sofrimento (…) na qual seria possível fundar a razão militante e a vontade radical da luta contra um estado de coisas que produz (…) o sofrimento injusto. Pela sua insistência na narrativa concreta do sofrimento das vítimas e da sua luta contra os opressores, as teologias políticas progressistas podem contribuir para tornar o sofrimento injusto numa presença intolerável que desumaniza tanto as vítimas quanto os opressores (…).

A presença do mundo antes ou para além da interpretação

A concepção intercultural dos direitos humanos (…) (Santos, 2006b, p. 433-70; 2014) visa fortalecer (…) a legitimidade das políticas de direitos humanos (…) como radicalizar as lutas que podem ser travadas em seu nome. A noção de interculturalidade destina-se a tornar inteligível a ideia de que o propósito dos intercâmbios interculturais é a interpretação, produção e partilha de significados.

É (…) necessário ir (…) além (…) e demonstrar que, se uma ecologia de diferentes concepções de dignidade humana vai fundamentar uma luta mais abrangente e radical (…), isso pressupõe a criação de momentos (…) intensos de copresença (…) em que a presença precede o significado. A presença é a coisa ou materialidade sobre a qual se constroem os significados. […] É uma forma de ser que, como Gumbrecht afirma (…), “se refere às coisas do mundo antes destas se tornarem parte de uma cultura” (2004, p. 70). É por meio do seu significado que as coisas se tornam culturalmente específicas e muitas vezes também incomensuráveis ou ininteligíveis para outras culturas. (…) estas “coisas” não são exteriores à cultura, são parte dela, mas, paradoxalmente, de uma forma não cultural. Possuem a capacidade pré-representacional de serem exteriores ao pensamento e à consciência, ao mesmo tempo que os fundamentam (…). São materiais e operam no nível do instinto, da emoção e do afeto. […] (…) Gumbrecht é (…) eloquente ao contrapor culturas que são dominadas pela presença (culturas-presença) e culturas que são dominadas pelo significado (culturas-significado) (2004, p. 79). (…) em todas as culturas existe presença e significado, mas a ênfase em uma ou outra varia (…). A cultura moderna ocidental é uma cultura de significado (…). (…) algumas culturas não ocidentais são mais bem compreendidas como culturas de presença.

(…) nas permutas interculturais, o papel da presença consiste em propiciar a geração de sentidos de comunidade, indiferentes à diversidade cultural e imediatamente evidentes. Uma pilha de corpos mutilados num campo de morte, o corpo esquelético de uma criança prestes a morrer de fome, a dor de uma mulher sobre o cadáver do seu jovem filho (…), todas estas presenças são dotadas de um poder que parece relativamente autônomo em relação aos significados que lhe podem ser atribuídos.

(…) também aqui vejo uma (…) contribuição da experiência religiosa progressista e da reflexividade teológica para fortalecer, expandir e radicalizar as lutas pelos direitos humanos. A presentificação do passado ou do outro por meio de ritos, rituais e sacramentos (…) desempenha um papel central na experiência religiosa (Asad, 1993). […] se gera um sentido intensificado de partilha e presença que, se for colocado ao serviço das lutas de resistência e libertação da opressão, pode (…) fortalecer e radicalizar a (…) transformação social. Não é por um capricho proselitista ou por excesso de zelo que todas as reuniões, encontros, protestos e ocupações de terras organizadas por um dos movimentos sociais mais importantes do nosso tempo – o Movimento dos Trabalhadores sem Terra (MST) do Brasil – começam com aquilo a que chamam a “mística”, um momento de silêncio, oração e canto, com os militantes de mãos dadas, em círculo, corpos físicos individuais transformando-se num corpo físico coletivo.

Canções e cânticos têm uma forte presença histórica nas lutas de resistência e libertação como forma de unir forças, vencer o desespero e ganhar coragem para lutar contra poderosos opressores. […] as religiões dos oprimidos e as teologias da libertação a que deram azo em tempos recentes possuem uma preciosa experiência através da qual os direitos humanos podem ganhar novas vozes, nova vitalidade e novas forças. Já mencionei o papel dos blues e dos espirituais na teologia negra. Outro exemplo (…) na maneira como a teologia caribenha da descolonização usa as canções redentoras de Bob Marley (Erskine, 1998) […].

A espiritualidade das/nas lutas materiais pela transformação social

(…) a distinção material/espiritual é uma distinção de base ocidental. Nas suas análises da epistemologia e da religião na África, Ellis e Haar argumentam (…) que os modelos existentes de relacionamento entre a religião e a política são baseados na presunção de uma distinção estrutural entre o mundo visível ou material e o mundo invisível, considerando que esta distinção rígida não reflete as ideias sobre a natureza da realidade prevalecentes na África. (…) dentre as características (…) marcantes das epistemologias africanas encontra-se a convicção de que os aspetos materiais e imateriais da vida não podem ser separados, embora possam distinguir-se entre si, tal (…) duas faces de uma moeda (…).

Esta nota (…) pode ajudar-nos a ter um entendimento mais profundo das lutas contra-hegemônicas pelos direitos humanos. As lutas contra-hegemônicas pelos direitos humanos visam a mudança das estruturas sociais que são responsáveis pela produção sistemática de sofrimento humano injusto. São (…) materiais no sentido em que o seu ímpeto político deve dirigir-se à economia política subjacente à produção e reprodução de relações sociais desiguais (…).

(…) as lutas contra-hegemônicas pelos direitos humanos são muitas vezes de alto risco, incluindo o risco de vida, lutas contra inimigos muito poderosos e desprovidos de escrúpulos. Têm, portanto, de ser baseadas numa vontade política fortemente motivada, (…) vontade que tem de ser tanto coletiva como individual, (…) não existe ativismo coletivo sem ativistas individuais.

(…) esta vontade não poderá ser construída sem uma visão crítica (…) radical e desestabilizadora da injustiça atual e sem visões credíveis de uma sociedade alternativa melhor. Nos últimos dois séculos, dominaram duas visões muito fortes de uma tal sociedade alternativa: o socialismo e a libertação do colonialismo. Estas (…) estavam (…) relacionadas com duas visões críticas igualmente fortes das sociedades contemporâneas: a crítica anticapitalista e a crítica anticolonial. […] O secularismo moderno impediu a religião de ter qualquer participação significativa nestas visões. (…) no mundo cristão, a religião institucionalizada fez as pazes com as estruturas de poder existentes, por mais injustas, sequestrou a força motivadora contida na espiritualidade e transformou os crentes em indivíduos em busca da salvação individual noutro mundo além da morte. Foi este tipo de religião que Marx tão acertadamente criticou.

No nosso tempo, (…) as teologias políticas progressistas têm partido da crítica da privatização moderna da religião para desenvolver novas concepções de salvação (…) que podem servir de fundamento às lutas pela transformação social, pela justiça e pela libertação. Para estas teologias a conversão a Deus implica uma conversão a um próximo necessitado. […] Reside aqui (…) a razão pela qual (…) muitos dos ativistas dos direitos humanos que pagaram com as suas vidas o empenho que puseram nas lutas pela justiça social eram adeptos da teologia da libertação em uma das suas (…) versões.

