HEGEL, G. W. F. Filosofia do direito. Tradução: Paulo Meneses et al. 1. ed. São Leopoldo: Editora UNISINOS, 2010, p. 136-142.
SEGUNDA SEÇÃO
A Intenção e o Bem-Estar
§ 119
O ser-aí exterior da ação é um contexto múltiplo que pode ser (…) infinitamente dividido em singularidades, e a ação pode ser (…) como se ela apenas tivesse afetado inicialmente uma tal singularidade. Mas a verdade do singular é o universal, e a determinidade da ação é para si (…) até ser uma singularidade exterior (…) um conteúdo universal, contendo dentro de si o contexto múltiplo. O propósito, (…) procede de um ser pensante, não contém somente a singularidade, porém contém (…) esse aspecto universal, — a intenção.
Intenção contém etimologicamente a abstração, de um lado, a forma da universalidade, de outro (…), o extrair de um aspecto particular da Coisa concreta. O esforço da justificação pela intenção é o isolar de um aspecto singular em geral, (…) se afirma ser a essência subjetiva da ação. — O juízo sobre uma ação, (…) ato exterior, sem que ainda seja determinado seu aspecto lícito ou ilícito, confere-lhe um predicado universal (…). — A determinidade isolada da efetividade exterior mostra o que é sua natureza enquanto contexto exterior. A efetividade (…) apenas é afetada em um ponto singular (…), mas a natureza universal desse ponto contém sua extensão. No vivente, o singular é de maneira imediata não enquanto parte, porém (…) órgão, no qual o universal (…) existe de maneira presente (…). De uma parte, é a reflexão subjetiva que não conhece a natureza lógica do singular e do universal, (…) entra na dispersão dos detalhes singulares e das consequências; de outra (…), é a natureza do próprio ato finito conter tais separações dos contingentes. — A invenção do dolus indirectus tem seu fundamento nessas considerações.
§ 120
O direito da intenção é que a qualidade universal da ação não seja apenas em si, (…) seja sabida pelo agente e que (…) já tenha sido colocada na vontade subjetiva; (…) inversamente, o direito da objetividade da ação (…) é que ela se afirme como sabida e querida pelo sujeito enquanto ser pensante.
Esse direito ao discernimento traz consigo a inimputabilidade total ou menor das crianças, dos imbecis, dos loucos etc. em suas ações. — (…) como as ações, segundo seu ser-aí exterior, incluem contingências em suas consequências, (…) o ser-aí subjetivo contém também a indeterminidade, (…) se refere ao poder e à força da autoconsciência e da ponderação sobre si, — (…) essa indeterminidade apenas pode ser considerada no que respeita a imbecilidade (…) e coisas semelhantes, como a idade das crianças, (…) apenas tais situações definidas suprassumem o caráter do pensamento e da liberdade da vontade e permitem não tratar o agente conforme a honra de (…) um ser pensante e uma vontade.
§ 121
A qualidade universal da ação é o conteúdo múltiplo da ação, (…) reconduzido à forma simples da universalidade. (…) o sujeito, refletido dentro de si, (…) é um particular frente à particularidade objetiva, tem no seu fim seu próprio conteúdo particular, que é a alma determinante da ação. (…) esse momento da particularidade do agente esteja contido e realizado na ação constitui a liberdade subjetiva em sua determinação mais concreta, o direito do sujeito de encontrar na ação sua satisfação.
§ 122
Por esse aspecto particular, a ação tem valor subjetivo, interesse para mim. (…) a intenção segundo o conteúdo, o imediato da ação em seus demais conteúdos é rebaixado a meio. Na medida em que esse fim é (…) finito, ele pode de novo ser rebaixado a meio por uma intenção posterior etc., e assim sucessivamente até o infinito.
§ 123
Para o conteúdo desses fins está aqui apenas α) (…) a própria atividade formal, — o fato de que o sujeito [esteja presente] com sua atividade junto ao que deve considerar e promover como (…) seu fim; — pelo qual os homens querem ser ativos em função do que lhes interessa (…). β) (…) a liberdade da subjetividade, ainda abstrata e formal, (…) tem conteúdo ulteriormente determinado em seu ser-aí subjetivo natural, carecimentos, inclinações, paixões, opiniões, (…). A satisfação desse conteúdo é o bem-estar ou a felicidade em suas determinações particulares e, na maneira universal, os fins da finitude (…).
(…) do ponto de vista da relação (…), (…) o sujeito está determinado por sua diferenciação e com isso vale enquanto particular, aqui (…) entra o conteúdo da vontade natural (…); mas a vontade aqui não é (…) imediatamente, porém esse conteúdo (…) pertencendo à vontade refletida dentro de si, é elevado ao fim universal, de bem-estar ou de felicidade (…), — é o ponto de vista do pensamento, não ainda do (…) que apreende a vontade em sua liberdade, porém do pensamento que reflete sobre seu conteúdo como (…) natural e dado (…).
§ 124
Dado que a satisfação subjetiva do próprio indivíduo (…) está (…) contida na realização dos fins que têm validade em si e para si, a exigência de que apenas tal fim apareça como querido e alcançado (…) são (…) uma afirmação vazia do entendimento abstrato. (…) —O que o sujeito é, é a série de suas ações. Se elas são uma série (…) sem valor, então a subjetividade do querer igualmente é sem valor (…) se (…) a série de seus atos é de natureza substancial, então também é a vontade interna do indivíduo.
