Manuel Bandeira — Seleta em Prosa e Verso, Cartas de Meu Avô, 1986.
A tarde cai, por demais Erma, úmida e silente… A chuva, em gotas glaciais, Chora monotonamente. E enquanto anoitece, vou Lendo, sossegado e só, As cartas que meu avô Escrevia a minha avó. Enternecido sorrio Do fervor desses carinhos: É que os conheci velhinhos, Quando o fogo era já frio. Cartas de antes do noivado… Cartas de amor que começa, Inquieto, maravilhado, E sem saber o que peça. Temendo a cada momento Ofendê-la, desgostá-la, Quer ler em seu pensamento E balbucia, não fala… A mão pálida tremia Contando o seu grande bem. Mas, como o dele, batia Dela o coração também. A paixão, medrosa dantes, Cresceu, dominou-o todo. E as confissões hesitantes Mudaram logo de modo. Depois o espinho do ciúme… A dor… a visão da morte… Mas, calmado o vento, o lume Brilhou, mais puro e mais forte. E eu bendigo, envergonhado, esse amor, avô do meu… Do meu – fruto sem cuidado Que inda verde apodreceu. O meu semblante está enxuto. Mas a alma, em gotas mansas, Chora, abismada no luto Das minhas desesperanças… E a noite vem, por demais Erma, úmida e silente… A chuva em pingos glaciais, Cai melancolicamente. E enquanto anoitece, vou lendo, sossegado e só, As cartas que meu avô Escrevia a minha avó.
(Cinza das Horas)
O uso da redondilha maior, de fácil manejo sintático por ser o verso idiomático da língua portuguesa, o qual por si mesmo imprime ritmo poético à linguagem prosaica, como se verifica nas composições populares, e o enquadramento do poema, à moda do rondó, entre estrofes (1ª-2ª e 11ª-12ª) acentuadamente líricas, permitiu ao poeta manter o clima encantatório do conjunto, malgrado serem os versos, na sua maioria, construídos em linguagem coloquial.