A intensidade da experiência religiosa é importante, mas o mais importante é a sua orientação existencial. É vivenciada como um propósito individual sem qualquer ligação relevante com as coisas do mundo ou, pelo contrário, é vivenciada como uma forma de partilhar com os outros a visão transcendental de um Deus sofredor que se manifesta nos povos sofredores deste mundo injusto?

[Foto: Landless Workers Movement (MST — Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra)]

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Se Deus fosse um ativista dos direitos humanos [Capítulo 4 – Parte final]

SANTOS, Boaventura de Sousa. Os direitos humanos na zona de contato das teologias políticas. In: _______ Se Deus fosse um ativista dos direitos humanos [livro eletrônico]. 1. ed. São Paulo: Cortez, 2014, p. 46-50.

São possíveis outros direitos humanos?

(…) trata-se de um amplo conjunto de zonas de contato, e as assimetrias de poder no seu interior são óbvias. […] O que há de novo é (…) o âmbito e a intensidade dos fluxos na zona de contato e (…) novas formas de medo e resistência. Estes (…) são responsáveis pela fragilidade discursiva e prática dos direitos humanos nas zonas de contato. Quanto mais fortes são as perguntas que se suscitam, mais claramente se revela a fraqueza da resposta dada pelos direitos humanos.

Isto não significa que os direitos humanos devam ser descartados. […] só reconhecendo as debilidades (…) dos direitos humanos é possível construir a partir deles, mas também para além (…), ideias e práticas fortes de resistência. Esta reconstrução vai permitir que os direitos humanos se tornem um instrumento de luta, resistência e alternativa, ainda que limitado. […] (…) de uma perspectiva ético-política, as diferentes turbulências refletem diferentes dimensões da injustiça global constitutiva da ordem imperial na sua fase mais recente: injustiça socioeconômica, injustiça cognitiva (incluindo a injustiça epistêmica, sexual, racial e religiosa) e a injustiça histórica. (…) as diferentes formas de injustiça social global não têm existência independente e (…), em cada uma delas, todas (…) estão presentes. […]

A injustiça cognitiva decorre do confronto, (…) da ação e da interpretação, entre paradigmas culturais, princípios éticos e formas de racionalidade (…). A justiça cognitiva global apela a um novo relacionamento capaz de criar um cosmopolitismo vernáculo de baixo para cima. (…) uma nova relação, entre raças, sexos, tipos de saber e modos de ser. A fragilidade dos direitos humanos, (…) da injustiça cognitiva global, decorre (…) de as concepções e práticas dominantes dos direitos humanos serem, elas próprias, produtoras de injustiça cognitiva. (…) não pelos seus pressupostos serem ocidentais, mas pelo modo unilateral como, com base neles, se constroem pretensões universais abstratas. (…) a solução não é o relativismo, mas (…) um novo relacionalismo.

A injustiça histórica está (…) relacionada com a injustiça cognitiva, mas distingue-se dela por se centrar nas teorias da história que produziram uma distribuição injusta das possibilidades e potencialidades do passado, do presente e do futuro. Corrigir a injustiça histórica significa (…) reparação, alternativas ao desenvolvimento capitalista, descolonização das relações entre Estados, (…) das relações entre povos e das relações interpessoais. Como resultado (…) foi atribuído ou imposto a muitos povos (…) um passado sem futuro por parte de outros povos (…) que reivindicaram para si um futuro sem o constrangimento do passado. Os primeiros foram obrigados a esquecer o passado e o futuro para poder viver o presente; os segundos transformaram o presente na (…) ratificação do passado e no momento (…) da ignição do pathos da transformação social futura.

Esta injustiça histórica só poderá ser relevada à luz de uma teoria e de uma prática histórica pós-colonial. E aqui reside a específica fragilidade da resposta dos direitos humanos (…). Os direitos humanos são concebidos pelo pensamento e prática (…) como a-históricos. Daí a dificuldade em serem reconhecidos os direitos coletivos de povos e grupos (…) vítimas de opressões históricas e a impossibilidade de ver nas violações dos direitos humanos (…) outras violações muito mais graves e massivas (…).

(…) a turbulência que diz respeito às relações entre o sagrado e o profano, o transcendente e o imanente, o religioso e o profano é aquela em que a colisão entre os direitos humanos convencionais e as teologias políticas é mais frontal. A fraqueza da resposta dos direitos humanos (…) decorre de três fatores. (…) os direitos humanos assumem a secularização como um fato consumado e não como um processo histórico (…). (…) ignoram o seu próprio caráter inacabado e contraditório ao defender a secularização sem questionar as concepções cristãs e ocidentais da dignidade humana que lhes estão subjacentes (…). (…) ao reduzir a (…) religião à questão da liberdade religiosa, (…) transformam a religião num recurso privado, (…) objeto de consumo desligado das relações da sua produção. Não podem (…) distinguir entre religião dos opressores e religião dos oprimidos.

(…) a reinvenção dos direitos humanos e a sua transformação num instrumento de emancipação social (…) exige um exercício de tradução intercultural (Santos, 2004; 2006a, p. 122-66) e hermenêutica diatópica (Panikkar, 1984; Santos, 1995, p. 273-78; 2006b, p. 433-70; 2014) através do qual as limitações recíprocas de concepções alternativas de dignidade humana possam ser identificadas, abrindo assim a possibilidade de novas relações e diálogos (…). A isto chamo ecologia de saberes (Santos, 2006b, p. 137-66; 2009b, p. 31-83; e 2014) (…). […] O objetivo da ecologia de saberes é ampliar a legitimidade intelectual e cultural das lutas pela dignidade humana.

Segundo as teologias políticas tradicionalistas, os direitos humanos são uma usurpação secular dos direitos de Deus. Estes direitos divinos (…) são a única fonte legítima de direitos e implicam mais deveres que direitos. (…) não é possível uma ecologia de saberes entre os direitos humanos e as teologias políticas tradicionais. Da perspectiva destas, os direitos humanos, (…) construção humana, carecem de legitimidade para (…) diálogo com uma construção divina.

(…) encontro um enorme potencial para a tradução intercultural entre os direitos humanos reconstruídos e as teologias políticas progressistas plurais (…). De acordo com estas, as políticas convencionais de direitos humanos são (…) hipocrisia política institucionalizada. (…) outras concepções de direitos humanos, (…) contra-hegemônicas e interculturais, podem (…) fortalecer ou ampliar as lutas sociais ancoradas nestas teologias. (…) o (…) Islã não aceitar uma concepção secularizada da dignidade humana ou (…) as teologias cristãs considerarem que a dignidade humana radica na imagem e na semelhança com Deus não constitui um obstáculo para que se encontrem nos seus livros e leis sagradas (…) concepções de dignidade humana que, na prática, são (…) compatíveis com a (…) de dignidade humana subjacente aos direitos humanos.

A emergência das teologias políticas teve pelo menos o mérito (…) de lançar uma nova luz sobre as limitações, peculiaridades e fragilidades das políticas dos direitos humanos convencionais. […] Esse trabalho de reconstrução e de reinvenção dos direitos humanos não é uma utopia ou um objetivo demasiado longínquo ou remoto. (…) está a ter lugar e assume formas surpreendentes. […] (…) determinam os artigos 71 e seguintes da Constituição do Equador aprovada por referendo (…) em 2008. Diz o artigo 71: “A natureza ou Pacha Mama, onde se reproduz e realiza a vida, tem direito a que se respeite integralmente a sua existência e a manutenção e regeneração dos seus ciclos vitais, estrutura, funções e processos evolutivos”. É clara a influência da cosmogonia e da ontologia indígenas nesta concepção de natureza (…).

