BOURDIEU, Pierre. Uma imagem ampliada. In: __ A dominação masculina. Tradução de Maria Helena Kühner. 2. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2002.
UMA IMAGEM AMPLIADA
- arriscamo-nos (…) a recorrer, para pensar a dominação masculina, a modos de pensamento que são eles próprios produto da dominação;
- necessidade de uma estratégia prática para efetivar uma objetivação do sujeito da objetivação científica;
- estratégia: transformar um exercício de reflexão transcendental visando a explorar as “categorias do entendimento” com as quais construímos o mundo (…) ao tratar a análise etnográfica das estruturas objetivas e das formas cognitivas de uma sociedade histórica específica (…), instrumento de (…) socioanálise do inconsciente androcêntrico capaz de operar a objetivação das categorias deste inconsciente.
Sem dúvida, eu não teria sido capaz de recuperar em La Promenade au phare (Passeio ao farol), de Virginia Woolf, a análise do olhar masculino que a obra encerra (e que apresento adiante) se não a tivesse relido com o olhar informado pela visão cabila (V. Woolf, La Promenade au phare, To the Lighthouse, trad. de M. lanoire, Paris, Stock, 1929, p. 24).
- camponeses de Cabília: salvaguardaram acima das conquistas e conversões (…) estruturas (…) de condutas e de discursos parcialmente arrancados ao tempo pela esterotipagem ritual, representam uma forma paradigmática da visão “falo-narcísica” e da cosmologia androcêntrica, comuns a todas as sociedades mediterrâneas (…), sobrevivem até hoje, mas em estado parcial e (…) fragmentadas, em nossas estruturas cognitivas e (…) sociais.
- a escolha da Cabília em particular: (…) se sabe que a tradição cultural que aí se manteve [é] paradigmática da tradição mediterrânea (…) podemos convencer-nos disto consultando as pesquisas etnográficas consagradas em relação ao problema da honra e da vergonha (…) na Grécia, Itália, Espanha, Egito, Turquia, Cabília etc.; (…) toda a área cultural europeia partilha, indiscutivelmente, dessa tradição.
- (…) nada pode substituir o estudo direto de um sistema que ainda está em funcionamento e que permaneceu relativamente à margem de reinterpretações semi-eruditas (…);
- a análise de um corpus como o da Grécia (…) corre o risco de sincronizar artificialmente estágios sucessivos e diferentes do sistema e (…) conferir um mesmo estatuto epistemológico a textos que submeteram o antigo fundo mítico-cultural a diversas reelaborações (…).
“O intérprete que pretenda agir como etnógrafo arrisca-se, assim, a tratar como informantes “ingênuos” autores que já estavam agindo também como (quase) etnógrafos e cujas evocações mitológicas, mesmo as aparentemente mais arcaicas, como as de Homero e Hesíodo, são já mitos elaborados, que implicam omissões, deformações e reinterpretações (e o que dizer quando, como o fez Michel Foucault no segundo volume de sua História da Sexualidade, alguém decide começar por Platão a indagação sobre a sexualidade e o sujeito, ignorando autores como Homero, Hesíodo, Ésquilo, Sófocles, Heródoto ou Aristófanes, sem falar nos filósofos pré-socráticos, nos quais o antigo alicerce mediterrâneo aflora mais claramente?).”
A CONSTRUÇÃO SOCIAL DOS CORPOS
- em um universo (…) como na sociedade cabila a ordem da sociedade não se constitui como tal, (…) as diferenças sexuais permanecem imersas no conjunto das oposições que organizam todo o cosmos, os atributos e ato sexuais se vêem sobrecarregados de determinações antropológicas e cosmológicas; ficamos condenados a equivocar-se sobre sua significação profunda se os pensarmos segundo a categoria do sexual em si;
- a constituição da sociedade enquanto tal (que encontra sua realização no erotismo) nos fez perder o senso da cosmologia sexualizada, que se enraíza em uma topologia sexual do corpo socializado, de seus movimentos e seus deslocamentos, imediatamente revestidos de significação social (…).
