Publicado em Geração de 1945, Literatura, Modernismo

o grande passeio

[…]

                — Que cama dura, disse bem alto no meio da noite.

        É que se sensibilizara toda. Partes do corpo de que não tinha consciência há longo tempo reclamavam agora a sua atenção. E de súbito — mas que fome furiosa! Alucinada, levantou-se, desamarrou a pequena trouxa, tirou um pedaço de pão com manteiga ressecada que guardara secretamente há dois dias. Comeu o pão como um rato, arranhando até o sangue os lugares da boca onde só havia gengiva. E com a comida, cada vez mais se reanimava. Conseguiu, embora fugazmente, ter a visão do marido se despedindo para ir ao trabalho. Só depois que a lembrança se desvaneceu, viu que esquecera de observar se ele estava ou não em mangas de camisa. Deitou-se de novo, coçando-se toda ardente. Passou o resto da noite nesse jogo de ver por um instante e depois não conseguir ver mais. De madrugada adormeceu.

                E pela primeira vez foi preciso acordá-la. Ainda no escuro, a moça veio chamá-la, de lenço amarrado na cabeça e já de maleta na mão. Inesperadamente Mocinha pediu uns instantes para pentear os cabelos. As mãos trêmulas seguravam o pente quebrado. Ela se penteava, ela se penteava. Nunca fora mulher de ir passear sem antes pentear bem os cabelos.

                Quando enfim se aproximou do automóvel, o rapaz e as moças se surpreenderam com seu ar alegre e com os passos rápidos. “Tem mais saúde do que eu!”, brincou o rapaz. À moça da casa ocorreu: “E eu que até tinha pena dela.”

                Mocinha sentou-se junto da janela do carro, um pouco apertada pelas duas irmãs acomodadas no mesmo banco. Nada dizia, sorria. Mas quando o automóvel deu a primeira arrancada, jogando-a para trás, sentiu dor no peito. Não era só por alegria. Era um dilaceramento. (…)

[…]

LISPECTOR, Clarice. O grande passeio. In:_______ O Primeiro Beijo & Outros Contos. Ática: São Paulo, 1992.

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Se Deus fosse um ativista dos direitos humanos [Capítulo 5 – Parte final]

SANTOS, Boaventura de Sousa. Para uma concepção pós-secularista dos direitos humanos: direitos humanos contra-hegemônicos e teologias progressistas. In: _______ Se Deus fosse um ativista dos direitos humanos [livro eletrônico]. 1. ed. São Paulo: Cortez, 2014, p. 55-62.

Sofrimento na carne

A trivialização do sofrimento humano nos nossos dias e a consequente indiferença com que encaramos o sofrimento dos outros – mesmo se a sua presença nos nossos sentidos é avassaladora – têm muitas causas. […] A tradição moderna ocidental, ao separar a alma do corpo, degradou este último ao concebê-lo como constituído por carne humana. (…) a conceitualização (e dignificação) do sofrimento humano passou a ser feita através de categorias abstratas, sejam elas filosóficas ou éticas, que desvalorizam a dimensão visceral do sofrimento, a sua marca visível de experiência vivida na carne.

Este processo de descorporalização por via de classificação e organização encontra-se (…) mesmo nos autores que mais afirmaram a importância do lugar do corpo, de Nietzsche a Foucault (…). Pela mesma razão, (…) nossos sentidos foram dessensibilizados para a experiência direta do sofrimento dos outros. (…) a carne do prazer como a do sofrimento, foi (…) privada da sua materialidade corpórea e das reações instintivas e afetivas que esta provoca e cuja intensidade consiste em estar (…) além das palavras, (…) além de uma argumentação racional ou de uma avaliação reflexiva.

As religiões e as teologias não foram imunes a este instrumento biopolítico. […] (…) levaram ao extremo a repulsa pela carne como lugar do prazer, sempre associada ao sexo e às mulheres. (…) incitaram os crentes a assistir os corpos dos seus próximos sem outra mediação para além da compaixão. Deste modo, permitiram um acesso denso, direto e intenso à carne em sofrimento (…). É, para além disso, um acesso prático que (…) não procura um equilíbrio entre a compreensão e a intervenção. Concede prioridade absoluta à intervenção (…).

Estas são as razões pelas quais as religiões permitiram (…) uma ética de cuidado e de envolvimento baseada nas reações viscerais da intersubjetividade entre o eu e o próximo, ligações (…) pré-representacionais e (…) pré-éticas, constituídas por sensibilidades e disponibilidades (…). O lado negativo deste imediatismo do sofrimento é a sua despolitização. Foi (…) isto que aconteceu no caso (…) de sofrimento na carne numa das religiões (…), o Cristianismo: a crucifixão de (…) Cristo. A natureza altamente política deste sofrimento foi sequestrada pelo dogma da ressurreição, (…) por uma fuga do mundo, (…) que, ao contrário da viagem de Allah ao céu, não teve regresso. A figura histórica do (…) Cristo dos evangelhos cristãos é obviamente diferente do Jesus Cristo do Corão (…) (Khalidi (Org.), 2001). A diferença tem muito a ver com o sofrimento carnal. (…) para os cristãos o que importa é a própria carne de Jesus e o seu sofrimento, (…) ele é a “Palavra incarnada”, para a fé islâmica Jesus é um exemplo de piedade devido à sua proximidade com o sofrimento carnal dos outros (…).

O potencial contra-hegemônico das teologias progressistas reside na articulação que buscam entre a ligação visceral de um gesto assistencial (…) e a luta política contra as causas do sofrimento como (…) tarefa inacabada da divindade. Na sua crítica do secularismo como uma forma velada de pluralismo restritivo (por excluir a religião enquanto modo legítimo de ser), William Connolly fala de “registros viscerais da subjetividade e intersubjetividade” como expressão de experiências muito intensas (…) e aponta (…) os registros de subjetividade religiosa (1999, p. 27).

Uma vontade radical insurgente e um horizonte pós-capitalista

A religião institucionalizada pagou um preço elevado para encontrar um modus vivendi com a modernidade ocidental e com o Iluminismo: a privatização. […] (…) a religião foi banida do sistema político (o que (…) não significou a incapacitação da igreja para interferir na política (…)), mas, por outro lado, foi deixada entregue a si mesma (…). […] uma ligação liberta das mediações políticas, culturais, discursivas e institucionais que dominaram, nos últimos dois séculos, outras mobilizações sociais (seculares) da esfera pública, (…) o movimento operário e o movimento feminista.

Isto explica (…) a razão pela qual as mobilizações religiosas que no nosso tempo reclamam a esfera pública são sustentadas por (…) radicalismo que não encontramos na maioria dos movimentos sociais. Esta energia radical é usada pelas teologias tradicionalistas para recuar no tempo, até (…) em que a igreja controlava as hierarquias sociais e políticas; (…) também é usada pelas teologias pluralistas progressistas para lutar contra todas as hierarquias, opressões e discriminações (…).

A ligação entre a teologia e a crítica radical do capitalismo constituem o núcleo da teologia da libertação. […] Afirmando a necessidade de uma perspectiva teológica do Terceiro Mundo informada pelo Marxismo e pela teoria da dependência, Ellacuría afirma: “é impossível ver a concretização da justiça sem uma revolução básica na ordem social e econômica, ou uma verdadeira realização do homem sem a criação de uma estrutura econômica adequada” (1977, p. 127).

Para as teologias políticas progressistas, a libertação, mais que a resistência ou a salvação, constitui a base de uma vontade radical de lutar por uma sociedade mais justa.

O impulso para a interculturalidade nas lutas pela dignidade humana

(…) as concepções e práticas dominantes dos direitos humanos são monoculturais, e isto constitui um dos maiores obstáculos à (…) uma luta de baixo para cima, real e universal, pelos direitos humanos. A religião (…) apenas existe como uma (…) variedade de religiões, (…) como diversidade entre as principais religiões tanto como (…) dentro de cada religião. No mundo ocidental esta diversidade é uma das consequências inesperadas da privatização da religião. […]

O (…) princípio, o da comunidade, foi (…) negligenciado, (…) concebido como um adjuvante do Estado ou do mercado. Esta negligência permitiu ao princípio da comunidade evoluir livremente fora (…) da burocracia e da estandardização mercantil e (…) de uma forma muito menos monocultural e monolítica. Afastada do Estado e do mercado, a religião refugiou-se na comunidade, um domínio de regulação social menos estandardizado e mais aberto à diversidade.

Apesar dos reveses e das falhas (seletividade arbitrária, tentação de afirmar uma única verdade revelada, ausência de consequências práticas), os diálogos ecumênicos e interreligiosos são o testemunho de um potencial para a interculturalidade no domínio da religião. Se (…) fossem mais coerentes e ativamente praticados, poderiam funcionar simultaneamente como uma poderosa memória e um campo de experimentação para diálogos mais amplos, envolvendo concepções religiosas e não religiosas de dignidade humana.

(…) o pensamento religioso (…) oscilou entre o dogmatismo estrito e a ortodoxia, por um lado, e o questionamento (…) dos textos, práticas, regras e instituições, pelo outro. No tocante ao último, roçaram muitas vezes a heresia e sofreram consequências (…), o mais notável é que (…) foram além dos materiais religiosos familiares, beberam em culturas estranhas outros tipos de conhecimento e filosofias, imergiram (…) nos detalhes das experiências do dia a dia, interagindo com mercadores, artesãos, prostitutas, e retirando consequências teóricas imediatas destas experiências e discursos. (…) quando decidiram ir às raízes das verdades estabelecidas por conta própria, os pensadores religiosos tenderam a ser mais bricoleurs do que quaisquer outros (…), misturando (…) fragmentos de diferentes proveniências com os quais criaram novos sentidos e interpretações.

Raimundo Panikkar, teólogo católico, (…) pode ser (…) considerado (…) exemplo de teólogo e pensador “numa posição limiar”, visto ter desenvolvido um pensamento cristão de expressão hindu. (…) o Cristianismo, para ser realmente “cristão”, “para pertencer ao mundo inteiro”, deveria despir-se dos seus trajes ocidentais coloniais, que fizeram crer que o Cristianismo só seria viável por meio da cultura ocidental. (…) “Ser-nos-á possível admitir que existam limites à compreensão de Deus que recebemos das tradições semítica e greco-romana? Podemos admitir que existam também limites ao nosso entendimento de religião (…) e oração (…)?” (Panikkar, 2011, p. 117-8).

As narrativas de sofrimento e libertação

A linguagem privilegiada das permutas interculturais é a narrativa. Contar histórias gera um imediato e concreto sentido de copresença (…) do qual as experiências sociais que ocorrem em diferentes tempos, espaços e culturas se tornam mais facilmente acessíveis e inteligíveis (…). (…) a memoria passionis (uma categoria judaico-cristã) do mundo reside na lembrança e nas narrativas que recontam lutas exemplares de vida e de morte, de sofrimento e de libertação, de perdas e ganhos, que reforçam os sentimentos de alegria e medo, (…) dos quais emerge de baixo para cima uma (…) sabedoria partilhada do mundo.

Ao contrário da reconstrução histórica, a memoria passionis colapsa o passado, presente e futuro, vê forças nas fraquezas e possibilidades alternativas nas derrotas. A sabedoria que dela provém é tão contemplativa quanto ativa; é uma reserva mundial de lembrança e visão que converte o passado em energia que reanima o presente e potencia o ainda não ou o talvez do futuro. […] Os contadores de histórias são sempre coautores das (…) que ouviram dos seus predecessores.