[Arte: Regalo para la Pacha Mama (2017) por Magdalena Giesek]

Publicado em Ciência Política, Estudos sobre Religião, Estudos Sociológicos, Filosofia, Relações Internacionais, Sociologia

Se Deus fosse um ativista dos direitos humanos [Capítulo 4 – Parte III]

SANTOS, Boaventura de Sousa. Os direitos humanos na zona de contato das teologias políticas. In: _______ Se Deus fosse um ativista dos direitos humanos [livro eletrônico]. 1. ed. São Paulo: Cortez, 2014, p. 42-46.

As afinidades surpreendentes entre a globalização neoliberal e as teologias fundamentalistas

Do lado da modernidade ocidental hegemônica, podemos constatar a radicalização das opções mediante a perda das raízes. O contrato social, (…) raiz fundacional da modernidade ocidental, está a transformar-se numa opção entre muitas (…). Assim deve ser lido o movimento neoliberal de recuo (…) ao contrato social e em direção ao contratualismo individualista e possessivo. (…) o movimento fundacional do estado de natureza para a sociedade civil (…) revela-se afinal reversível.

Grupos sociais cada vez mais vastos que são expulsos do contrato social (pós-contratualismo) ou que a ele não têm sequer acesso (pré-contratualismo) tornam-se populações descartáveis. Sem direitos mínimos de cidadania são, de fato, lançados num novo estado de natureza, a que chamo fascismo social (2006b, p. 295-315).

Na realidade – a realidade dos trabalhadores desempregados ou precários, dos trabalhadores mal remunerados, dos imigrantes, das famílias e dos estudantes endividados, das classes médias empobrecidas –, quanto maior é a autonomia abstrata para selecionar entre opções, menor é a capacidade concreta para fazê-lo.

Do lado das culturas e sociedades que foram (…) colonizadas (…) e, em particular, nas culturas e sociedades islâmicas, está em curso um processo aparentemente inverso, o da radicalização das raízes (especialmente fortes no caso dos diversos fundamentalismos), a busca de uma identidade originária e de um passado glorioso (…) forte e vivo para (…) um futuro alternativo. (…) as opções deixam de ter qualquer sentido na medida em que a única alternativa consiste em recorrer ao que não tem alternativa, a raiz fundadora.

Apesar das muitas diferenças entre os dois processos (…) da equação entre raízes e opções, nas sociedades ocidentais e nas (…) islâmicas, existem (…) semelhanças (…). (…) os fundamentalismos cristãos e os fundamentalismos islâmicos partilham o mesmo medo abissal do futuro embora o expressem de formas distintas. […] O Islã fundamentalista exorciza o futuro com o recurso radical e politizado ao passado, convertendo-o num passado todo-poderoso, (…) raiz que tudo funda e (…) não permite opções. […] O mesmo acontece com as teologias integristas cristãs (…). O seu medo do futuro transmutou-se em um mal-estar radical (em casos extremos, mesmo suicida) perante a intolerável repetição do presente. (…) Walter Benjamin (1977), recorre à repetição radical do presente como única substituição possível do futuro (o fim da história em muitas versões).

Uma segunda semelhança reside na polarização entre processos autoritários de despolitização e de repolitização (…). A instrumentalização das questões de princípio é (…) observável nas teologias fundamentalistas islâmicas. A politização do passado implica a instrumentalização dos atributos considerados questões de princípio e, como tal indisponíveis, (…) a sharia. O Estado moderno destina-se a ser destruído ou ocupado e administrado de acordo com a lógica da regência religiosa.

No caso da globalização neoliberal, (…) celebrada (…) pela maioria dos fundamentalismos cristãos, a erosão do contrato social como raiz torna possível o uso instrumental de todos os princípios que dele decorrem (…). Os sintomas desta instrumentalização são múltiplos: níveis extremos de desigualdade social (…); concentração extrema de poder que esvazia o processo democrático e manipula a representação democrática (…); preços de mercado para todos os valores sociais por meio dos quais a economia de mercado, socialmente útil, desliza para uma sociedade de mercado moralmente repugnante; a erosão dos direitos sociais e econômicos e a emergência de uma sociedade incivil ou do fascismo social que a acompanha; a (…) duplicidade de critérios na avaliação dos desempenhos dos direitos humanos; o Estado de exceção permanente, usando pretextos (…) como a guerra contra o terrorismo ou a austeridade econômico-financeira para controlar os cidadãos, promulgar leis secretas (…), criminalizar o protesto social e erodir os direitos civis e políticos (…) cidadania se tornar indistinguível da sujeição.

Dada a instrumentalização radical a que estão (…) sujeitos, os direitos humanos tornam-se simultaneamente banais e estranhos no interior da própria modernidade ocidental. (…) a superioridade da modernidade ocidental só se sustenta (…) na negação de tudo o que ofereceu historicamente como justificação (…). A instrumentalização do primado do direito e dos direitos humanos é (…) patente no caso do fundamentalismo cristão e das teologias integristas. A legitimidade estruturante das sociedades provém da lei de Deus, não das leis humanas. A total indisponibilidade do direito como raiz torna-se um disfarce para a sua livre instrumentalização como opção.

Tanto na versão hegemônica da modernidade ocidental, a globalização neoliberal, como nas teologias políticas fundamentalistas, o autoritarismo alimenta-se do encolhimento do espaço público e da crise do Estado, reforçando-os. […] (…) apesar das muitas diferenças (…) a globalização neoliberal e as teologias fundamentalistas islâmicas e cristãs revelam dinâmicas destrutivas (…) por meio de novos extremismos.

A violência sacrificial significa a imolação do que é mais precioso (…) com o propósito de o salvar. No caso do fundamentalismo islâmico, a violência sacrificial é (…) contra o que é considerado (…) uma humilhação e opressão intoleráveis por parte do capitalismo ocidental e interesses imperialistas. No tocante às formas mais agressivas da globalização neoliberal (imperialismo e neocolonialismo), destrói-se a vida para “salvar” a vida; violam-se os direitos humanos para “defender” os direitos humanos; eliminam-se as condições para a democracia de modo a “salvaguardá-la”.

As duas formas de violência sacrificial, a islâmica e a ocidental, embora similares, não são simétricas. A verdade é que (…) ambas são justificadas como defensivas. Mas se os desequilíbrios extremos de poder destrutivo forem levados em conta, é difícil não ver a violência sacrificial islâmica como defensiva e a violência sacrificial de base ocidental como agressiva.

De fato, só uma profunda redistribuição social, política e cultural do passado e do futuro permitiria revelar que os dois dramas estão a olhar-se um ao outro no mesmo espelho. Essa redistribuição significaria o cumprimento da justiça histórica e pós-colonial (…).

A turbulência entre o sagrado e o profano, o religioso e o secular, o transcendente e o imanente

Esta turbulência mostra, mais dramaticamente que qualquer outra, as clivagens entre os direitos humanos e a modernidade ocidental (…) e as teologias políticas e, em particular, as (…) fundamentalistas (…).