- arbitrária em estado isolado, a divisão das coisas e das atividades (sexuais e outras) segundo a oposição entre o masculino e o feminino recebe sua necessidade objetiva e subjetiva de sua inserção em um sistema de oposições homólogas, alto/baixo, em cima/embaixo, na frente/atrás (…), que, para alguns, correspondem a movimentos do corpo ((…) subir/descer, fora/dentro, sair/entrar);
- tais oposições são semelhantes na diferença: concordes para se sustentarem mutuamente, no jogo inesgotável de transferências práticas e metáforas; suficientemente divergentes para conferir, a cada uma, uma espécie de espessura semântica, nascida da sobredeterminação pelas harmonias, conotações e correspondências;
“Esses esquemas de pensamento, de aplicação universal, registram como que diferenças de natureza, inscritas na objetividade, das variações e dos traços distintivos (por exemplo em matéria corporal) que eles contribuem para fazer existir, ao mesmo tempo que as “naturalizam”, inscrevendo-as em um sistema de diferenças, todas igualmente naturais em aparência;”
- as previsões que engendram são confirmadas por todos os ciclos biológicos e cósmicos;
- não vemos como poderia emergir na consciência a relação social de dominação que está em sua base e que, por uma inversão completa de causas e efeitos, surge como uma aplicação entre outras, de um sistema de relações de sentido totalmente independente das relações de força;
- papel equivalente ao que incumbe ao campo jurídico: na medida em que os princípios de visão e divisão que ele propõe estão objetivamente ajustados às divisões pré-existentes, ele consagra a ordem estabelecida, trazendo-a à existência conhecida e reconhecida, oficial;
- a divisão entre os sexos parece estar na “ordem das coisas”, a ponto de ser inevitável. Está presente também em estado objetivado das coisas (na casa, por exemplo, cujas partes são todas “sexuadas”), em todo o mundo social e, em estado incorporado, nos corpos e nos habitus dos agentes, sistemas de esquemas de percepção, de pensamento e de ação;
- a concordância entre as estruturas objetivas e as estruturas cognitivas, entre a conformação do ser e as formas de conhecer, entre o curso do mundo e as expectativas a esse respeito, é o que torna possível o que Husserl chama de “atitude natural” ou “experiência dóxica”;
- é por não perceberem os mecanismos profundos, como os que fundamentam a concordância entre as estruturas cognitivas e as estruturas sociais, e, por tal, a experiência dóxica do mundo social, que pensadores podem imputar todos os efeitos simbólicos de legitimação (ou de sociodiceia) a fatores que decorrem da representação mais ou menos consciente e intencional (“ideologia”, “discurso” etc.);
- a diferença biológica entre os sexos (…), especificamente, a diferença anatômica entre os órgãos sexuais, pode ser vista como justificativa natural da diferença socialmente construída entre os gêneros e, principalmente, da divisão social do trabalho;
- dado que é o princípio de visão social que constrói a diferença anatômica e que é esta diferença socialmente construída que se torna o fundamento e a caução aparentemente natural da visão social que a alicerça, caímos em uma relação circular que encerra o pensamento na evidência de relações de dominação inscritas ao mesmo tempo na objetividade (divisões objetivas) e na subjetividade (esquemas cognitivos que organizados segundo essas divisões organizam a percepção das divisões objetivas);
- a virilidade, em seu aspecto ético, enquanto quididade do vir, virtus, questão de honra, princípio da conservação e do aumento da honra, mantém-se indissociável da virilidade física, através das provas de potência sexual que são esperadas de um homem;
- o falo, sempre presente metaforicamente, mas raramente nomeado e nomeável, concentra todas as fantasias coletivas de potência fecundante;
- o esquema ambíguo do enchimento é o princípio gerador dos ritos de fecundidade que, destinados a fazer crescer mimeticamente (o falo e o ventre da mulher), pelo recurso a alimentos que inflam, se impõem nos momentos em que a ação fecundadora da potência masculina deve se exercer, como nos casamentos e por ocasião do início das lavouras;
- a ambiguidade estrutural, manifesta na existência de um laço morfológico (por exemplo entre abbuch, o pênis, e tabbucht, o seio) entre certo número de símbolos ligados à fecundidade, explica-se por representarem diferentes manifestações da plenitude vital, do vivente que dá vida (através do leite e do esperma);
- a mesma relação morfológica se estabelece entre thamellalts, o óvulo, e imellalen, os testículos; e as mesmas associações são encontradas nas palavras que designam o esperma, zzel e principalmente lâamara, que, por sua raiz — âmmar significa encher, prosperar etc. — evoca a plenitude, o esquema de preenchimento (cheio/vazio, fecundo/estéril) combinando-se regularmente com os esquemas dos ritos de fertilidade;