Vejo aqui uma possibilidade para outro encontro frutuoso entre os direitos humanos e as teologias políticas progressistas. Narrar e contar histórias está na base da experiência religiosa, seja (…) de textos sagrados ou a de tradições orais sagradas. (…) mesmo a filosofia, a dogmática ou a exegese religiosas apenas se sustentam na medida em que assentam em acontecimentos, ditos e vidas exemplares concretas de pessoas e povos – sejam eles extraordinários ou ordinários, mas nunca anônimos. […] (…) Elie Wiesel: “Teologia não é mais que contar histórias” (1999, p. 94). Todos os profetas se exprimiam por parábolas para que os futuros crentes as pudessem reinterpretar à luz das suas próprias experiências e da sua liberdade intelectual.

A natureza convencional do discurso dos direitos humanos reside não só numa (…) promiscuidade (…) entre a proclamação abstrata dos direitos humanos e a resignação perante as violações sistemáticas (…), como (…) na trivialização do sofrimento humano contido nessas violações. Esta (…) decorre (…) do discurso normalizado (em sentido foucaultiano) das organizações de defesa dos direitos humanos, com (…) forte componente estatístico que reduz ao anonimato dos números o horror (…). Neutraliza-se (…) a presença desestabilizadora do sofrimento (…) na qual seria possível fundar a razão militante e a vontade radical da luta contra um estado de coisas que produz (…) o sofrimento injusto. Pela sua insistência na narrativa concreta do sofrimento das vítimas e da sua luta contra os opressores, as teologias políticas progressistas podem contribuir para tornar o sofrimento injusto numa presença intolerável que desumaniza tanto as vítimas quanto os opressores (…).

A presença do mundo antes ou para além da interpretação

A concepção intercultural dos direitos humanos (…) (Santos, 2006b, p. 433-70; 2014) visa fortalecer (…) a legitimidade das políticas de direitos humanos (…) como radicalizar as lutas que podem ser travadas em seu nome. A noção de interculturalidade destina-se a tornar inteligível a ideia de que o propósito dos intercâmbios interculturais é a interpretação, produção e partilha de significados.

É (…) necessário ir (…) além (…) e demonstrar que, se uma ecologia de diferentes concepções de dignidade humana vai fundamentar uma luta mais abrangente e radical (…), isso pressupõe a criação de momentos (…) intensos de copresença (…) em que a presença precede o significado. A presença é a coisa ou materialidade sobre a qual se constroem os significados. […] É uma forma de ser que, como Gumbrecht afirma (…), “se refere às coisas do mundo antes destas se tornarem parte de uma cultura” (2004, p. 70). É por meio do seu significado que as coisas se tornam culturalmente específicas e muitas vezes também incomensuráveis ou ininteligíveis para outras culturas. (…) estas “coisas” não são exteriores à cultura, são parte dela, mas, paradoxalmente, de uma forma não cultural. Possuem a capacidade pré-representacional de serem exteriores ao pensamento e à consciência, ao mesmo tempo que os fundamentam (…). São materiais e operam no nível do instinto, da emoção e do afeto. […] (…) Gumbrecht é (…) eloquente ao contrapor culturas que são dominadas pela presença (culturas-presença) e culturas que são dominadas pelo significado (culturas-significado) (2004, p. 79). (…) em todas as culturas existe presença e significado, mas a ênfase em uma ou outra varia (…). A cultura moderna ocidental é uma cultura de significado (…). (…) algumas culturas não ocidentais são mais bem compreendidas como culturas de presença.

(…) nas permutas interculturais, o papel da presença consiste em propiciar a geração de sentidos de comunidade, indiferentes à diversidade cultural e imediatamente evidentes. Uma pilha de corpos mutilados num campo de morte, o corpo esquelético de uma criança prestes a morrer de fome, a dor de uma mulher sobre o cadáver do seu jovem filho (…), todas estas presenças são dotadas de um poder que parece relativamente autônomo em relação aos significados que lhe podem ser atribuídos.

(…) também aqui vejo uma (…) contribuição da experiência religiosa progressista e da reflexividade teológica para fortalecer, expandir e radicalizar as lutas pelos direitos humanos. A presentificação do passado ou do outro por meio de ritos, rituais e sacramentos (…) desempenha um papel central na experiência religiosa (Asad, 1993). […] se gera um sentido intensificado de partilha e presença que, se for colocado ao serviço das lutas de resistência e libertação da opressão, pode (…) fortalecer e radicalizar a (…) transformação social. Não é por um capricho proselitista ou por excesso de zelo que todas as reuniões, encontros, protestos e ocupações de terras organizadas por um dos movimentos sociais mais importantes do nosso tempo – o Movimento dos Trabalhadores sem Terra (MST) do Brasil – começam com aquilo a que chamam a “mística”, um momento de silêncio, oração e canto, com os militantes de mãos dadas, em círculo, corpos físicos individuais transformando-se num corpo físico coletivo.

Canções e cânticos têm uma forte presença histórica nas lutas de resistência e libertação como forma de unir forças, vencer o desespero e ganhar coragem para lutar contra poderosos opressores. […] as religiões dos oprimidos e as teologias da libertação a que deram azo em tempos recentes possuem uma preciosa experiência através da qual os direitos humanos podem ganhar novas vozes, nova vitalidade e novas forças. Já mencionei o papel dos blues e dos espirituais na teologia negra. Outro exemplo (…) na maneira como a teologia caribenha da descolonização usa as canções redentoras de Bob Marley (Erskine, 1998) […].

A espiritualidade das/nas lutas materiais pela transformação social

(…) a distinção material/espiritual é uma distinção de base ocidental. Nas suas análises da epistemologia e da religião na África, Ellis e Haar argumentam (…) que os modelos existentes de relacionamento entre a religião e a política são baseados na presunção de uma distinção estrutural entre o mundo visível ou material e o mundo invisível, considerando que esta distinção rígida não reflete as ideias sobre a natureza da realidade prevalecentes na África. (…) dentre as características (…) marcantes das epistemologias africanas encontra-se a convicção de que os aspetos materiais e imateriais da vida não podem ser separados, embora possam distinguir-se entre si, tal (…) duas faces de uma moeda (…).

Esta nota (…) pode ajudar-nos a ter um entendimento mais profundo das lutas contra-hegemônicas pelos direitos humanos. As lutas contra-hegemônicas pelos direitos humanos visam a mudança das estruturas sociais que são responsáveis pela produção sistemática de sofrimento humano injusto. São (…) materiais no sentido em que o seu ímpeto político deve dirigir-se à economia política subjacente à produção e reprodução de relações sociais desiguais (…).

(…) as lutas contra-hegemônicas pelos direitos humanos são muitas vezes de alto risco, incluindo o risco de vida, lutas contra inimigos muito poderosos e desprovidos de escrúpulos. Têm, portanto, de ser baseadas numa vontade política fortemente motivada, (…) vontade que tem de ser tanto coletiva como individual, (…) não existe ativismo coletivo sem ativistas individuais.

(…) esta vontade não poderá ser construída sem uma visão crítica (…) radical e desestabilizadora da injustiça atual e sem visões credíveis de uma sociedade alternativa melhor. Nos últimos dois séculos, dominaram duas visões muito fortes de uma tal sociedade alternativa: o socialismo e a libertação do colonialismo. Estas (…) estavam (…) relacionadas com duas visões críticas igualmente fortes das sociedades contemporâneas: a crítica anticapitalista e a crítica anticolonial. […] O secularismo moderno impediu a religião de ter qualquer participação significativa nestas visões. (…) no mundo cristão, a religião institucionalizada fez as pazes com as estruturas de poder existentes, por mais injustas, sequestrou a força motivadora contida na espiritualidade e transformou os crentes em indivíduos em busca da salvação individual noutro mundo além da morte. Foi este tipo de religião que Marx tão acertadamente criticou.

No nosso tempo, (…) as teologias políticas progressistas têm partido da crítica da privatização moderna da religião para desenvolver novas concepções de salvação (…) que podem servir de fundamento às lutas pela transformação social, pela justiça e pela libertação. Para estas teologias a conversão a Deus implica uma conversão a um próximo necessitado. […] Reside aqui (…) a razão pela qual (…) muitos dos ativistas dos direitos humanos que pagaram com as suas vidas o empenho que puseram nas lutas pela justiça social eram adeptos da teologia da libertação em uma das suas (…) versões.

A intensidade da experiência religiosa é importante, mas o mais importante é a sua orientação existencial. É vivenciada como um propósito individual sem qualquer ligação relevante com as coisas do mundo ou, pelo contrário, é vivenciada como uma forma de partilhar com os outros a visão transcendental de um Deus sofredor que se manifesta nos povos sofredores deste mundo injusto?

[Foto: Landless Workers Movement (MST — Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra)]

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Se Deus fosse um ativista dos direitos humanos [Capítulo 1 – Parte IV]

SANTOS, Boaventura de Sousa. A globalização das teologias políticas. In: _______ Se Deus fosse um ativista dos direitos humanos [livro eletrônico]. 1. ed. São Paulo: Cortez, 2014, p. 23-27.

Teologias tradicionalistas e progressistas

As teologias tradicionalistas intervêm na sociedade política defendendo, como a melhor solução para o presente, as regulações sociais e políticas do passado. Fazem uso dos dados teológicos de modo a enfatizar as ideias políticas que reconduzem a autoridade política à autoridade religiosa com o propósito de proporcionar à política a estabilidade e imunidade que a religião possui. (…) seguindo o pensamento de Moosa, seria possível incluir (…) os “salafitas puritanos”, ainda que o autor considere que a mesma atitude se verifica “entre os modernistas, revivalistas e (…) tradicionalistas de diferentes quadrantes” (…). Afirmam, como condição prévia:

o nosso entendimento do islã deve ser completamente despido de todos os acréscimos históricos e culturais, todas as interpretações e elaborações passadas devem ser abandonadas. O credo deste grupo é o retorno ao Corão, e para alguns, o envolvimento com uma ínfima parte da tradição profética autêntica, que incrivelmente conduzirá à recuperação do “verdadeiro” islã (2008, p. 568).

No Cristianismo, uma teologia tradicionalista significa (…) que a distinção entre a religião dos oprimidos e a (…) dos opressores, não possa ser aceite. (…) é visto como a religião do opressor – uma religião espiritualista, burguesa, sem posição crítica em face das injustiças estruturais (Metz, 1980) – (…) o padrão de experiência religiosa legítima, ao mesmo tempo que a religião dos oprimidos é estigmatizada ou ignorada. […]

Pelo contrário, as teologias cristãs progressistas fundam-se na distinção entre a religião dos oprimidos e a (…) dos opressores e criticam severamente a religião institucional como sendo a religião dos opressores. Uma vez que (…) não é legítimo separar a análise da religião da análise das relações de produção, a religião dos opressores é, na modernidade ocidental, uma “religião do capitalismo”. No caso das teologias da libertação, a crítica do capitalismo e da sua “idolatria do mercado” (Assmann e Hinkelammert, 1989; Sung, 2011b) – muito influenciada pelo Marxismo, (…) na sua versão latino-americana – está no centro de uma renovação teológica que incide sobre os pobres e oprimidos, considerados como uma entidade coletiva geradora de libertação. […]

A teologia da libertação concebe a fé como libertadora (…) em que possa contribuir para a libertação estrutural e coletiva dos pobres. Estes constituem tanto o objeto desta teologia (a sua preocupação central) como o seu sujeito (visto que são protagonistas da história e da sua interpretação) e o lugar social a partir do qual a teologia deverá ser enunciada. (…) a categoria do “pobre” se desdobra contextualmente, abrangendo as vítimas do capitalismo e os povos oprimidos pelas potências coloniais e pós-coloniais (afrodescendentes, indígenas), (…) o “melting pot” resultante de encontros (Dussel, 2009), mas também de violações de culturas e de corpos (Gonzalez, 2004).