[…] As teologias políticas fundamentalistas (ou integristas) entendem a turbulência (…) como decorrente (…) de que ainda nem todo o profano foi reduzido ao sagrado, todo o secular ao religioso, todo o imanente ao transcendente. A religião deve ser onipresente e permear todas as dimensões da vida (…). Este entendimento da religião, (…) consensual no Islã, é convertido pelo islamismo político fundamentalista na arma política mais decisiva. O Islã fundamentalista político é um projeto geopolítico que se afirma como teopolítico. A sua universalização ocorre por meio da universalização da religião islâmica. […] O ressurgimento deste tipo de teologia política (…) tornou-se visível a partir da revolução iraniana de 1979 (…).

No caso da modernidade ocidental, a religião foi, desde cedo, transferida do espaço público para o (…) privado, um processo histórico conhecido por secularização. O seu momento fundador pode ser (…) 1648, com o Tratado de Westphalia, que pôs fim às guerras religiosas, conhecidas por Guerra dos Trinta Anos. A separação entre o poder espiritual da Igreja e o poder temporal do Estado moderno foi um processo (…) muito complexo que assumiu diferentes formas em diferentes (…) regiões do mundo e períodos históricos. Não impediu (…) a religião (…) a serviço do colonialismo como parte (…) da missão civilizadora.

(…) para o Iluminismo, a religião foi (…) um anacronismo, (…) sua remissão para o espaço privado (…) como uma fase de transição para o seu total desaparecimento, por outro lado, o poder do Estado moderno constituiu-se através de um complexo jogo de espelhos com o poder sagrado da Igreja, assumindo muitas das suas características sacramentais e rituais (Marramao, 1994, p. 23). Isso para não falar dos “valores cristãos” que, através das teorias do direito natural do século XVII em diante, tiveram um impacto decisivo na concepção dos direitos humanos. […] O secularismo e a religião cristã fizeram parte do mesmo “pacote” colonial. Foram (…) parceiros próximos na imposição da monocultura do conhecimento científico ocidental, através do qual tanto epistemicídio (supressão de conhecimentos indígenas, locais, camponeses e outros conhecimentos rivais não ocidentais) foi cometido (Santos, 2000; 2009b).

Um dos paradoxos desta concepção é (…) a influência cristã coexistir com o direito da liberdade religiosa. Carl Schmitt defendeu efetivamente na sua obra Teologia Política que todos os conceitos do poder do Estado eram versões secularizadas de conceitos teológicos. […]

(…) talvez por esta (…) razão, o destino da religião na modernidade ocidental ficou intimamente ligado ao da distinção entre espaço público e espaço privado. A estabilização da religião foi o correlato da estabilização, por via da religião, das opressões e dos medos no espaço privado (…). (…) este espaço nunca foi ele próprio estabilizado, quanto mais não seja por se encontrar intimamente ligado às transformações em curso no espaço público. A amplitude da esfera pública, (…) o domínio do político, foi desde sempre condicionada pela intensidade da democracia e das políticas públicas (especialmente das políticas sociais) do Estado democrático.

(…) a moderna distinção entre esfera pública e (…) privada tem vindo a ser posta em questão. (…) foi questionada pelos movimentos sociais, sobretudo feministas e de gays e lésbicas, para os quais, contra o entendimento liberal, o espaço privado é também político e, por isso, devia ser objeto de debate público e de decisões políticas. […] Assim, o espaço privado deixou de ser o limite do político para se transformar num dos campos do político. Paradoxalmente, esta expansão da esfera privada ocorreu em simultâneo com a contração da esfera pública.

À medida que a esfera pública encolhe – (…) mais e mais dimensões da vida coletiva são despolitizadas –, a esfera privada, transformada no fundamento da autonomia política do indivíduo, expande-se simbólica e materialmente. A religião emerge como uma das características (e um dos motores) principais desta expansão. A fragilização das redes de segurança criadas pelo Estado Providência torna o indivíduo vulnerável ao medo, à insegurança e à perda de esperança. A religião sempre prosperou nessa vulnerabilidade, como bem mostraram (…) Feuerbach e Marx (Feuerbach [1841], 1957; Marx [1843], 1964).

Estas condições políticas e sociais têm sido terreno fértil para as teologias políticas conservadoras e (…) ataques radicais à distinção público/privado, especialmente no caso das teologias fundamentalistas para as quais o tempo e o espaço sagrados têm um domínio absoluto sobre o tempo e o espaço profanos. […] Capitalizando na crise de legitimidade do Estado e na (…) crise dos valores republicanos, as teologias políticas conservadoras são simultaneamente a causa e a consequência da crise do projeto histórico da secularização.

[Arte: Las Meninas (1656) por Diego Velázquez]

Publicado em Ciência Política, Estudos sobre Religião, Estudos Sociológicos, Filosofia, Relações Internacionais, Sociologia

Se Deus fosse um ativista dos direitos humanos [Capítulo 4 – Parte II]

SANTOS, Boaventura de Sousa. Os direitos humanos na zona de contato das teologias políticas. In: _______ Se Deus fosse um ativista dos direitos humanos [livro eletrônico]. 1. ed. São Paulo: Cortez, 2014, p. 41-42.

A turbulência entre raízes e opções

A segunda dimensão da turbulência na zona de contato com impacto nos direitos humanos é a turbulência entre raízes e opções. Esse tipo (…) permeia todas as zonas de contato entre os direitos humanos e as teologias políticas (…). […] Esta turbulência particular levanta uma terceira dimensão da justiça no coração da zona de contato, para além da justiça socioeconômica e da justiça cognitiva: a justiça histórica, pós-colonial.

A construção social da identidade e da mudança na modernidade ocidental é baseada numa equação entre raízes e opções. […] O pensamento de raízes é o pensamento de tudo (…) que é profundo, permanente, singular e único, (…) que dá segurança e consistência; o pensamento das opções é o pensamento de tudo (…) que é variável, efêmero, substituível e indeterminado do ponto de vista das raízes.

As raízes são entidades de grande escala. Como sucede na cartografia, cobrem vastos territórios simbólicos e longas durações históricas, mas não permitem cartografar em detalhe e sem ambiguidades as características do terreno. Ao contrário, as opções são entidades de pequena escala. Cobrem territórios confinados e durações curtas, mas (…) com o detalhe necessário para permitir calcular o risco da escolha entre opções alternativas. Devido a esta diferença de escala, as raízes são únicas, enquanto as escolhas são múltiplas. […] (…) não há a opção de não pensar em termos de raízes e opções.

A eficácia desta equação assenta numa dupla astúcia. Em primeiro (…), a astúcia do equilíbrio entre o passado e o futuro. […] Trata-se de uma astúcia porque (…) tanto o pensamento das raízes como o das opções são pensamentos do futuro. (…) o passado permanece largamente sub-representado. Esta sub-representação não significa esquecimento. (…) pode manifestar-se como “memória excessiva” (…) num exercício de melancolia que, em vez de recuperar o passado, neutraliza o seu potencial de redenção ao evocar o passado em vez de lutar contra as expectativas fracassadas.