- quando se associa a ereção fálica à dinâmica do enchimento, a construção social dos órgãos sexuais registra e ratifica simbolicamente certas propriedades naturais indiscutíveis: contribui com outros mecanismos, dos quais o mais importante é, sem dúvida, a inserção de cada relação (cheio/vazio) em um sistema de relações homólogas e interconectadas para converter a arbitrariedade do nomos social em necessidade da natureza (physis);
- quando os dominados aplicam àquilo que os domina esquemas que são produto da dominação, quando seus pensamentos e percepções estão estruturados em conformidade com as estruturas mesmas da relação da dominação que lhes é imposta, seus atos de conhecimento são inevitavelmente atos de reconhecimento, de submissão;
- porém há sempre lugar para uma luta cognitiva a propósito do sentido das coisas do mundo e particularmente das realidades sexuais;
- a indeterminação parcial de certos objetos autoriza, de fato, interpretações antagônicas, oferecendo aos dominados uma possibilidade de resistência frente às imposições simbólicas;
- as mulheres podem se alicerçar nos esquemas de percepção dominantes (alto/baixo, duro/mole, reto/curvo etc.) que as levam a uma representação bastante negativa do próprio sexo, para pensar os atributos sexuais masculinos por analogia com as coisas que pendem, moles, sem vigor (laâlaleq, asaâlaq ou acherbub), ou até tirar partido do estado minimizado do sexo masculino para afirmar a superioridade do sexo feminino;
“Você, sua equipagem (laâlaleq) despenca, diz a mulher ao homem, ao passo que eu, eu sou uma pedra bem soldada.” —ditado
- a definição social dos órgãos sexuais está longe de ser um simples registro de propriedades naturais, diretamente expostas à percepção, é produto de uma construção efetuada à custa de uma série de escolhas orientadas, ou da acentuação de certas diferenças ou do obscurecimento de certas semelhanças;
“A representação da vagina como um falo invertido, que Marie Christine Pouchelle descobriu nos escritos de um cirurgião da Idade Média, obedece as mesmas oposições fundamentais entre o positivo e o negativo, o direito eo avesso, que se impõem a partir do momento em que o princípio masculino é tomado como medida de todas as coisas.”
- sabendo que o homem e a mulher são vistos como duas variantes, superior e inferior, da mesma fisiologia, entende-se por que até o Renascimento não houvesse terminologia anatômica para descrever em detalhes o sexo da mulher, representado como composto dos mesmos órgãos que os do homem, apenas dispostos de maneira diversa;
- seguindo a história da “descoberta” do clitóris, como a relata Thomas Laqueur, prolongando até a teoria freudiana da ligação da sexualidade feminina do clitóris para a vagina, demonstra-se que, longe de desempenhar o papel fundante que lhes é atribuído, as diferenças visíveis entre os órgãos sexuais masculino e feminino são uma construção social que encontra seu princípio nos princípios da razão androcêntrica fundamentada na divisão dos estatutos sociais atribuídos ao homem e à mulher;
- esquemas que estruturam a percepção dos órgãos sexuais e da atividade sexual se aplicam também ao próprio corpo, masculino e feminino, que tem seu alto e seu baixo — a fronteira é delimitada pela cintura, signo de clausura, e limite simbólico entre o puro e o impuro;
- a cintura é um dos signos de fechamento do corpo feminino e ainda hoje se impõe às mulheres das sociedades euroamericanas; simboliza a barreira sagrada que protege a vagina, socialmente constituída em objeto sagrado, submetido, como propôs Durkheim, a regras estritas de esquivança ou de acesso, que determinam rigorosamente as condições do contato consagrado, os agentes, momentos ou atos legítimos, ao contrário, os profanadores;
- tais regras são percebidas até hoje no caso de um médico do sexo masculino ter de realizar o exame vaginal, como se tratasse de neutralizar simbólica e todas as conotações potencialmente sexuais do exame, onde o médico se submete a um verdadeiro ritual visando a manter a barreira, simbolizada pela cintura, entre a vagina e a pessoa pública, jamais vistas simultaneamente;
“É evidentemente porque a vagina continua sendo constituída como fetiche e tratada como sagrada, segredo e tabu, que o comércio do sexo continua a ser estigmatizado, tanto na consciência comum quanto no Direito, que literalmente exclui que as mulheres possam escolher dedicar-se à prostituição como a um trabalho. Ao fazer intervir o dinheiro, certo erotismo masculino associa a busca do gozo ao exercício brutal do poder sobre os corpos reduzidos ao estado de objeto e ao sacrilégio que consiste em transgredir a lei segundo a qual o corpo (como o sangue) não pode ser senão doado, em um ato de oferta inteiramente gratuito, que supõe a suspensão da violência.”