Por isso, estas teologias têm-se aberto cada vez mais a uma perspectiva não só ecumênica, como também inter-religiosa. […] (…) o diálogo e a teologia inter-religiosos resultam da percepção de que a dimensão global dos problemas que (…) se colocam à humanidade exigem respostas (…) à escala global. Contudo, (…) são críticas de projetos globais que se constituam como novas formas de poder religioso sobre o espaço público. (…) diz Tamayo: “A libertação necessita de todas as religiões, de todas as culturas, para que possa ser integral. O matrimônio entre a libertação, as culturas e as religiões não é um matrimônio ‘por poderes’” (2005, p. 12). O projeto de teologia intercultural, defendido (…) por Fornet-Betancourt (2006), consiste na construção de uma teologia da libertação (…) assente na crítica da assimetria epistemológica existente, resultante da globalização neoliberal e da primazia concedida ao conhecimento científico-técnico ocidental. […]

Segundo as teologias progressistas cristãs, a separação do espaço público e privado funcionou sempre como forma de domesticar ou neutralizar o potencial emancipador da religião, (…) que contou com a cumplicidade e (…) com a participação ativa das teologias conservadoras. […] (…) “a fé dos cristãos é uma práxis na história e na sociedade” (Metz, 1980, p. 73). […]

As teologias cristãs progressistas insistem (…) na história do movimento sociológico gerado por Jesus. (…) este movimento mostra que a religião não emerge do domínio privado. Para o bem e para o mal, a religião nunca abandonou o domínio público (…). No que respeita às teologias pós-coloniais, (…) versão específica das teologias progressistas, a fé é considerada (…) uma instância crítica dos imperialismos políticos reiterados pelas formas imperialistas de Cristianismo e (…) uma afirmação da positividade da hibridez, dos “espaços intermédios”. […]

Algumas teologias progressistas islâmicas, das quais Ali Shariati (1980, 2002) pode ser considerado (…) destacado, tecem críticas (…) radicais ao capitalismo ocidental (…), considerando-o uma fonte de desumanização e exploração. Shariati considera que no dealbar de uma nova era, pós-capitalista e pós-comunista, o ser humano encontraria um novo caminho de salvação, no qual o Islã desempenharia um papel fundamental, (…) por oferecer uma interpretação espiritual do universo como por constituir um novo humanismo. (…) o Islã teria (…) de se libertar “dos efeitos de séculos de estagnação, superstição, e contaminação, (…) apresentado como uma ideologia viva” (1980, p. 94). (…) Dabashi (2008) equaciona uma teologia da libertação islâmica que passa pela libertação do imperialismo (…) e (…) uma abertura cosmopolita, dialogante com as diversas culturas.

As teologias feministas têm um papel (…) relevante na formulação das teologias progressistas, tanto nas versões cristãs como nas islâmicas. (…) criticam a associação da religião e das suas estruturas hierárquicas à ordem patriarcal e à subsequente legitimação do patriarcalismo e da submissão das mulheres. Reconstroem a teologia e a leitura dos textos fundacionais com base nas experiências emancipatórias das mulheres no interior das religiões.

As distinções entre diferentes tipos de teologia (…) permitem ver que as relações entre os fenômenos religiosos emergentes, as formas de globalização e os direitos humanos não são unívocas ou monolíticas. No tocante à globalização, todas as teologias políticas são não hegemônicas, uma vez que são marginais, (…) em relação à eficácia exclusiva e exclusivista atribuída às instituições seculares que sustentam a globalização neoliberal, (…) em relação à natureza predominantemente secular das lutas contra ela. (…) as teologias pluralistas progressistas contêm um forte potencial contra-hegemônico. Ao reconhecer a (…) autonomia do espaço secular e ao fazer um julgamento crítico das injustiças que nele ocorrem, a religião dos oprimidos pode ser (…) fonte de articulação entre (…) movimentos religiosos e seculares que lutam por uma sociedade mais justa e mais digna.

[Arte: Desconhecido, capa do “Directorio General para la catequesis”, 2020]

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Se Deus fosse um ativista dos direitos humanos [Capítulo 1 – Parte II]

SANTOS, Boaventura de Sousa. A globalização das teologias políticas. In: _______ Se Deus fosse um ativista dos direitos humanos [livro eletrônico]. 1. ed. São Paulo: Cortez, 2014, p. 19-20.

A resolução ocidental da questão religiosa

[…] Tal como no caso dos processos de globalização que identifiquei acima, não estamos perante um fenômeno novo [a reivindicação da religião na vida pública]. […] É novo apenas na medida em que ocorre depois de séculos de dominação colonial e neocolonial, e de imposição global do paradigma cultural e político da modernidade ocidental. (…) este paradigma alcançou uma resolução sem precedentes (…): por um lado, os valores do Cristianismo foram reconhecidos como “universais”; e, por outro, o Cristianismo institucional foi relegado para o governo da esfera privada, (…) das decisões autônomas e voluntárias dos indivíduos. Esta resolução ocidental da questão religiosa tem vindo a ser questionada (…), incluindo o mundo ocidental, e traduz-se na reivindicação do papel da religião na vida pública.

Não é aqui o lugar para analisar os equívocos da resolução ocidental da questão religiosa: os valores selecionados e os (…) excluídos (o que são exatamente os valores cristãos?); a distância entre os termos da resolução e a sua prática (a “resolução” aplicou-se igualmente às diferentes religiões?); a complexa interpenetração das esferas pública e privada (em que medida a fuga escatológica para um mundo outro é uma resposta às condições injustas do nosso mundo social e político?); e – o maior equívoco – saber até que ponto o Cristianismo institucional (especialmente a Igreja católica) aceitou ou apenas tolerou (…). O que importa aqui salientar é que a distinção entre o espaço público e o (…) privado e o confinamento da religião a este último é hoje um elemento central do imaginário político de raiz ocidental, tanto no plano da regulação social como no da emancipação social. […] (…) o mesmo sucede com os direitos naturais do século XVIII e com os seus sucessores (…) e Declarações de Direitos Humanos (…).

[…] A modernidade capitalista ocidental gerou muitos localismos globalizados, e a resolução da questão religiosa é talvez o mais frágil de todos. Nas regiões para onde foi transplantada, os territórios coloniais, a distinção entre a esfera pública e a (…) privada estava (…) confinada às “pequenas europas”, às sociedades civis dos colonos (…), portanto, sociedades civis totalmente racializadas e livremente manipuladas pelo poder colonial. (…) findo o ciclo do colonialismo (…), a distinção entre esfera pública e (…) privada tenha sido (…) considerada um corpo estranho, tanto no plano político como no (…) cultural (…).

[Arte: The Temptation of St. Anthony, Odilon Redon, 1888]

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Se Deus fosse um ativista dos direitos humanos [INTRODUÇÃO]

SANTOS, Boaventura de Sousa. Introdução. In: _______ Se Deus fosse um ativista dos direitos humanos [livro eletrônico]. 1. ed. São Paulo: Cortez, 2014, p. 11-17.

Introdução

Direitos humanos: uma hegemonia frágil

A hegemonia dos direitos humanos como linguagem de dignidade humana é hoje incontestável. No entanto, esta hegemonia convive com uma realidade perturbadora. A grande maioria da população mundial não é sujeito de direitos humanos. É objeto de discursos de direitos humanos. Deve, pois, começar por perguntar-se se os direitos humanos servem eficazmente à luta dos excluídos, dos explorados e dos discriminados ou se, pelo contrário, a tornam mais difícil. […]

A busca de uma concepção contra-hegemônica dos direitos humanos deve começar por uma hermenêutica de suspeita em relação aos direitos humanos tal como são convencionalmente entendidos e defendidos (…). […] Por que é que o conceito de utopia teve menos êxito que o conceito de direito e de direitos, como linguagem de emancipação social?

Comecemos por reconhecer que os direitos e o direito têm uma genealogia dupla na modernidade ocidental. Por um lado, uma genealogia abissal. Concebo as versões dominantes (…) a partir de um pensamento abissal, (…) que dividiu (…) o mundo entre sociedades metropolitanas e coloniais (Santos, 2009b, p. 31-83). Dividiu-o de tal modo que as realidades e práticas existentes do lado de lá da linha, nas colônias, não podiam pôr em causa a universalidade das teorias e das práticas que vigoravam na metrópole, do lado de cá da linha. E, nesse sentido, eram invisíveis. Ora, enquanto discurso de emancipação, os direitos humanos foram historicamente concebidos para vigorar apenas do lado de cá da linha abissal (…). (…) esta linha abissal, que produz exclusões radicais, longe de ter sido eliminada com o fim do colonialismo (…), continua sob outras formas (neocolonialismo, racismo, xenofobia, permanente estado de exceção na relação com alegados terroristas, trabalhadores imigrantes indocumentados, candidatos a asilo ou mesmo cidadãos comuns vítimas de políticas de austeridade ditadas pelo capital financeiro). O direito internacional e as doutrinas convencionais dos direitos humanos têm sido usados como garantes dessa continuidade.

Mas, por outro lado, o direito e os direitos têm uma genealogia revolucionária do lado de cá da linha. A revolução americana e a revolução francesa foram ambas feitas em nome da lei e do direito. […] Ernest Bloch entende que a superioridade do conceito de direito tem muito a ver com o individualismo burguês, com a sociedade burguesa que estava a surgir nesse momento, e que, tendo ganhado já hegemonia econômica, lutava pela hegemonia política (…). […] É, pois, fácil ser-se levado a pensar que a hegemonia de que hoje gozam os direitos humanos tem raízes muito profundas, e que o caminho entre então e hoje foi (…) linear de consagração dos direitos humanos como princípios reguladores de uma sociedade justa. Esta ideia de um consenso há muito anunciado manifesta-se de várias formas, e cada uma delas assenta numa ilusão. […] Distingo quatro ilusões: a teleologia, o triunfalismo, a descontextualização e o monolitismo.

A ilusão teleológica consiste em ler a história da frente para trás. Partir do consenso que existe hoje sobre os direitos humanos e sobre o bem incondicional que isso significa e ler a história passada como um caminhar linearmente orientado para conduzir a este resultado. […] Esta ilusão impede-nos de ver que o presente, tal como o passado, é contingente, que, em cada momento histórico, diferentes ideias estiveram em competição e que a vitória de uma delas, no caso, os direitos humanos, é um resultado contingente que pode ser explicado a posteriori, mas que não poderia ser deterministicamente previsto. A vitória histórica dos direitos humanos traduziu-se muitas vezes num ato de violenta reconfiguração histórica (…).