A segunda astúcia é a (…) do equilíbrio entre raízes e opções. (…) apresenta-se como simétrica: equilíbrio entre raízes e opções e equilíbrio na distribuição das opções. Efetivamente, não é assim. (…) o predomínio das opções é total. […] O equilíbrio é inatingível. Consoante o momento histórico ou o grupo social, as raízes predominam (…) ou, ao contrário, as opções predominam sobre as raízes. O jogo é sempre das raízes para as opções e das opções para as raízes (…). (…) não existe equilíbrio ou equidade na distribuição social das opções. Pelo contrário, as raízes (…) são (…) constelações de determinações que, ao definir o campo das opções, definem também os grupos sociais que lhes têm acesso e os que delas estão excluídos. […]

A sociedade medieval não é necessariamente uma sociedade estática, mas evolui segundo uma lógica de raízes. Ao contrário, a sociedade moderna vê-se como (…) dinâmica que evolui segundo uma lógica de opções. Prova-o ao conceber como raiz fundadora o contrato social e a vontade geral que o sustenta. O contrato social é a metáfora fundadora de uma opção radical – a de deixar o estado de natureza para formar a sociedade civil –, que se transforma em raiz a partir da qual quase tudo é possível, tudo exceto voltar ao estado de natureza. A contratualização das raízes é irreversível, e este é o limite da reversibilidade das opções. […] Esta autodescrição da modernidade ocidental levou-a a conceber não só a sociedade medieval, mas todas as outras culturas e sociedades como baseadas em raízes e concomitantemente na supremacia do primordialismo, status, identidade, comunidade, etnicidade e nação étnica, omitindo o fato de que, em todas as sociedades, a lógica de raízes opera em articulação com a lógica de opções.

(…) a modernidade ocidental procedeu a uma redistribuição brutal do passado, do presente e do futuro dos povos e das culturas na zona de contato. Reservou para si o futuro e permitiu que coexistissem com ele vários passados, desde que todos convergissem num mesmo futuro, o seu. (…) distribuiu aos povos e às culturas dominados passados neutralizados, sem capacidade de produzir futuros alternativos ao da modernidade ocidental. A descolonização e as independências (…) não significaram a ruptura com esta teoria da história. (…) a zona de contato continuou a ser uma zona colonial, apesar de ter terminado o colonialismo político.

[Arte: The Missionary, 1912 por Emil Nolde]

Publicado em Antropologia, Ciência Política, Estudos sobre Religião, Estudos Sociológicos, Filosofia, Relações Internacionais, Sociologia

Se Deus fosse um ativista dos direitos humanos [Capítulo 3]

SANTOS, Boaventura de Sousa. O caso do fundamentalismo cristão. In: _______ Se Deus fosse um ativista dos direitos humanos [livro eletrônico]. 1. ed. São Paulo: Cortez, 2014, p. 33-37.

Capítulo 3

O caso do fundamentalismo cristão

Se o fundamentalismo islâmico levanta questões (…) relacionadas com a rejeição da modernidade ocidental, a interpretação estática da shari’a (…), a incompatibilidade com regimes democráticos e com os direitos das mulheres, o mesmo acontece, ainda que de formas diversas, com o fundamentalismo cristão, sobretudo protestante, reemergente nos anos 1980, nos Estados Unidos da América (mas também na América Latina, na África e na Ásia) e conhecido como “a Nova Direita Cristã”. […] Segundo Casanova, a tendência dominante do protestantismo fundamentalista reestabeleceria (…) “a hegemonia cultural do protestantismo evangélico [para] recristianizar a constituição, a república, e a sociedade civil americana” (1994, p. 159). O argumento central destes movimentos (…) é que a sociedade moderna liberalizou a família, a educação e o aborto, o que é considerado uma traição aos valores cristãos. […] Preconizam (…) o reenvio para o domínio privado de questões que os movimentos de emancipação, nomeadamente, das mulheres e dos homossexuais, remeteram para o espaço público. Segundo Falwell: “Devemos insurgir-nos contra a Lei de igualdade de direitos, a revolução feminista, e a revolução homossexual” (Falwell, 1980, p. 19). E pugnam (…) pela cristianização das estruturas do Estado, como, por exemplo, as da educação (…). […] Em 1984, Richard Viguerie, (…) da Nova Direita Cristã, afirmou que “os conservadores devem trabalhar para o dia em que [eleições presidenciais nos EUA] seja entre um Democrata conservador e um Republicano conservador. Aí poderemos ir pescar ou jogar golfe no dia da eleição sabendo que não importa se vence o Democrata ou o Republicano…” (Bruce, 1990, p. 479).

(…) a recristianização da sociedade americana passa também por uma articulação entre aquela que é considerada a ética cristã da responsabilidade e a economia de mercado. Gary North, presidente do Instituto para a Economia Cristã (…), apresenta as intenções do instituto (…). […]

North considera que as vozes que mais se fizeram ouvir nos últimos cinquenta anos foram aquelas que defenderam um Cristianismo social, o qual (…) é “francamente a favor da intervenção governamental”. Na sua opinião (marcadamente teocrática), os cristãos conservadores remeteram-se ao silêncio […]

A teologia da prosperidade (“Gospel prosperity”) constitui outra forma de legitimar religiosamente a economia capitalista e as desigualdades sociais daí resultantes. Partindo do pressuposto de que Deus quer que o ser humano seja próspero, considera que este é incapaz de o ser por si próprio, sendo Deus o princípio legitimador da riqueza e do enriquecimento. […]

(…) o Estado social é considerado uma tentativa sacrílega de substituir o papel regulador de Deus e uma forma de tornar os indivíduos “preguiçosos”. […]

Murray chama a atenção para o impacto econômico destes movimentos fundamentalistas (carismáticos e pentecostais), também designados como “renovaristas” (“renewalists”), tendo em mente o seu papel no reforço da hegemonia neoliberal e a sua expansão à escala global: “Com mais de 500 milhões de crentes em todo o mundo, o Renovarismo representa um dos movimentos de fé em crescimento mais rápido em todo o planeta – especialmente entre as massas populares em diferentes regiões do mundo em desenvolvimento” (2012, p. 266). (…) este fenômeno gerou um grupo demográfico com ligações transnacionais que partilha a mesma concepção do mundo e as (…) formas de ativismo dentro dos Estados, entre diferentes Estados, sociedades e mercados. (…) não só estruturam um mercado financeiro global, pelo fato de fazerem circular financiamentos de umas igrejas e comunidades para outras em nível interno, externo e global, como têm criado (…) microcrédito orientados para apoiar o empreendedorismo cristão e “associações cristãs de negócios de nível regional, nacional e global (…) e promover a sua influência sobre os mercados” (Murray, 2012, p. 270). Além disso, estes movimentos também influenciam o mercado de trabalho, de forma direta […].

Existe também uma vertente católica de legitimação divina do capitalismo. Embora o Papa João Paulo II (1991), a par de uma crítica feroz ao marxismo, tenha feito uma forte crítica ao capitalismo como sistema econômico, sobretudo pelo consumismo e materialismo, alguns autores católicos vêm tecendo elogios ao capitalismo como sendo o sistema que dá mais oportunidades aos pobres.