- o corpo tem sua frente, lugar da diferença sexual, e suas costas, sexualmente indiferenciadas e potencialmente femininas, algo passivo, submisso, como nos fazem lembrar os insultos mediterrâneos contra a homossexualidade (“bras d’honneur”), tem suas partes públicas, face, fronte, bigode, boca, olhos, órgãos nobres da apresentação, nos quais se condensa a identidade social, o ponto de honra, o nif, que obriga a enfrentar ou a olhar os outros de frente, e suas partes privadas, escondidas ou vergonhosas, que a honra manda dissimular;
- através da divisão sexual dos usos legítimos do corpo que se estabelece o vínculo (enunciado pela psicanálise) entre o falo e o lógos: os usos público e ativos, da parte alta, masculina do corpo — fazer frente a, enfrentar, frente a frente (qabel), olhar no rosto, nos olhos, tomar a palavra publicamente — são monopólio dos homens; a mulher, na Cabília, mantém-se afastado dos lugares públicos e deve renunciar a fazer uso público do próprio rosto e de sua palava (…);
- mesmo que possa ser visto como “matriz original a partir da qual são engendradas todas as formas de união dos dois princípios opostos”, o próprio ato sexual é pensado em função do princípio do primado da masculinidade;
- a posição considera normal é, logicamente, aquela em que o homem “fica por cima”; a vagina deve seu caráter funesto, maléfico, ao fato de que não só é vista como vazia, mas como o inverso, o negativo do falo, a posição em que a mulher se põe por cima do homem é condenada em inúmeras civilizações;
- a tradição cabila apela para um mito de origem que legitima as posições atribuídas aos dois sexos na divisão do trabalho sexual e, em decorrência da divisão do trabalho de produção e reprodução, em toda a ordem social, e ultrapassando-a, na ordem cósmica. (ver página 14)
- em cima ou embaixo, ativo ou passivo, essas alternativas paralelas descrevem o ato sexual como uma relação de dominação; é dominar no sentido de submeter a seu poder, também enganar, abusar ou “possuir”; as manifestações de virilidade (legítimas ou ilegítimas) se situam na lógica da proeza, da exploração, do que traz honra;
- sociologia política do ato sexual: sempre em uma relação de dominação e as práticas e representações dos dois sexos não são simétricas; há pontos de vista muito diferentes da relação amorosa, no caso dos rapazes há a lógica da conquista mas também porque o ato em si é concebido pelos homens como uma dominação, uma forma de apropriação, de “posse”; no caso das mulheres, geralmente há uma tendência a uma experiência íntima e fortemente carregada de intimidade, que não inclui necessariamente a penetração, mas pode incluir um amplo leque de atividades; os rapazes tendem a compartilhar a sexualidade, concebida como um ato agressivo e sobretudo físico, de conquista orientada para a penetração e o orgasmo;
- práticas aparentemente simétricas (felação, cunnilingus) revestem-se de signifcações muito diversas para os homens, que tendem a ver com atos de domínio, pela submissão ou pelo gozo obtido; “o gozo masculino é, por um lado, o gozo do gozo feminino, do poder de fazer gozar”;
- a simulação do orgasmo pelas mulheres é uma comprovação exemplar do poder masculino de fazer com que a interação entre os sexos se dê de acordo com a visão dos homens, que esperam do orgasmo uma prova de sua virilidade e do gozo garantido por essa forma suprema de submissão;
- a relação sexual como uma relação social de dominação é porque é construída pelo princípio de divisão fundamental entre o masculino, ativo, e o feminino, passivo, e porque este princípio cria, organiza, expressa e dirige o desejo — o desejo masculino como desejo de posse, como dominação erotizada, e o desejo feminino como desejo da dominação masculina, como subordinação erotizada, ou mesmo, em última instância, como reconhecimento erotizado da dominação;
- no caso das relações homossexuais, a reciprocidade é possível, os laços entre a sexualidade e o poder se desvelam claramente, e as posições e os papéis assumidos nas relações sexuais, ativos ou passivos principalmente, mostram-se indissociáveis das relações entre as condições sociais que determinam sua possibilidade e sua significação;
- a penetração, sobretudo quando se exerce sobre um homem, é uma das afirmações da libido dominandi, que jamais está de todo ausente na libido masculina; em inúmeras sociedades, a posse homossexual é vista como uma manifestação de “potência”, um ato de dominação (exercido como tal, em certos casos, para afirmar a superioridade “feminizando” o outro) e que é a este título que, entre os gregos, leva aquele que a sofre à desonra e à perda do estatuto de homem íntegro e de cidadão; para um cidadão romano, a homossexualidade “passiva” com um escravo é considerada algo “monstruoso”;
- segundo John Boswell, “penetração e poder estavam entre as inúmeras prerrogativas da elite dirigente masculina; ceder à penetração era uma ab-rogação simbólica do poder e da autoridade”; sob esse ponto de vista da sexualidade e poder, a pior humilhação para um homem era se transformado em mulher, no sentido de feminilizá-los;
Artwork: Dead Kabyle (1867) by Mariano Fortuny