A segunda ilusão é o triunfalismo, a ideia de que a vitória dos direitos humanos é um bem humano incondicional. Assume que todas as outras gramáticas de dignidade humana que competiram com a dos direitos humanos eram inerentemente inferiores em termos éticos ou políticos. Esta noção (…) não toma em conta um aspecto decisivo da modernidade ocidental hegemônica, (…) o seu verdadeiro gênio histórico: o ter sempre sabido complementar a força das ideias que servem os seus interesses com a (…) bruta das armas que, estando supostamente ao serviço das ideias, é, na prática, servida por elas. É, pois, necessário avaliar criticamente as razões da superioridade ética e política dos direitos humanos. […] Basta pensar que os movimentos de libertação nacional contra o colonialismo do século XX, tal como os (…) socialista e comunista, não invocaram a gramática dos direitos humanos para justificar as suas causas e as suas lutas. (…) as outras gramáticas e linguagens de emancipação social terem sido derrotadas pelos direitos humanos só poderá ser (…) inerentemente positivo se se mostrar que os direitos humanos têm um mérito, enquanto linguagem de emancipação humana (…). […]

Esta precaução ajuda-nos a enfrentar a terceira ilusão, a descontextualização. É (…) reconhecido que os direitos humanos (…) provêm do Iluminismo (…), da revolução francesa e da (…) americana. O que (…) não é referido é que, desde então até os nossos dias, os direitos humanos foram usados, como discurso e como arma política, em contextos muito distintos e com objetivos contraditórios. No século XVIII (…) eram parte integrante dos processos revolucionários em curso e foram uma das suas linguagens. Mas também foram usados para legitimar práticas que consideramos opressivas se não mesmo contrarrevolucionárias. […] Depois das revoluções de 1848, os direitos humanos deixaram de ser parte do imaginário revolucionário para passarem a ser hostis a qualquer ideia de transformação revolucionária (…). (…) a mesma hipocrisia (dir-se-ia constitutiva) de invocar os direitos humanos para legitimar práticas que podem considerar-se violação dos direitos humanos continuou (…) e é hoje (…) mais evidente do que nunca. Quando, a partir de meados do século XIX, o discurso dos direitos humanos se separou da tradição revolucionária, passou a ser concebido como uma gramática despolitizada de transformação social, uma espécie de antipolítica. Os direitos humanos foram subsumidos no direito do Estado, e o Estado assumiu o monopólio da produção do direito e de administração da justiça. […] Gradualmente, o discurso dominante dos direitos humanos passou a ser o da dignidade humana consonante com as políticas liberais, com o desenvolvimento capitalista e suas diferentes metamorfoses (…) e com o colonialismo igualmente metamorfoseado (…). Temos, pois, de ter em mente que o mesmo discurso de direitos humanos significou coisas muito diferentes em diferentes contextos históricos e tanto legitimou práticas revolucionárias como práticas contrarrevolucionárias. […]

A quarta ilusão é o monolitismo. […] Consiste em negar ou minimizar as tensões e até mesmo as contradições internas das teorias dos direitos humanos. (…) a declaração da revolução francesa dos direitos do homem é ambivalente ao falar de direitos do homem e do cidadão. […] Desde o início, os direitos humanos cultivam a ambiguidade de criar pertença em duas grandes coletividades. Uma é a (…) supostamente mais inclusiva, a humanidade, daí os direitos humanos. A outra é uma coletividade muito mais restrita, a (…) dos cidadãos de um determinado Estado. […] Ao longo dos últimos duzentos anos, os direitos humanos foram sendo incorporados nas constituições e nas práticas jurídico-políticas de muitos países e foram reconceitualizados como direitos de cidadania, diretamente garantidos pelo Estado e aplicados coercitivamente pelos tribunais (…). Mas a verdade é que a efetividade da proteção ampla dos direitos de cidadania foi sempre precária na (…) maioria dos países. (…) a evocação dos direitos humanos ocorreu (…) em situações de erosão ou violação particularmente grave dos direitos de cidadania. Os direitos humanos surgem como o patamar mais baixo de inclusão, um movimento descendente da comunidade mais densa de cidadãos para a comunidade mais diluída da humanidade. Com o neoliberalismo e o seu ataque ao Estado como garante dos direitos, em especial os (…) econômicos e sociais, a comunidade dos cidadãos dilui-se ao ponto de se tornar indistinguível da comunidade humana e dos direitos de cidadania, tão trivializados como direitos humanos. A prioridade concedida por Arendt (1951) aos direitos de cidadania sobre os direitos humanos, antes prenhe de significado, desliza para o vazio normativo. […]

A outra tensão que ilustra a natureza ilusória do monolitismo é a tensão entre direitos individuais e coletivos. A Declaração Universal dos Direitos Humanos (…) reconhece apenas dois sujeitos jurídicos: o indivíduo e o Estado. Os povos são reconhecidos apenas na medida em que se tornam Estados. (…) quando a Declaração foi adotada, existiam muitos povos, nações e comunidades que não tinham Estado. Assim, do ponto de vista das epistemologias do Sul, a Declaração não pode deixar de ser considerada colonialista (Burke, 2010; Terretta, 2012).  […] Com o passar do tempo, sexismo, racismo, colonialismo e (…) formas (…) da dominação de classe vieram a ser reconhecidos como dando azo a violações dos direitos humanos. Em meados dos anos de 1960, as lutas anticoloniais tornaram-se parte da agenda das Nações Unidas. (…) tal como era entendida (…), a autodeterminação dizia apenas respeito aos povos sujeitos ao colonialismo europeu. Assim (…) a autodeterminação deixou de fora muitos povos sujeitos à colonização não europeia e colonização interna, sendo os povos indígenas o exemplo mais dramático. […]

Sendo que os direitos coletivos não fazem parte do cânon original dos direitos humanos, a tensão entre direitos individuais e coletivos resulta da luta histórica dos grupos sociais que, sendo excluídos ou discriminados enquanto grupo, não podem ser adequadamente protegidos pelos direitos humanos individuais. As lutas das mulheres, dos povos indígenas, afrodescendentes, vítimas do racismo, gays, lésbicas e minorias religiosas marcam os últimos cinquenta anos de reconhecimento de direitos coletivos, (…) sempre amplamente contestado e em constante risco de reversão. Não existe necessariamente uma contradição entre direitos individuais e coletivos, mais que não seja pelo fato de existirem muitos tipos de direitos coletivos. (…) podemos distinguir dois tipos de direitos coletivos, os primários e os derivados. (…) direitos coletivos derivados quando (…) trabalhadores se auto-organizam em sindicatos e conferem a estes o direito de representá-los nas negociações com os empregadores. (…) direitos coletivos primários quando uma comunidade de indivíduos tem direitos para além dos direitos da sua organização, ou renuncia aos seus direitos individuais a favor dos direitos da comunidade. […] Na sua grande maioria são exercidos individualmente, como quando um policial shik usa o turbante, uma médica islâmica usa o hijab, ou quando um membro de uma casta inferior na Índia, um afrodescendente brasileiro ou indígena se beneficia das ações afirmativas disponíveis nas suas comunidades. Mas existem direitos que só podem ser exercidos coletivamente, como o direito à autodeterminação. Os direitos coletivos existem para eliminar ou minorar a insegurança e a injustiça suportadas pelos indivíduos que são discriminados como vítimas sistemáticas da opressão apenas por serem o que são (…). […] (…) a contradição ou tensão vis-à-vis às concepções mais individualistas de direitos humanos estão sempre presentes.

Ter presentes estas ilusões é crucial para construir uma concepção e uma prática contra-hegemônica de direitos humanos, sobretudo quando elas devem assentar num diálogo com outras concepções de dignidade humana e outras práticas em sua defesa. (…) passo a definir o que considero ser a versão hegemônica ou convencional dos direitos humanos. (…) um entendimento convencional dos direitos humanos como tendo as seguintes características: os direitos são universalmente válidos independentemente do contexto social, político e cultural em que operam e dos diferentes regimes de direitos humanos existentes em diferentes regiões (…); (…) são a única gramática e linguagem de oposição disponível para confrontar as “patologias do poder”; os violadores dos direitos humanos (…) devem ser punidos de acordo com os direitos humanos; questionar os direitos humanos em termos das suas supostas limitações culturais e políticas contribui para perpetuar os males que (…) visam combater; o fenômeno (…) dos duplos critérios na avaliação da observância dos direitos humanos de modo algum compromete a validade universal (…); partem de uma ideia de dignidade humana que (…) assenta numa concepção de natureza humana (…) individual, autossustentada e qualitativamente diferente da natureza não humana; a liberdade religiosa só pode ser assegurada na medida em que a esfera pública esteja livre de religião, a premissa do secularismo; (…) violação dos direitos humanos é definido pelas declarações universais, instituições multilaterais (…) e organizações não governamentais (predominantemente baseadas no Norte Global); as violações (…) podem ser medidas (…) de acordo com indicadores quantitativos; o respeito pelos direitos humanos é muito mais problemático no Sul Global do que no Norte (…).

[…] A questão pode formular-se deste modo: se a humanidade é só uma, por que é que há tantos princípios diferentes sobre a dignidade humana e justiça social, todos pretensamente únicos, e, por vezes, contraditórios entre si? Na raiz (…) está a constatação, (…) cada vez mais inequívoca, de que a compreensão do mundo excede em muito a compreensão ocidental do mundo e, portanto, a compreensão ocidental da universalidade dos direitos humanos.

(…) tal diversidade só deve ser reconhecida na medida em que não contradiga os direitos humanos universais. Postulando a universalidade abstrata da concepção de dignidade humana subjacente aos direitos humanos, esta resposta banaliza a perplexidade inerente à questão. O fato de (…) ser baseada em pressupostos ocidentais é considerado irrelevante, já que o postulado da universalidade faz com que a historicidade dos direitos humanos não interfira com o seu estatuto ontológico. Embora plenamente aceite pelo pensamento político hegemônico, (…) reduz o mundo ao entendimento que o Ocidente tem dele, ignorando ou trivializando (…) experiências culturais e políticas decisivas em países do Sul Global. (…) é o caso dos movimentos de resistência contra a opressão, marginalização e exclusão que têm vindo a emergir nas últimas décadas e cujas bases ideológicas pouco ou nada têm a ver com as referências culturais e políticas ocidentais dominantes (…). (…) não formulam as suas demandas em termos de direitos humanos, (…) pelo contrário, (…) formulam-nas de acordo com princípios que contradizem os princípios dominantes dos direitos humanos. Estes movimentos encontram-se (…) enraizados em identidades históricas e culturais multisseculares (…). (…) três destes movimentos, com significados políticos muito distintos: os movimentos indígenas, (…) na América Latina; os movimentos de camponeses na África e na Ásia; e a insurgência islâmica. (…) comungam do fato de provirem de referências políticas não ocidentais e de se constituírem como resistência ao domínio ocidental.

Ao pensamento convencional dos direitos humanos faltam instrumentos teóricos e analíticos que lhe permitam posicionar-se com alguma credibilidade em relação a estes movimentos, e, pior ainda, não considera prioritário fazê-lo. Tende a aplicar genericamente a mesma receita abstrata dos direitos humanos, esperando (…) que a natureza das ideologias alternativas e universos simbólicos sejam reduzidos a especificidades locais sem nenhum impacto no cânone universal dos direitos humanos.

[Arte: Cashmere (1908) by John Singer Sargent]

Publicado em Ciência Política, Estudos Sociológicos, Filosofia, Filosofia Política, Hegelianismo, Idealismo, Literatura, Relações Internacionais, Sociologia, Teoria Política, Teoria Social

Filosofia do Direito [Terceira Seção – X]

HEGEL, G. W. F. Filosofia do direito. Tradução: Paulo Meneses et al. 1. ed. São Leopoldo: Editora UNISINOS, 2010, p. 306-314.