A expansão dos movimentos fundamentalistas cristãos por todo o mundo, quer por meio da missionação proselitista, quer por meio dos recursos eletrônicos, tem um impacto político importante. Ao expandir-se, estes (…) também se “indigenizam”. No Brasil, (…) o neopentecostalismo ou terceira onda do pentecostalismo é um capítulo do evangelicalismo que congrega denominações oriundas do pentecostalismo clássico ou (…) das igrejas cristãs tradicionais (batistas, metodistas etc.). Uma boa parte destes movimentos possui ou utiliza canais de televisão, rádio, jornais, editoras e portais ou páginas web próprias. (…) os neopentecostais formam a segunda maior bancada do Congresso Nacional do Brasil (…), o que explica que nas três últimas eleições o debate eleitoral tenha estado centrado na questão do aborto, e não em temas como a economia, a habitação ou a educação, ou que Marco Feliciano, um pastor da Igreja Evangélica Assembleia de Deus, se tenha tornado presidente da Comissão Parlamentar para os Direitos Humanos e proposto uma lei controversa conhecida como “cura gay”, que, caso fosse aprovada, permitiria aos psicólogos tratar a “homossexualidade” como uma doença.

A extraordinária difusão do fundamentalismo cristão é um fenômeno de cultura de massas, não de cultura popular. Esta última, tão importante para as teologias da libertação, assenta na valorização do autêntico e autóctone, do que corresponde a uma identidade específica, contextualizada no tempo e no espaço. A densidade cultural e vivencial desta autenticidade exige um esforço de tradução intercultural da parte da mensagem e dos mensageiros e mensageiras cristãos para que a evangelização não surja como um ato de violência pura e dura. Ao contrário, as correntes fundamentalistas, sobretudo as neopentecostais, transformam a sua performance no único contexto relevante e para ela congregam o estranho e o familiar, o inteligível e o ininteligível, o ancestral e o hipermoderno, como se fossem componentes homogêneos do mesmo artefato religioso.

[Eu apenas gostaria de acrescentar que o livro foi escrito antes de 2014, provavelmente em 2013, pois ele cita as manifestações contra o aumento da tarifa de ônibus, depois para por aí, portanto a obra não abarca o exponencial crescimento e o abocanhamento dos cristãos fundamentalistas neopentecostais evangélicos no Brasil, especialmente após 2016, golpe de estado contra a Presidenta Dilma Rousseff, e, a partir de então, não era mais um simples Marcos Feliciano que incomodava na Comissão de Direitos Humanos na Câmara propondo a “cura gay” (a qual só foi apoiada por um bando de loucos + imbecis, nas definições de Hegel em Filosofia do Direito, mas por nenhuma pessoa sensata, tendo estudado ou não), mas foi muito além, interpenetrando não apenas a esfera das metrópoles urbanas, mas avançando e tomando um lugar que há séculos foi da Igreja Católica na evangelização dos índios, o que destruiu e destrói a cultura nativa deles; além do mais, avançaram sobre a África, pois a maioria dos bilionários bispos das Igrejas Evangélicas do Brasil possuem passaportes diplomáticos, inclusive dados na época dos governos petistas (não há como negar os fatos), e eles podem com dinheiro, retirando, através do dízimo, o pouco que alguns povos dos países mais vulnenáreis africanos tem, assim como fazem com as populações mais pobres do país, de periferias, vilas e cidades pequenas do interior. Mas foram mais longe ainda e nisto eles coincidem exatamente com a ideologia proposta lá nos anos 1980 pelos reemergentes fundamentalistas protestantes cristãos, que é a “recristianização da estrutura do Estado”, avançando principalmente sobre setores que envolvem as tradições e os costumes que as religiões costumam intervir, como é o caso da Educação, do ensino religioso ou da oração nas escolas públicas etc., e eles avançaram tanto neste projeto que engajaram-se todos em Bolsonaro para elegê-lo em 2018 e, já no ano seguinte, o governo estava lotado de Ministros e Ministras cristãos protestantes fundamentalistas evangélicos das mais diferentes religiões; o próprio Presidente nunca se decidiu qual era a sua religião de fato, ele tenta agradar a todas, mas, tenho certeza, está agradando somente os fundamentalistas mais radicais, pelo menos eu preciso acreditar nisto e precisamos lutar contra a imersão das teologias políticas na política em si, na política como ciência e na política prática do Executivo, do Legislativo e demais instituições, não é possível que séculos e séculos em prol do secularismo sejam jogados na lata do lixo em razão de uns radicais que tentam impor seus modos de vida religiosos à toda uma nação.]

[…] Isto é particularmente notório (…) na influência exercida pela Nova Direita na política e na legislação norte-americanas (…): George W. Bush foi eleito com o apoio massivo destes setores (ainda que também com o apoio de católicos tradicionalistas(…)). Nas eleições para o seu mandato de 2000-2004, “os protestantes evangélicos foram os maiores apoiantes do presidente Bush nestas eleições, dando-lhe quase nove em cada dez dos seus votos” (Green, 2009, p. 320). Davidson & Harris (2006) não hesitam em considerar os cristãos teocráticos nos Estados Unidos como uma “nova forma de fascismo” (…).

A questão dos direitos das mulheres (…) constitui um critério relevante para a identificação do fundamentalismo cristão. Na Igreja Católica, segundo Casanova, o aggiornamento do Concílio Vaticano II operou uma transformação que “assumiu o caráter de uma reforma oficial, relativamente uniforme e rápida vinda de cima que encontrou uma fraca contestação e pôde ser facilmente aplicada ao mundo católico, gerando como resultado uma notável homogeneização da cultura católica pelo menos entre as elites” (2005, p. 101). […] Do mesmo modo, a Igreja Católica não hesitou em associar-se aos governos mais reacionários de países islâmicos para tentar contrariar as formulações da Plataforma de Pequim relativas aos direitos reprodutivos das mulheres.

(…) torna-se evidente que os desafios colocados pelas teologias políticas aos direitos humanos e as formas como estes se relacionam com processos contraditórios de globalização requerem uma análise mais específica e diferenciadora. […]

[Fotografia: Templo do Salomão, da Igreja Universal do Reino de Deus, em São Paulo. Foto: Divulgação / Igreja Universal]

Publicado em Antropologia, Ciência Política, Estudos sobre Religião, Estudos Sociológicos, Filosofia, Sociologia

Se Deus fosse um ativista dos direitos humanos [Capítulo 1 – Parte IV]

SANTOS, Boaventura de Sousa. A globalização das teologias políticas. In: _______ Se Deus fosse um ativista dos direitos humanos [livro eletrônico]. 1. ed. São Paulo: Cortez, 2014, p. 23-27.

Teologias tradicionalistas e progressistas

As teologias tradicionalistas intervêm na sociedade política defendendo, como a melhor solução para o presente, as regulações sociais e políticas do passado. Fazem uso dos dados teológicos de modo a enfatizar as ideias políticas que reconduzem a autoridade política à autoridade religiosa com o propósito de proporcionar à política a estabilidade e imunidade que a religião possui. (…) seguindo o pensamento de Moosa, seria possível incluir (…) os “salafitas puritanos”, ainda que o autor considere que a mesma atitude se verifica “entre os modernistas, revivalistas e (…) tradicionalistas de diferentes quadrantes” (…). Afirmam, como condição prévia:

o nosso entendimento do islã deve ser completamente despido de todos os acréscimos históricos e culturais, todas as interpretações e elaborações passadas devem ser abandonadas. O credo deste grupo é o retorno ao Corão, e para alguns, o envolvimento com uma ínfima parte da tradição profética autêntica, que incrivelmente conduzirá à recuperação do “verdadeiro” islã (2008, p. 568).