C. A História Mundial  

§ 341

                O elemento do ser-aí do espírito universal, (…) na arte é intuição e imagem, na religião, sentimento e representação, na filosofia, pensamento livre, puro, na história mundial é a efetividade espiritual em todo o seu âmbito de interioridade e exterioridade. (…) é um tribunal porque na sua universalidade sendo em si e para si o particular, os Penates, a sociedade civil-burguesa e os espíritos dos povos, (…) apenas são enquanto ideal, e o movimento do espírito nesse elemento é expor isso.

§ 342

                A história mundial (…) não é mero tribunal de sua força, (…) a necessidade abstrata e irracional de um destino cego, (…) porque ele, em si e para si, é razão e, seu ser-para-si no espírito, saber, ela é o desenvolvimento necessário a partir apenas do conceito da sua liberdade, dos momentos da razão e (…) da sua autoconsciência e de sua liberdade, — a exposição e a efetivação do espírito universal.

§ 343

                A história do espírito é seu ato, pois ele é apenas o que ele faz, e seu ato é fazer-se objeto da sua consciência e, aqui, (…) apreender-se expondo para si mesmo. Esse apreender é seu ser e seu princípio, e a perfeição de um apreender são (…) sua exteriorização e sua passagem. O espírito (…) apreende de novo esse apreender, (…) indo dentro de si a partir da exteriorização, é o espírito do grau superior frente a si, tal como ele estava naquele primeiro apreender.

                               Aqui intervém a questão da perfectibilidade e da educação da humanidade. Aqueles que afirmaram essa perfectibilidade pressentiram algo da natureza do espírito, de sua natureza de ter como lei do seu ser o conhece-te a ti mesmo, (…) visto que ele apreende o que ele é, o de ser uma figura mais elevada do que a (…) que constituía seu ser. Mas, para os que recusam esse pensamento, o espírito permaneceu uma palavra vazia, assim como a história um jogo superficial de esforços e de paixões contingentes (…) apenas humanas. Quando (…) também (…) enunciam, nas expressões de providência e de plano (…), a crença em um governo superior, (…) essas permanecem representações incompletas, (…) eles (…) fazem passar (…) o plano da providência por algo incognoscível e inconceituável.

§ 344

                Os Estados, os povos e os indivíduos, nessa ocupação do espírito do mundo, erguem-se em seu princípio particular determinado, que tem sua exposição e (…) efetividade em sua constituição e na total amplitude de sua situação, dos quais eles são conscientes e estão imersos no seu interesse, (…) em que são instrumentos inconscientes e membros dessa ocupação interna, (…) essas figuras perecem, mas na qual o espírito, em si e para si, prepara e consegue (…) a passagem para seu próximo grau superior.

§ 345

                Justiça e virtude, ilicitude, violência e vício, talentos e atos, as pequenas e as grandes paixões, culpa e inocência, magnificência da vida individual e da vida do povo, autonomia, felicidade e infelicidade dos Estados e dos singulares têm sua significação e seu valor determinados na esfera da efetividade consciente e encontram nisso seu juízo e sua justiça, toda imperfeita. A história mundial cai fora desses pontos de vista; nela aquele momento necessário da ideia do espírito do mundo, (…) atualmente seu grau, recebe seu direito absoluto, e o povo que aí vive e seus atos recebem seu cumprimento, felicidade e glória.

§ 346

                (…) a história é a configuração do espírito na forma do acontecer, da efetividade natural imediata, assim os graus de desenvolvimento estão ali presentes enquanto princípios naturais imediatos, e esses, porque (…) são naturais, são (…) uma pluralidade um fora do outro, (…) de modo que a um povo corresponde um dos mesmos [princípios], — [é] sua existência geográfica e antropológica.

§ 347

                Ao povo, a que compete tal momento como princípio natural, é confiada a execução do mesmo no progresso da autoconsciência do espírito do mundo que se desenvolve. Na história mundial, esse povo é, para essa época, — e pode fazer época nela apenas uma vez, — o dominante. Frente a esse seu direito absoluto, (…) ser o portador do atual grau de desenvolvimento do espírito do mundo, os espíritos dos outros povos estão sem direito, e eles, (…) não contam mais na história mundial.

                               A história especial de um povo histórico mundial contém, (…) o desenvolvimento de seu princípio desde sua situação infantil envolvida até seu florescimento, em que, chegado à livre autoconsciência ética, ingressa (…) na história universal, — (…) também o período da decadência e da corrupção; — pois assim se assinala nele o surgimento de um princípio superior, enquanto apenas o negativo de seu próprio [princípio]. (…) é indicada a passagem do espírito naquele princípio e, assim, a da história mundial para outro povo, — um período do qual aquele povo perdeu o interesse absoluto (…) admite também o princípio superior positivamente dentro de si e o assimila, mas ali se comporta, (…) não com uma vitalidade e um frescor imanentes, — talvez perca sua autonomia, talvez também prossiga ou arraste seu curso como Estado particular ou um círculo de Estados se debata (…) em múltiplas buscas internas e lutas externas.

§ 348

                No ápice de todas as ações, (…) também as das ações histórico-mundiais, situam-se indivíduos, enquanto subjetividade que efetivam o substancial (…). Enquanto essas vitalidades do ato substancial do espírito do mundo e (…) imediatamente idênticas com o mesmo, ela lhes é oculta e não lhes é objeto e fim; eles têm (…) a honra do mesmo [ato] e a gratidão em seus contemporâneos (…), não ainda na opinião pública da posteridade, porém enquanto subjetividades formais apenas têm nessa opinião sua parte, enquanto glória imortal.

§ 349

                Um povo inicialmente ainda não é um Estado, (…) a passagem de uma família, horda, tribo, multidão etc. à situação de um Estado constitui a realização formal da ideia (…) nele. Sem essa forma, falta a ele, enquanto substância ética, que é em si, a objetividade de ter nas leis, (…) determinação pensada, um ser-aí universal e universalmente válido para si e para os outros, (…) por isso não é reconhecido; sua autonomia, (…) sem legalidade objetiva e racionalidade estável para si, é apenas formal, não é soberania.

                               (…) na representação habitual, não se denomina constituição uma situação patriarcal, nem Estado um povo nessa situação, nem soberania sua independência. (…) antes do começo da história efetiva, incide, (…) a inocência apática, desinteressada e, (…) a valentia da luta formal do reconhecimento e da vingança.

§ 350

                O direito absoluto da ideia é destacar-se nas determinações legais e nas instituições objetivas, a partir do casamento e da agricultura, quer a forma dessa sua efetivação apareça como legislação e benefício divinos, ou como violência e ilicitude; — esse direito é o direito dos heróis para a fundação de Estados.

§ 351

                (…) sucede que as nações civilizadas consideram e tratam outras nações, que lhes estão atrás nos momentos substanciais do Estado (os povos pastores frente aos povos caçadores […]), como bárbaros, com a consciência de um direito desigual, e consideram e tratam sua autonomia como algo formal.

                               Por isso, nas guerras e nos conflitos que surgem sob tais relações, o momento pelo qual eles são lutas pelo reconhecimento em vinculação com um conteúdo determinado constitui o traço que lhes dá uma significação para a história mundial.

§ 352

                As ideias concretas, os espíritos dos povos, têm sua verdade e sua determinação na ideia concreta, tal como ela é a universalidade absoluta, — no espírito do mundo, ao redor de cujo trono elas se encontram como executoras de sua efetivação e (…) testemunhos (…) de sua magnificência. Visto que ele como espírito apenas é o movimento de sua atividade de saber-se absolutamente, com isso, de libertar sua consciência da forma da imediatidade natural e de chegar a si mesmo, (…) os princípios das configurações dessa autoconsciência no curso de sua libertação, — os dos reinos histórico-mundiais, são quatro.

§ 353

                No primeiro, (…) revelação imediata, (…) tem por princípio a figura do espírito substancial, enquanto a identidade, em que a singularidade mergulha em sua essência e permanece para si ilegitimada.

                O segundo princípio é o saber desse espírito substancial, (…) ele é o conteúdo e o cumprimento positivos e o ser-para-si enquanto a forma vivente do mesmo, a bela individualidade ética.

                O terceiro é o aprofundar dentro de si do ser-para-si que sabe até a universalidade abstrata e, com isso, até a oposição infinita frente à objetividade, (…) igualmente abandonada pelo espírito.

                O princípio da quarta configuração é o converter dessa oposição (…) para acolher, em sua interioridade, sua verdade e sua essência concreta e para estar em sua terra e reconciliado na objetividade e, porque esse espírito retornado à substancialidade primeira é o (…) que voltou da oposição infinita, (…) para produzir e para saber sua verdade enquanto pensamento e (…) mundo de efetividade legal.

§ 354

                Segundo esses quatro princípios, os reinos histórico-mundiais são quatro: 1. o oriental, 2. o grego, 3. o romano, 4. o germânico.

§ 355

  1. O Reino Oriental

(…) é a visão do mundo substancial, indivisa dentro de si, que procede do todo natural patriarcal[;] (…) o governo do mundo é teocracia, o soberano é (…) sumo sacerdote ou deus, a constituição do Estado e a legislação são, ao mesmo tempo, religião, assim como os imperativos ou (…) os usos religiosos e morais são igualmente leis do Estado e do direito. (…) a personalidade individual soçobra sem direito, a natureza externa é imediatamente divina (…), e a história da efetividade é poesia. As diferenças que se desenvolvem, segundo os diversos aspectos dos costumes, do governo e do Estado, tornam-se, no lugar das leis, junto de costumes simples, cerimônias (…), — contingências de violência pessoal e de dominação arbitrária, e (…) estamentos torna-se uma rigidez natural de castas. (…) o Estado oriental apenas é vivo em seu movimento, que, — dirige-se para o exterior (…); a tranquilidade interior é uma vida privada (…).

                O princípio da subjetividade e da liberdade autoconsciente é (…) igualmente na nação germânica, todavia, (…) esse princípio é conduzido apenas até onde ele aparece, (…) enquanto mobilidade inquieta, arbítrio humano e corrupção, (…) em sua figura particular enquanto ânimo, e não se desenvolveu até a objetividade da substancialidade autoconsciente, até a legalidade orgânica.

§ 356

  • O Reino Grego

(…) tem aquela unidade substancial do finito e do infinito, mas apenas por fundamento misterioso, reprimido em lembrança apática, em cavernas e (…) imagens da tradição, (…) nascido do espírito que se diferencia até a espiritualidade individual e à luz do saber é moderado e transfigurado em beleza e em eticidade livre e serena. (…) nessa determinação, o princípio da individualidade pessoal eleva-se enquanto não está ainda imbuído de si mesmo, porém mantido em sua unidade ideal; — (…) o todo decompõe-se em um círculo de espíritos de povos particulares, (…) por um lado, a decisão última da vontade não está ainda colocada na subjetividade da autoconsciência sendo para si, porém colocada em uma força que é superior e fora da mesma [autoconsciência], e, por outro lado, a particularidade pertencente ao carecimento não é ainda admitida na liberdade, (…) é excluída num estamento de escravos.

§ 357

  • O Reino Romano

(…) a diferenciação completa-se até a dilaceração infinita da vida ética nos extremos da autoconsciência privada pessoal e da universalidade abstrata. Partindo da intuição substancial de uma aristocracia frente ao princípio da personalidade livre na forma democrática, a contraposição desenvolve-se (…) até a superstição e a afirmação de uma violência ávida, fria, e (…) até a corrupção de uma populaça, e a dissolução do todo termina na infelicidade universal e na morte da vida ética, na qual a individualidade dos povos perecem na unidade de um Panteão, todos os singulares decaem ao nível de pessoas privadas e iguais, com direitos formais, os quais (…) apenas mantêm unidos um arbítrio abstrato (…).

§ 358

  • O Reino Germânico

A partir dessa perda de si mesmo e de seu mundo e da dor infinita da mesma, como o povo israelita fora preparado, o espírito reprimido dentro de si apreende, no extremo de sua negatividade absoluta, no ponto de inflexão sendo em si e para si, a positividade infinita desse seu interno, o princípio da unidade da natureza humana e divina, a reconciliação enquanto verdade e liberdade objetivas que apareceram no interior da autoconsciência e da subjetividade, que para realizar-se foi confiada ao princípio nórdico dos povos germânicos.

§ 359

                A interioridade do princípio, (…) reconciliação e dissolução de toda oposição, ainda abstratas, que existem no sentimento (…) desdobra seu conteúdo para elevá-lo à efetividade e à racionalidade autoconsciente, a um reino mundano, procedente do ânimo, da fidelidade e da associação cooperativa de livres, que nessa sua subjetividade é (…) um reino do arbitrário rude sendo para si e da barbárie dos costumes — frente a um mundo do além, a um reino intelectual, cujo conteúdo é (…) aquela verdade de seu espírito, mas, enquanto ainda impensada, está envolta na barbárie da representação e, enquanto força espiritual sobre o ânimo efetivo, (…) uma violência terrível não-livre contra a mesma.

§ 360

                Visto que — na luta árdua desses reinos na diferença, que (…) alcança sua contraposição absoluta, e ao mesmo tempo enraizados em uma unidade e ideia, — o espiritual degrada a existência de seu céu em um aquém terreno e em uma mundanidade comum, na efetividade e na representação, ao contrário, o mundano eleva seu ser-para-si abstrato até o pensamento e o princípio do ser e do saber racionais até a racionalidade do direito e da lei, é a oposição em si que desaparece em uma figura sem marco; o presente despoja-se de sua barbárie e (…) violência contingente, que desdobra o Estado até ser a imagem e a efetividade da razão, no qual a autoconsciência encontra no desenvolvimento orgânico a efetividade de seu saber e de seu querer substanciais, (…) como encontra na religião o sentimento e a representação dessa sua verdade enquanto essencialidade ideal, mas é na ciência que encontra o conhecimento livre, conceituado dessa verdade, (…) uma e a mesma em suas manifestações que se completam, o Estado, a natureza e o mundo das ideias.

[Arte: A lamentação para Ícaro (1898) por Herbert James Draper]

Publicado em Ciência Política, Estudos Sociológicos, Filosofia, Filosofia Política, Hegelianismo, Idealismo, Literatura, Sociologia, Teoria Política, Teoria Social

Filosofia do Direito [Terceira Seção – Parte VII]

HEGEL, G. W. F. Filosofia do direito. Tradução: Paulo Meneses et al. 1. ed. São Leopoldo: Editora UNISINOS, 2010, p. 287-296.

§ 309

                (…) a delegação dos deputados ocorre para a deliberação e (…) decisão sobre os assuntos universais, ela tem o sentido de que pela confiança são determinados a isso tais indivíduos, os quais entendem melhor de tais assuntos do que os que delegam, (…) também de que eles não façam valer o interesse particular de uma comuna, (…) corporação, contra o interesse universal, porém façam valer essencialmente esse último. (…) eles não têm a relação de ser mandatários comissionados ou que transmitem instruções (…), a reunião tem a determinação de ser uma assembleia viva, em que se delibera em comum, se instrui e convence reciprocamente.

§ 310

                A garantia da propriedade e da disposição de espírito que corresponde a esse fim (…) mostra-se na segunda parte [dos estamentos], que emana do elemento móvel e mutável da sociedade civil-burguesa, (…) na disposição de espírito, habilidade e conhecimento das instituições e dos interesses do Estado e da sociedade civil-burguesa, adquiridos pela conduta efetiva das ocupações nas funções de autoridade ou nas funções de Estado e confirmados pelos atos, e no sentido da autoridade e no sentido do Estado que (…) se formam e se põem à prova.

                               A opinião subjetiva que se tem de si acha facilmente supérflua, e mesmo quase ofensiva, a exigência de tais garantias, se ela é feita ao (…) povo. Mas o Estado tem por sua determinação o elemento objetivo (…); para ele, os indivíduos apenas podem ser o que neles é objetivamente conhecível e comprovado (…). — A condição externa, um certo patrimônio, aparece tomada (…) para si como o extremo unilateral da exterioridade frente ao outro extremo igualmente unilateral, (…) a confiança (…) subjetiva e a opinião dos eleitores. (…) — (…) a propriedade do patrimônio tem já na eleição para funções de autoridade e outras (…) das cooperativas e das comunas a esfera em que pôde exercer seu efeito (…).

§ 311

                A delegação dos deputados, (…) procede da sociedade civil-burguesa, (…) tem o sentido de que os deputados estejam familiarizados com os carecimentos especiais, seus obstáculos, seus interesses particulares e que eles mesmos lhe pertençam. (…) ela procede, segunda a natureza, da sociedade civil-burguesa, de suas diversas corporações, e o modo simples dessa marcha não é perturbado por abstrações e (…) representações atomísticas, (…) ela preenche (…) esse ponto de vista, e o eleger (…) é supérfluo ou se reduz a um jogo medíocre da opinião e do arbítrio.

                               Apresenta-se de si mesmo o interesse de que se encontrem entre os deputados, para cada ramo particular da sociedade, (…) indivíduos que o conheçam a fundo e que eles mesmos lhe pertençam; — na representação de uma eleição indeterminada (…) essa circunstância importante é abandonada apenas à contingência. (…) cada um desses ramos tem, frente aos outros, direito igual de ser representado. Quando os deputados são (…) representantes, (…) isso tem um sentido organicamente racional apenas se eles não são representantes de [indivíduos] singulares, de uma multidão, porém representantes de uma das esferas essenciais da sociedade, representantes de seus grandes interesses. O representar (…) tem (…) a significação (…) de que o interesse mesmo está efetivamente presente no seu representante, assim como o representante está ali para seu próprio elemento objetivo. — A propósito de eleger pelos muitos [indivíduos] singulares, pode-se ainda observar que (…) tem um efeito insignificante, e que os titulares do direito de voto, por mais alto que esse título jurídico possa ser proclamado e representado (…), não aparecem (…) no momento de votar; — (…) tal instituição é antes o contrário (…), a eleição recai no poder de poucos, de um partido (…), no interesse contingente, particular, que precisamente deveria ser neutralizado.

§ 312

                Cada um dos dois lados contidos no elemento estamental traz na deliberação uma modificação particular, e porque, além disso, um dos momentos tem a função própria de mediação no interior dessa esfera e (…) de mediação entre existentes, assim resulta (…) para ele uma existência separada; com isso a assembleia estamental se dividirá em duas câmaras.

§ 313

                Mediante essa separação, não apenas a maturidade da decisão, mediada por uma pluralidade de instâncias, recebe sua maior garantia e é afastada a contingência da tendência do instante, (…) como a contingência que pode assumir a decisão pela maioria do número de votos, porém sobretudo o elemento estamental incide menos no caso de opor-se diretamente ao governo ou, (…) em que o mediador se encontre igualmente ao lado do segundo estamento, o peso da sua maneira de ver se reforça tanto mais quanto ela aparece (…) mais imparcial e sua oposição (…) neutralizada.

§ 314

                (…) a instituição dos estamentos não tem a determinação de que (…) os assuntos do Estado sejam em si melhor deliberados e decididos, dessa parte eles apenas constituem um acréscimo, porém sua determinação diferenciada consiste em que, no seu cosaber, codeliberar e codecidir sobre os assuntos universais, o mesmo da liberdade formal alcança seu direito (…) aos membros da sociedade civil-burguesa que não participam do governo, assim o momento do conhecimento universal recebe incialmente sua expansão mediante a publicidade dos debates (…).

§ 315

                A abertura dessa oportunidade de [obter] conhecimentos tem o aspecto mais universal de que somente assim a opinião pública alcança pensamentos verdadeiros e discernimento da situação e do conceito do Estado e (…) seus assuntos e, somente com isso, alcança uma capacidade de julgar mais racionalmente sobre isso; depois aprende também a conhecer e a respeitar as ocupações, os talentos (…) das autoridades do Estado e dos funcionários. Assim como esses também recebem com tal publicidade uma poderosa ocasião de desenvolvimento e um palco de honra elevada, (…) também ela é (…) o remédio contra a presunção dos singulares e da multidão, e é um meio de formação para esse, e (…) um dos maiores.

§ 316

                A liberdade subjetiva, formal, de que os singulares (…) tenham e externem seu julgar, opinar e aconselhar próprios sobre os assuntos universais tem seu fenômeno no conjunto que se chama opinião pública. O universal em si e para si, o substancial e o verdadeiro, está nisso ligado a seu contrário, ao próprio e particular do opinar para si dos muitos; por isso essa existência é a contradição presente de si mesma, o conhecer enquanto fenômeno; a essencialidade tão imediata como a inessencialidade.

§ 317

                Por isso a opinião pública contém dentro de si os princípios substanciais eternos da justiça, o conteúdo verdadeiro e o resultado de toda constituição, legislação e situação universal em geral, sob a forma do são entendimento humano enquanto fundamento ético que atravessa todos sob a figura de pré-juízo, assim como os carecimentos verdadeiros e as tendências corretas da efetividade. — Ao mesmo tempo, como esse aspecto interno entra na consciência e vem à representação em proposições universais, em parte para si, em para fins do raciocinar concreto sobre os acontecimentos, regulamentos e relações do Estado e sobre carecimentos sentidos, (…) introduz a total contingência do opinar, sua ignorância e inversão, conhecimento e apreciação falsos. Visto que se trata aí da consciência da peculiaridade da maneira de ver e do conhecimento, (…) é uma opinião tanto mais própria quanto pior é seu conteúdo; pois o mau é o que é totalmente particular e próprio em seu conteúdo, ao contrário, o racional é o universal em si e para si, e o próprio é aquela sobre o qual o opinar se imagina algo.        

                               Por causa disso não é de se considerar (…), se uma vez se diz:

                               Vox Populi, vox dei,

                               e uma outra vez (por exemplo, em Ariosto):

                               “Golpear a massa pode, / nisso ela é respeitável: julgar lhe cai miseravelmente”.                             “Que o vulgo ignorante censura todo mundo e mais fala do que menos entende”.

                               Ambas residem (…) na opinião pública; — (…) nela verdade e erro sem fim estão imediatamente reunidos, (…) não há verdadeiramente seriedade em uma ou em outra. Onde há seriedade (…) pode parecer difícil de diferenciar; (…) será o caso se nos ativermos à externação imediata da opinião pública. (…) visto que o substancial é seu elemento interno, (…) é apenas com esse que há verdadeira seriedade; mas esse não pode ser conhecido a partir dela, (…) precisamente, porque ele é o substancial, apenas pode ser conhecido a partir de si mesmo e por si mesmo. (…) esse opinar se deixaria persuadir minimamente sobre isso de que seriedade nada tem de sério. — Um grande espírito submeteu à resposta pública a questão se é permitido enganar um povo. (…) um povo não se deixa enganar de propósito de seu fundamento substancial, de sua essência e do caráter determinado de seu espírito, mas sobre a maneira como ele sabe isso e julga segunda essa maneira suas ações, seus acontecimentos etc., — ele é enganado por si mesmo.