No Cristianismo, uma teologia tradicionalista significa (…) que a distinção entre a religião dos oprimidos e a (…) dos opressores, não possa ser aceite. (…) é visto como a religião do opressor – uma religião espiritualista, burguesa, sem posição crítica em face das injustiças estruturais (Metz, 1980) – (…) o padrão de experiência religiosa legítima, ao mesmo tempo que a religião dos oprimidos é estigmatizada ou ignorada. […]

Pelo contrário, as teologias cristãs progressistas fundam-se na distinção entre a religião dos oprimidos e a (…) dos opressores e criticam severamente a religião institucional como sendo a religião dos opressores. Uma vez que (…) não é legítimo separar a análise da religião da análise das relações de produção, a religião dos opressores é, na modernidade ocidental, uma “religião do capitalismo”. No caso das teologias da libertação, a crítica do capitalismo e da sua “idolatria do mercado” (Assmann e Hinkelammert, 1989; Sung, 2011b) – muito influenciada pelo Marxismo, (…) na sua versão latino-americana – está no centro de uma renovação teológica que incide sobre os pobres e oprimidos, considerados como uma entidade coletiva geradora de libertação. […]

A teologia da libertação concebe a fé como libertadora (…) em que possa contribuir para a libertação estrutural e coletiva dos pobres. Estes constituem tanto o objeto desta teologia (a sua preocupação central) como o seu sujeito (visto que são protagonistas da história e da sua interpretação) e o lugar social a partir do qual a teologia deverá ser enunciada. (…) a categoria do “pobre” se desdobra contextualmente, abrangendo as vítimas do capitalismo e os povos oprimidos pelas potências coloniais e pós-coloniais (afrodescendentes, indígenas), (…) o “melting pot” resultante de encontros (Dussel, 2009), mas também de violações de culturas e de corpos (Gonzalez, 2004).

Por isso, estas teologias têm-se aberto cada vez mais a uma perspectiva não só ecumênica, como também inter-religiosa. […] (…) o diálogo e a teologia inter-religiosos resultam da percepção de que a dimensão global dos problemas que (…) se colocam à humanidade exigem respostas (…) à escala global. Contudo, (…) são críticas de projetos globais que se constituam como novas formas de poder religioso sobre o espaço público. (…) diz Tamayo: “A libertação necessita de todas as religiões, de todas as culturas, para que possa ser integral. O matrimônio entre a libertação, as culturas e as religiões não é um matrimônio ‘por poderes’” (2005, p. 12). O projeto de teologia intercultural, defendido (…) por Fornet-Betancourt (2006), consiste na construção de uma teologia da libertação (…) assente na crítica da assimetria epistemológica existente, resultante da globalização neoliberal e da primazia concedida ao conhecimento científico-técnico ocidental. […]

Segundo as teologias progressistas cristãs, a separação do espaço público e privado funcionou sempre como forma de domesticar ou neutralizar o potencial emancipador da religião, (…) que contou com a cumplicidade e (…) com a participação ativa das teologias conservadoras. […] (…) “a fé dos cristãos é uma práxis na história e na sociedade” (Metz, 1980, p. 73). […]

As teologias cristãs progressistas insistem (…) na história do movimento sociológico gerado por Jesus. (…) este movimento mostra que a religião não emerge do domínio privado. Para o bem e para o mal, a religião nunca abandonou o domínio público (…). No que respeita às teologias pós-coloniais, (…) versão específica das teologias progressistas, a fé é considerada (…) uma instância crítica dos imperialismos políticos reiterados pelas formas imperialistas de Cristianismo e (…) uma afirmação da positividade da hibridez, dos “espaços intermédios”. […]

Algumas teologias progressistas islâmicas, das quais Ali Shariati (1980, 2002) pode ser considerado (…) destacado, tecem críticas (…) radicais ao capitalismo ocidental (…), considerando-o uma fonte de desumanização e exploração. Shariati considera que no dealbar de uma nova era, pós-capitalista e pós-comunista, o ser humano encontraria um novo caminho de salvação, no qual o Islã desempenharia um papel fundamental, (…) por oferecer uma interpretação espiritual do universo como por constituir um novo humanismo. (…) o Islã teria (…) de se libertar “dos efeitos de séculos de estagnação, superstição, e contaminação, (…) apresentado como uma ideologia viva” (1980, p. 94). (…) Dabashi (2008) equaciona uma teologia da libertação islâmica que passa pela libertação do imperialismo (…) e (…) uma abertura cosmopolita, dialogante com as diversas culturas.

As teologias feministas têm um papel (…) relevante na formulação das teologias progressistas, tanto nas versões cristãs como nas islâmicas. (…) criticam a associação da religião e das suas estruturas hierárquicas à ordem patriarcal e à subsequente legitimação do patriarcalismo e da submissão das mulheres. Reconstroem a teologia e a leitura dos textos fundacionais com base nas experiências emancipatórias das mulheres no interior das religiões.

As distinções entre diferentes tipos de teologia (…) permitem ver que as relações entre os fenômenos religiosos emergentes, as formas de globalização e os direitos humanos não são unívocas ou monolíticas. No tocante à globalização, todas as teologias políticas são não hegemônicas, uma vez que são marginais, (…) em relação à eficácia exclusiva e exclusivista atribuída às instituições seculares que sustentam a globalização neoliberal, (…) em relação à natureza predominantemente secular das lutas contra ela. (…) as teologias pluralistas progressistas contêm um forte potencial contra-hegemônico. Ao reconhecer a (…) autonomia do espaço secular e ao fazer um julgamento crítico das injustiças que nele ocorrem, a religião dos oprimidos pode ser (…) fonte de articulação entre (…) movimentos religiosos e seculares que lutam por uma sociedade mais justa e mais digna.

[Arte: Desconhecido, capa do “Directorio General para la catequesis”, 2020]

Publicado em Ciência Política, Estudos sobre Religião, Estudos Sociológicos, Filosofia, Relações Internacionais, Sociologia

Se Deus fosse um ativista dos direitos humanos [Capítulo 1 – Parte II]

SANTOS, Boaventura de Sousa. A globalização das teologias políticas. In: _______ Se Deus fosse um ativista dos direitos humanos [livro eletrônico]. 1. ed. São Paulo: Cortez, 2014, p. 19-20.

A resolução ocidental da questão religiosa

[…] Tal como no caso dos processos de globalização que identifiquei acima, não estamos perante um fenômeno novo [a reivindicação da religião na vida pública]. […] É novo apenas na medida em que ocorre depois de séculos de dominação colonial e neocolonial, e de imposição global do paradigma cultural e político da modernidade ocidental. (…) este paradigma alcançou uma resolução sem precedentes (…): por um lado, os valores do Cristianismo foram reconhecidos como “universais”; e, por outro, o Cristianismo institucional foi relegado para o governo da esfera privada, (…) das decisões autônomas e voluntárias dos indivíduos. Esta resolução ocidental da questão religiosa tem vindo a ser questionada (…), incluindo o mundo ocidental, e traduz-se na reivindicação do papel da religião na vida pública.