§ 318

                Por isso a opinião pública merece ser tanto respeitada como desprezada[;] desprezada segundo sua consciência e sua externação concretas, respeitada segundo seu fundamento essencial, que apenas aparece mais ou menos turvado naquele concreto. (…) ela não tem nela o critério da diferenciação nem a capacidade de elevar dentro de si o aspecto substancial até o saber determinado, (…) a independência em face dela é a primeira condição formal para alcançar algo de grande e de racional (na efetividade como na ciência). Esse (…) parece estar seguro de que ela na sequência o admitirá, reconhecerá e fará um de seus pré-juízos.

§ 319

                A liberdade de comunicação pública — ([…] um dos meios, a imprensa, […] fica-lhe atrás em vivacidade), — a satisfação desse impulso que comicha de dizer e de ter dito sua opinião, tem sua garantia direta nas leis e (…) ordenamentos da administração pública e do direito, que, em parte, punem seus excessos, mas tem sua garantia indireta na inocuidade, fundada, (…), na racionalidade da constituição, na estabilidade do governo e, então, também na publicidade das assembleias estamentais — (…) nessas assembleias se expressa o discernimento sólido e cultivado sobre os interesses do Estado e deixa-se aos demais dizer o significativo, principalmente se lhes é tirada a opinião de que tal dizer seja de peculiar importância e eficácia; — mas (…), na indiferença e no desprezo face ao discurso superficial e odiento, ao que logo se rebaixa necessariamente.

                               Definir a liberdade de imprensa como a (…) de dizer e de escrever o que se quer está em paralelo com o declarar de que a liberdade em geral seria a liberdade de fazer o que se quer. — Tal discurso pertence à rudeza e à superficialidade (…) totalmente incultas do representar. (…) segundo a natureza da Coisa, em parte alguma o formalismo persiste de maneira tão obstinada e deixa-se entender tão pouco quanto nessa matéria. (…) o objeto é o mais fugaz, o mais particular, o mais contingente do opinar na multiplicidade infinita de conteúdos e de torneamentos; além da incitação direta ao roubo, ao assassinato (…) etc., aí residem a arte e a cultura da externação, que aparece para si como de todo universal e indeterminada, mas, em parte, (…) oculta também uma significação totalmente determinada e, em parte, se liga a consequências que não são efetivamente expressas e das quais é indeterminável tanto se elas derivam corretamente dessa externação, como (…) se devem estar contidas nela. Essa indeterminidade da matéria e da forma não deixa às leis (…) alcançar aquela determinidade que é exigida (…) e faz do juízo (…) uma decisão totalmente subjetiva (…). (…) a lesão é dirigida aos pensamentos, à opinião e à vontade dos outros, que são o elemento em que ela alcança uma efetividade; (…) esse elemento pertence à liberdade dos outros e, por isso, depende desses que essa ação lesiva seja um ato efetivo. — Por isso, frente às leis, pode-se tanto mostrar sua indeterminidade como podem ser encontrados, para a externação, torneamentos e formulações de expressão, pelas quais se eludem as leis ou se afirma a decisão judiciária como um juízo subjetivo. (…) se a externação for tratada como um ato lesivo, pode-se afirmar contra isso que não seria um ato, (…) seria (…) apenas um opinar e um pensar, quanto apenas um dizer; (…) de um fôlego, a partir da mera subjetividade do conteúdo e da forma, a partir da insignificância e da não-importância de um mero opinar e dizer, exige-se a impunidade dos mesmos e precisamente para esse opinar, enquanto é (…) minha propriedade mais espiritual, (…) enquanto externação e uso dessa minha propriedade, exigem-se grande respeito e consideração. — Mas o substancial é e permanece que a lesão à honra dos indivíduos (…), a calúnia, a injúria, o desprezo do governo, (…), em particular da pessoa do príncipe, o escárnio das leis, (…) etc. são crimes, delitos, com as mais diversas gradações. A maior indeterminidade que tais ações recebem mediante o elemento em que elas têm sua externação não suprassume seu caráter substancial e (…) tem a consequência de que o terreno subjetivo, no qual são cometidas, determina também a natureza e a figura da reação; esse é o terreno do delito mesmo, que na reação (…) verte a subjetividade da maneira de ver, a contingência e semelhantes (…). O formalismo empenha-se (…) em raciocinar fora da natureza substancial e concreta da Coisa, a partir de aspectos singulares, que pertencem ao fenômeno exterior (…). —Mas as ciências (…) não se encontram no terreno do opinar e das maneiras de ver subjetivas, (…) também sua exposição não consiste na arte dos torneamentos, das alusões (…), porém na expressão aberta, determinada e inequívoca da significação e do sentido, não caem sob a categoria do que constitui a opinião pública. (…) — (…) assim como a externação científica tem seu direito e sua garantia em sua matéria e em seu conteúdo, (…) o ilícito da externação pode (…) receber uma garantia ou ao menos uma tolerância no desprezo em que se expôs. Uma parte de tais delitos (…) pode ser posta na conta dessa espécie de Nêmesis que a impotência interna, que se sente oprimida pelos talentos e virtudes que a ultrapassam, é impelida a agir frente a tal superioridade, para chegar a si mesma e a restituir à própria nulidade uma autoconsciência (…). Essa Nêmesis má e odiosa é privada de seu efeito pelo desprezo e (…), como o público que forma uma espécie de círculo em torno de tal atividade, é delimitada à alegria maliciosa insignificante à própria condenação que ela tem dentro de si.

§ 320

                A subjetividade, (…) enquanto dissolução da vida e do Estado subsistente tem seu fenômeno mais exterior do opinar e no raciocinar, que querem fazer valer sua contingência e (…) igualmente, se destroem, tem sua efetividade verdadeira em seu oposto, na subjetividade enquanto idêntica com a vontade substancial, a qual constitui o conceito do poder do príncipe e (…), enquanto idealidade do todo, não alcançou ainda, até agora, seu direito e ser-aí.

[Artwork:  Donnybrook Fair (1859) by Erskine Nicol]

Publicado em Ciência Política, Estudos Sociológicos, Filosofia, Filosofia Política, Hegelianismo, Idealismo, Literatura, Sociologia, Teoria Política, Teoria Social

Filosofia do Direito [Terceira Seção – VI]

HEGEL, G. W. F. Filosofia do direito. Tradução: Paulo Meneses et al. 1. ed. São Leopoldo: Editora UNISINOS, 2010, p. 278-287.

c) O Poder Legislativo

§ 298

                O poder legislativo concerne às leis como tais, na medida em que elas carecem de contínua determinação ulterior e os assuntos internos são totalmente universais segundo seu conteúdo. Esse poder é (…) uma parte da constituição que lhe é pressuposta e reside (…) em si e para si fora de sua determinação direta, mas recebe seu desenvolvimento posterior (…).

§ 299

                Em vinculação com os indivíduos, esses objetos se determinam (…) segundo dois aspectos: α) o que obtêm para seu benefício mediante o Estado e o que eles têm a desfrutar e β) e o que eles têm de prestar ao mesmo. Estão compreendidos, sob o primeiro aspecto, as leis do direito privado (…), os direitos das comunas e (…) corporações e as organizações totalmente universais e, indiretamente (§ 298), o todo da constituição. (…) as prestações apenas podem ser reduzidas a dinheiro, (…) valor universal existente das coisas e das prestações, (…) podem ser determinadas de maneira justa e (…) de um modo tal que os trabalhos e serviços particulares, que o [indivíduo] singular pode prestar, são mediados por seu arbítrio.

                               O que é objeto da legislação universal e o que se confia à determinação das autoridades administrativas e à regulamentação do governo em geral deixa-se certamente no universal diferenciar, (…) recai apenas nela o que é de todo universal segundo o conteúdo, as determinações legais, mas que recaem nessa o particular e a espécie e o modo de execução. (…) essa determinação já não é (…) completamente determinada, pelo fato de que a lei (…) e não um simples imperativo (…) precisa ser determinada dentro de si; (…) quanto mais é determinada, tanto mais seu conteúdo se aproxima da capacidade de ser executado (…). (…) ao mesmo tempo, a determinação, se fosse tão longe, daria às leis um aspecto empírico, que seria preciso na execução efetiva submeter a modificações (…). (…) pode surpreender no Estado (…) que esse não exige nenhuma prestação direta das muitas habilidades, posses, atividades (…) e nisso dos vivos patrimônios infinitamente diversos que nele residem, que (…) estão ligados a uma disposição de espírito, porém apenas toma um patrimônio que aparece como dinheiro. — (…) de fato, o dinheiro não é um patrimônio particular ao lado dos demais, (…) é o universal dos mesmos, à medida que eles se produzem até à exterioridade do ser-aí, em que podem ser apreendidos como uma Coisa. Apenas nesse ápice mais exterior são possíveis a determinação quantitativa e (…) a justiça e a igualdade das prestações. — Platão, em seu Estado, deixa repartir pelos superiores os indivíduos entre os estamentos particulares e impor-lhes suas prestações particulares (…). Nessas relações falta o princípio da liberdade subjetiva, pelo fato de que o fazer substancial do indivíduo, que em tais prestações é (…) particular segundo seu conteúdo, seja mediado por sua vontade particular; — um direito que somente é possível mediante a exigência das prestações na forma do valor universal (…)

§ 300

                No poder legislativo, enquanto totalidade, inicialmente são ativos os dois outros momentos[:] o monárquico, (…) lhe compete a decisão suprema, — [e] o poder governamental, (…) momento consultivo, com conhecimento concreto e visão geral do todo, de seus múltiplos aspectos e dos princípios efetivos que ali se tornaram estáveis, assim como (…) conhecimento dos carecimentos do poder do Estado (…), — enfim, o elemento estamental.

§ 301

                O elemento “estamental” tem a determinação de que o assunto universal não é apenas “em si”, mas também “para si”, isto é, de que o momento da “liberdade formal” subjetiva, a consciência pública, enquanto “universalidade empírica” das maneiras de ver e dos pensamentos dos “muitos”, chegue ali à existência.