Não é aqui o lugar para analisar os equívocos da resolução ocidental da questão religiosa: os valores selecionados e os (…) excluídos (o que são exatamente os valores cristãos?); a distância entre os termos da resolução e a sua prática (a “resolução” aplicou-se igualmente às diferentes religiões?); a complexa interpenetração das esferas pública e privada (em que medida a fuga escatológica para um mundo outro é uma resposta às condições injustas do nosso mundo social e político?); e – o maior equívoco – saber até que ponto o Cristianismo institucional (especialmente a Igreja católica) aceitou ou apenas tolerou (…). O que importa aqui salientar é que a distinção entre o espaço público e o (…) privado e o confinamento da religião a este último é hoje um elemento central do imaginário político de raiz ocidental, tanto no plano da regulação social como no da emancipação social. […] (…) o mesmo sucede com os direitos naturais do século XVIII e com os seus sucessores (…) e Declarações de Direitos Humanos (…).

[…] A modernidade capitalista ocidental gerou muitos localismos globalizados, e a resolução da questão religiosa é talvez o mais frágil de todos. Nas regiões para onde foi transplantada, os territórios coloniais, a distinção entre a esfera pública e a (…) privada estava (…) confinada às “pequenas europas”, às sociedades civis dos colonos (…), portanto, sociedades civis totalmente racializadas e livremente manipuladas pelo poder colonial. (…) findo o ciclo do colonialismo (…), a distinção entre esfera pública e (…) privada tenha sido (…) considerada um corpo estranho, tanto no plano político como no (…) cultural (…).

[Arte: The Temptation of St. Anthony, Odilon Redon, 1888]

Publicado em Ciência Política, Estudos sobre Religião, Estudos Sociológicos, Filosofia, Relações Internacionais, Sociologia

Se Deus fosse um ativista dos direitos humanos [Capítulo 1 – Parte I]

SANTOS, Boaventura de Sousa. A globalização das teologias políticas. In: _______ Se Deus fosse um ativista dos direitos humanos [livro eletrônico]. 1. ed. São Paulo: Cortez, 2014, p. 18-19.

CAPÍTULO 1

A globalização das teologias políticas

O hegemônico, o contra-hegemônico e o não hegemônico

A reivindicação da religião como elemento constitutivo da vida pública é um fenômeno que tem vindo a ganhar relevância nas últimas décadas em todo o mundo. […] (…) as redes que a alimentam são transnacionais, o que nos permite nomeá-la como fenômeno global. Tenho vindo a defender (Santos, 1995; 2001; 2006a) que a globalização não é um fenômeno monolítico e que as relações transnacionais são uma teia de duas globalizações opostas que por vezes seguem paralelas e por vezes se interceptam. […] (…) a globalização hegemônica neoliberal, a nova fase do capitalismo global e das normas políticas, legais e culturais que a acompanham (primado do direito, liberalização da economia, privatização dos bens públicos, minimização do poder do Estado, democracia liberal, direitos humanos). Por outro lado, a globalização contra-hegemônica, ou globalização a partir de baixo, que engloba os movimentos sociais e organizações não governamentais (ONGs) que, por meio de articulações locais, nacionais e transnacionais, lutam contra o capitalismo e a opressão colonialista, a desigualdade social e a discriminação, a destruição ambiental e de modos de vida decorrente da voracidade da extração dos recursos naturais, a imposição das normas culturais ocidentais e a destruição das não ocidentais causada ou agravada pela globalização hegemônica.

[O autor fala neste momento final do parágrafo o que se segue: “A globalização contra-hegemônica consiste em articulações transnacionais entre movimentos sociais e as ONGs (…)”; ora, sabe-se muito bem que a grande maioria das ONGs são liberais, são baseadas nas premissas liberais desviantes e são inclusive sustentadas e financiadas pelo capital internacional, logo, a relação que Boaventura faz de que uma globalização contra-hegemônica, em termos práticos, é diálogos e trocas de informações entre movimentos sociais e ONGs, nos planos nacional e internacional, soa, a meu ver, descabida, senão delirante, pois isto (essa união) jamais será efetivo em termos de busca por um novo sistema através de revoluções de caráter progressista.]

A distinção entre globalização hegemônica e contra-hegemônica é fácil de formular em termos gerais, mas difícil de estabelecer na prática. Como a concebo aqui, a hegemonia é um feixe de esquemas intelectuais e políticos que são vistos pela maioria das pessoas (mesmo por muitos dos que são negativamente afetados por ela) como fornecendo o entendimento natural ou único possível da vida social. Por outro lado, a contra-hegemonia resulta de um trabalho organizado de mobilização intelectual e política contra a corrente, destinado a desacreditar os esquemas hegemônicos e fornecer entendimentos alternativos credíveis da vida social. […] O que é hegemônico ou contra-hegemônico só pode ser determinado contextualmente. Uma greve promovida por centrais sindicais ou um protesto dos movimentos de “decrescimento” no Norte Global podem ser vistos nesta região como contrários aos objetivos da globalização neoliberal e, portanto, como contra-hegemônicos. Contudo, (…) quando vistas do Sul Global podem ser consideradas como variações dentro da liberalização neoliberal e, portanto, como hegemônicas. Estas assimetrias são parcialmente responsáveis pelas dificuldades na construção de alianças Norte-Sul entre grupos e movimentos que lutam pelos mesmos objetivos gerais de emancipação social e libertação. (…) a diferença contextual varia de intensidade nos diferentes campos sociais. Por exemplo, as relações sociais capitalistas são de longe mais unívocas ou contextualmente indiferentes no nível econômico do que no (…) político e cultural. Como o caso da China (…) bem demonstra, o capitalismo global pode coexistir com diferentes regimes políticos e culturais, podendo mesmo adquirir uma força adicional (…).

(…) considero ser hegemônica, no nosso tempo, uma rede multifacetada de relações econômicas, sociais, políticas, culturais e epistemológicas desiguais baseadas nas interações entre três estruturas principais de poder e dominação – capitalismo, colonialismo e patriarcado – que definem a sua legitimidade (ou dissimulam a sua ilegitimidade) em termos do entendimento liberal do primado do direito, democracia e direitos humanos, vistos como a personificação dos ideais de uma boa sociedade. (…) considero ser contra-hegemônica a mobilização social e política que se traduz em lutas, movimentos ou iniciativas, tendo por objetivo eliminar ou reduzir relações desiguais de poder e transformá-las em relações de autoridade partilhada (…). (…) tais ações, para serem eficazes, têm de desafiar o conhecimento que sobre elas é produzido pelas instituições liberais dominantes como sendo uma ideologia mistificadora e contrapor-lhe o conhecimento que elas próprias produzem nos processos de luta e os ideais de uma sociedade justa que neles emergem.

(…) atuações sociais que não são nem hegemônicas nem contra-hegemônicas, no sentido que aqui lhes atribuo. Considero não hegemônicas as atuações sociais (lutas, iniciativas e práticas) que resistem contra formas hegemônicas de dominação, mas visam substituí-las por outras formas de dominação que reproduzem ou mesmo agravam as desigualdades (…). (…) uma atuação social que proponha a substituição do Estado secular pelo (…) religioso seguindo uma só religião não faz hoje (…) parte das estruturas hegemônicas de dominação e dos seus entendimentos liberais ou neoliberais na maioria das regiões (…), mas nem por isso é contra-hegemônica (…), (…) o seu propósito é substituir um determinado padrão de relações desiguais de poder por outro (eventualmente mais autoritário e injusto) e não lutar por relações de autoridade partilhada tanto numa perspectiva secular como numa (…) religiosa.