                               A expressão: “os muitos” (οι πολλοί) designa a universalidade empírica de modo mais correto do que a expressão corrente: “todos”. Pois quando se afirma que se entende de si, que sob esse “todos”, inicialmente, pelo menos, não se quer mencionar as crianças, (…) etc., assim se entende aqui ainda melhor de si que não se deveria usar a expressão totalmente determinada: “todos”, em que ainda se trata de algo totalmente indeterminado. — Em geral, são tão indescritíveis as muitas representações e maneiras de falar equívocas e falsas sobre o povo, a constituição e os estamentos, que estão circulando na opinião, que seria um esforço vão querer citá-las, discuti-las e retificá-las. A representação, que a consciência habitual costuma ter diante de si sobre a necessidade ou a utilidade da concorrência de estamentos, é principalmente algo de que os deputados do povo ou mesmo de que o povo “tem de entender melhor” o que lhe serve melhor e que teria incontestavelmente a melhor vontade para esse melhor. O que concerne ao primeiro ponto, assim, é antes o caso de que o povo, na medida em que com essa palavra se designa uma parte particular dos membros de um Estado, expressa a parte “que não sabe o que quer”. Saber o que se quer e, mais ainda, saber o que quer a vontade sendo em si e para si, a razão, é fruto do conhecimento e do discernimento mais profundo, que não é precisamente assunto do povo. — A garantia para o universal melhor e para a liberdade pública reside nos estamentos, não se encontra em algum refletir do discernimento particular dos mesmos, — pois os mais elevados funcionários do Estado têm necessariamente um discernimento mais profundo e mais abrangente da natureza das instituições e dos carecimentos do Estado, assim como uma habilidade e hábito maiores dessas ocupações e “podem” fazer o melhor nas assembleias dos estamentos, — porém ela [a garantia] reside certamente, em parte, em um ingrediente do discernimento dos deputados, principalmente no exercício dos funcionários que se encontram bastante afastados dos olhares das instâncias superiores e, em particular, nos carecimentos e nas faltas mais urgentes e mais especiais que eles, em uma intuição mais concreta, têm diante de si[:] mas, em parte, ela reside naquele efeito que traz consigo a esperada censura de muitos, e, de fato, uma censura pública, de aplicar antes o melhor discernimento às ocupações e aos projetos a serem expostos e apenas os instituir conforme os motivos mais puros, — um incumbência que é igualmente eficaz para os próprios membros dos estamentos. Mas o que concerne sobretudo à “boa vontade” dos estamentos para o melhor universal (…), de que pertence à maneira de ver da populaça, ao ponto de vista do negativo em geral, pressupor, da parte do governo, uma vontade má ou menos boa; — um pressuposição que, inicialmente se deveria responder de uma forma semelhante, teria por consequência a recriminação de que os estamentos, visto que eles emanam da singularidade, do ponto de vista privado e dos interesses particulares, estariam inclinados a usar sua atividade às custas do interesse universal, quando, ao contrário, os outros momentos do poder do Estado estão colocados já para si no ponto de vista do Estado e são dedicados ao fim universal. Com isso, o que concerne, em geral, à “garantia” que deve residir em particular nos estamentos, assim cada uma das outras instituições do Estado partilha também com elas o fato de ser uma garantia do bem-estar público e da liberdade racional, e há entre elas instituições, como a soberania do monarca, a hereditariedade da sucessão ao trono, a constituição judiciária etc., nas quais essa garantia reside, em um grau ainda mais forte. É por isso que a determinação conceitual própria dos estamentos, é de se buscar no fato de que neles o momento subjetivo da liberdade universal, o discernimento próprio e a vontade própria da esfera, que foi denominada (…) de sociedade civil-burguesa, vêm à “existência em vinculação com o Estado”. Que esse momento seja uma determinação da ideia desenvolvida até a totalidade, essa necessidade interna que não é de se confundir com “necessidades” e “utilidades externas” decorre, como em toda parte, do ponto de vista filosófico.   

§ 302

                Considerados órgãos mediadores, os estamentos estão entre o governo em geral (…) e o povo dissolvido em esferas particulares e em indivíduos (…). Sua determinação exige deles tanto o sentido e a disposição de espírito do Estado e do governo como os interesses das esferas particulares e dos [indivíduos] singulares. (…) tem a significação de uma mediação comum com o poder governamental organizado, de modo que o poder do príncipe não seja isolado (…) e não apareça (…) como um mero poder dominador e como arbítrio, nem que os interesses particulares das comunas (…), etc. se isolem, ou (…) que os [indivíduos] singulares não venham a se apresentar como uma multidão (…) como um amontoado, (…) como um opinar e um querer inorgânicos e um mero poder de massa contra o Estado orgânico.

                               Isso pertence aos discernimentos lógicos mais importantes de que um momento determinado, enquanto se mantém na oposição, tem a posição de um extremo, (…) deixa de sê-lo e é um momento orgânico (…) ao mesmo tempo, meio-termo. (…) importante destacar esse aspecto, porque faz partes do preconceitos frequentes (…) representar (…) os estamentos do ponto de vista da oposição frente ao governo, como se essa fosse sua posição essencial. Organicamente (…) retomado na totalidade, o elemento estamental (…) se demonstra pela função da mediação. (…) a oposição mesma é rebaixada a uma aparência. — O sinal de que o conflito não é dessa espécie resulta, segundo a natureza da Coisa, quando os objetos do mesmo não concernem aos elementos essenciais do organismo do Estado, porém às coisas mais especiais e (…) indiferentes, e a paixão que (…) se liga a esse conteúdo torna-se procura partidária por um interesse (…) subjetivo, por exemplo, (…) cargos mais elevados no Estado.

§ 303

                O estamento universal, (…) o que se dedica ao serviço do governo, imediatamente tem de ter em sua determinação o universal por fim de sua atividade essencial; no elemento estamental do poder legislativo, o estamento privado chega a uma atividade eficaz e a uma significação políticas. (…) não pode então aparecer (…) como uma massa (…) indivisa, nem como uma multidão (…), (…) aparece como o que ele já é, (…) como diferenciado no estamento que se fundamenta na relação substancial e no trabalho que os medeia. Apenas assim (…) o particular efetivo no Estado enlaça-se verdadeiramente ao universal.

                               Isso vai contra outra representação corrente, (…) a qual o estamento privado é, no poder legislativo, elevado à participação na Coisa universal[;] ele teria de aparecer (…) na forma dos [indivíduos] singulares, seja que eles escolham representantes (…) ou (…) que (…) deva exercer um voto aí. Essa maneira de ver abstrata (…) desaparece já na família como na sociedade civil-burguesa, (…) o [indivíduo] singular apenas chega a aparecer como membro de um universal. Mas o Estado é (…) uma organização de tais membros, que são círculos para si, e nele nenhum momento deve mostrar-se como (…) multidão inorgânica. Os muitos, (…) [indivíduos] singulares, (…) povo, são (…) um conjunto, mas apenas como multidão, uma massa informe, cujo movimento e atuar (…) com isso apenas seriam elementares, irracionais (…). Quando, em vinculação com a constituição, se ouve ainda falar de povo, (…) coletividade inorgânica, (…) se pode já saber (…) que apenas se podem esperar generalidades e declamações equívocas. — A representação, que dissolve de novo em multidão de indivíduos as comunidades (…) já (…) presentes naqueles círculos em que eles entram na política, (…) no ponto de vista da suprema universalidade concreta, mantém (…) a vida civil-burguesa e a vida política separadas uma da outra e situa essa (…) no ar, (…) sua base (…) seria a singularidade abstrata do arbítrio e da opinião (…), seria o contingente, não um fundamento estável e legitimado em si e para si. — (…) as (…) teorias dos estamentos da sociedade civil-burguesa (…) e dos estamentos na significação política residam distantes entre si, contudo a língua ainda manteve essa união, que (…), outrora existia.

§ 304

                O elemento político dos estamentos contém igualmente em sua determinação própria a diferença dos estamentos já presentes nas esferas anteriores. Sua posição inicialmente abstrata (…) a do extremo da universalidade empírica frente ao princípio do príncipe ou monárquico (…), — (…) residem (…) a possibilidade da concordância e (…) igualmente a possibilidade da contraposição hostil, — essa posição abstrata apenas se torna (…) relação racional (…) pelo fato de que sua mediação chega à existência. (…) como da parte do poder do príncipe, o (…) governamental (§ 300) já tem essa determinação, assim também, da parte dos estamentos, é preciso que ele esteja orientado a um momento dos mesmos segundo a determinação de existir essencialmente como o momento do meio-termo.

§ 305

                Um dos estamentos da sociedade civil-burguesa contém o princípio que é capaz para si de tornar-se constituído para essa vinculação política (…), o estamento da eticidade natural, (…) tem por (…) base a vida familiar, e no que diz respeito à subsistência, a propriedade fundiária[;] (…) no que diz respeito à sua particularidade, tem em comum o querer, que repousa sobre si, e a determinação natural, que o elemento principesco inclui dentro de si.

§ 306

                Para a posição e a significação políticas ele é precisamente constituído, (…) seu patrimônio é independente do patrimônio do Estado como da insegurança da indústria, da busca do ganho e da variabilidade da posse em geral, — é independente (…) do favor do poder governamental como do favor da multidão, (…) é assegurado contra o próprio arbítrio, (…) os membros (…) que são chamados para essa determinação, estão privados do direito que têm os outros cidadãos, em parte, de dispor livremente de sua propriedade inteira, em parte, de saber que ela será transmitida aos filhos, segundo a igualdade de amor; — o patrimônio torna-se (…) um bem hereditário, inalheável, onerado pelo morgadio.

§ 307

                (…) o direito dessa parte do estamento substancial está (…) fundado (…) no princípio natural da família, mas esse é, ao mesmo tempo, alterado pelos (…) sacrifícios para o fim político, pelo qual esse estamento está essencialmente indicado à atividade para esse fim (…), em consequência, é chamado e legitimado para isso pelo nascimento, sem a contingência de uma escolha. (…) ele tem a posição substancial, estável, entre o arbítrio subjetivo ou a contingência dos dois extremos, e como ele traz dentro de si (…) momento do poder do príncipe, (…) partilha (…) com o outro extremo, de resto, os mesmos carecimentos e os mesmos direitos e torna-se (…) o suporte do trono e da sociedade.

§ 308

                Na outra parte do elemento estamental recai o lado móvel da sociedade civil-burguesa, (…) exteriormente, por causa da multidão de seus membros, mas essencialmente por causa da natureza de sua determinação e ocupação, apenas pode intervir mediante deputados. (…) esses são delegados pela sociedade (…) é de supor (…) que essa o faz enquanto o que ela é, — (…) não como dissolvida (…) nos [indivíduos] singulares e apenas se reuniria em um instante, sem outra atitude, para um ato singular e temporário, porém enquanto articulada (…) nas suas cooperativas, comunas e corporações constituídas, que recebem (…) uma conexão política. Em sua legitimação para (…) delegação de deputados, convocada pelo poder do príncipe (…), a existência dos estamentos e a sua assembleia encontram uma garantia própria, constituída.

                               Que todos devam singularmente tomar parte na deliberação e na decisão sobre os assuntos universais do Estado, porque (…) são membros do Estado e seus assuntos são assuntos de todos, nos quais eles têm um direito de estar com seu saber e querer, — essa representação, que queria pôr o elemento democrático sem nenhuma forma racional no organismo do Estado, (…) permanece na determinação abstrata de ser membro (…), e o pensamento superficial mantém-se em abstrações. A consideração racional, a consciência da ideia, é concreta e (…) encontra-se com o verdadeiro sentido prático, que não é nada mais que o sentido racional, o sentido da ideia, — mas que (…) não se deve confundir com a mera rotina das ocupações e (…) uma esfera delimitada. O Estado concreto é o todo articulado em seus círculos particulares; o membro (…) é um membro de tal estamento; apenas nessa sua determinação objetiva (…) pode ser tomado em consideração (…). Sua determinação universal (…) contém o duplo momento de ser pessoa privada e, enquanto pensante, igualmente de ser consciência e querer do universal; (…) essa consciência e esse querer não são, então, apenas vazios, porém preenchidos e efetivamente vivos, quando estão preenchidos com a particularidade, — e essa é o estamento particular e a determinação —; ou o indivíduo (…) tem como gênero mais próximo sua efetividade universal imanente. — Sua determinação viva e efetiva para o universal é alcançada, incialmente, (…) em sua esfera da corporação, da comuna etc., (…) é deixado aberta a possibilidade de ingressar, mediante sua habilidade, no estamento para o qual é capaz, entre os quais pertencer também ao (…) universal. Outra pressuposição reside na representação de que todos devem participar dos assuntos do Estado, (…), de que todos se entendem nesses assuntos, a qual é (…) absurda (…). Mas na opinião pública (§ 316) está aberta a via para cada um externar e fazer valer também seu opinar subjetivo sobre o universal.     

[Painting: Study for King Louis Philippe (1773-1850) Swearing his Oath to the Chamber of Deputies, 9th August 1830 by Ary Scheffer]