O direito da particularidade do sujeito encontra-se satisfeito ou (…) o direito da liberdade subjetiva constitui o ponto de inflexão e o (…) central da diferença entre a Antiguidade e a época moderna. Em sua infinitude, esse direito foi enunciado no cristianismo e tornou-se princípio efetivo universal de uma nova forma de mundo. Fazem parte (…) o amor, (…) o fim da eterna beatitude do indivíduo etc. — em seguida, a moralidade, a consciência moral, depois, as outras formas que, por uma parte, vão ser postas em evidência (…) enquanto princípio da sociedade civil-burguesa e enquanto momentos da constituição política, mas que, por outra parte, (…) entram na história (…). — Esse princípio da particularidade é (…) um momento da oposição e é, inicialmente, ao menos tão idêntico ao universal quanto diferente dele. (…) a reflexão abstrata fixa esse momento na diferença e na sua contraposição com o universal e produz assim uma maneira de ver a moralidade (…) enquanto combate hostil contra a satisfação própria, — a exigência de
fazer com aversão o que ordena a obrigação.
Esse entendimento produz (…) a maneira de ver psicológica da história, que entende rebaixar e depreciar todos os grandes feitos e os grandes indivíduos, convertendo em intenção principal e em móvel atuante das ações os impulsos e as paixões, que tiraram (…) sua satisfação da eficácia substancial (…) o aspecto particular, que decretava precedentemente que era algo de mau para si; — porque as grandes ações e a eficácia que consistiu em uma série de tais ações produziram algo de grande no mundo e tiveram, para o indivíduo agente, a força, a honra e a glória como consequência, (…) o entendimento garante que não é essa grandeza que pertenceria ao indivíduo, porém somente o aspecto particular é uma consequência e teria também sido por causa disso enquanto fim e no caso mesmo (…) único fim. — Tal reflexão atém-se aos aspecto subjetivo dos grandes indivíduos, enquanto neles ela mesma se mantém e despreza nessa vaidade autofabricada o substancial deles; (…).
§ 125
O elemento subjetivo com o conteúdo particular do bem-estar mantém-se enquanto refletido dentro de si (…) infinitamente em vinculação com o universal, com a vontade sendo em si. Esse momento (…) é o bem-estar também do outro, — em uma determinação completa, mas totalmente vazia, é o bem-estar de todos. O bem-estar de muitos outros particulares (…) é então também fim essencial e direito da subjetividade. (…) como o universal sendo em si e para si, diferente de tal conteúdo particular, não é ainda aqui determinado enquanto o direito, (…) aqueles fins do particular podem ser diversos desse último (…).
§ 126
Mas (…) minha particularidade, assim como a do outro, apenas é um direito na medida em que eu sou um ser livre. (…);e uma intenção visando meu bem-estar, assim como o (…) do outro, — no caso em que é chamada particularmente uma intenção moral, — não pode justificar uma ação ilícita.
Uma das máximas perniciosas (…) que procede em parte do período pré-kantiano do bom coração (…) é o interessar-se, no caso de ações contrárias ao direito, pela (…) intenção moral e representar os maus sujeitos com um coração que deve ser bom, isto é, que quer seu bem-estar próprio e de alguma maneira também o (…) do outro; (…) essa doutrina foi requentada sob uma figura mais exagerada, o entusiasmo interior e o ânimo, (…) a forma da particularidade como tal, foram erigidos em critério do que é direito, racional e excelente, de modo que os crimes e os pensamentos que levam a eles, (…), seriam conformes ao direito, racionais e excelentes por essa razão vem do ânimo e do entusiasmo (…). — (…) convém considerar o ponto de vista em que são aqui examinados o direito e o bem estar (…) enquanto direito formal e o bem-estar particular do indivíduo singular; o chamado bem universal, o bem-estar do Estado, o direito do espírito concreto efetivo, é uma esfera totalmente outra, assim como o bem-estar particular e a felicidade do indivíduo singular. (…).
§ 127
A particularidade dos interesses da vontade natural, reunida em sua totalidade simples, é o ser-aí pessoal enquanto vida. Essa, no perigo último e em conflito com a propriedade jurídica do outro, tem a invocar (não enquanto concessão, porém (…) direito) um direito de miséria [direito de emergência – jus necessitatis], visto que, de um lado, se encontra (…) violação infinita de um ser-aí, e nisso (…) privação total do direito, e, do outro (…), (…) a violação de um ser-aí delimitado, singular, da liberdade que reconhece o direito como tal e (…) sua capacidade jurídica do que apenas é lesado nessa propriedade.
Do direito da miséria deriva o benefício da imunidade, (…) se deixam ao devedor as ferramentas de trabalho, os instrumentos de lavoura, as vestimentas (…) como contribuindo para a possibilidade de sua manutenção — conforme seu estamento [social].
§ 128
A miséria revela a finitude, e nela a contingência tanto do direito como o bem-estar, — [quer dizer,] a do ser-aí abstrato da liberdade, que não é a existência de uma pessoa particular, e da esfera da vontade particular, desprovida da universalidade do direito. Sua unilateralidade e sua idealidade são, com isso, postas, tal como já são determinadas nelas mesmas no conceito; o direito já determinou (§ 106) seu ser-aí como a vontade particular, e a subjetividade em sua particularidade englobante é ela mesma o ser-aí da liberdade (§ 127), assim, como é em si, enquanto vinculação infinita da vontade a si, o universal da liberdade. Os dois momentos (…) integrados até a sua verdade e a sua identidade (…) inicialmente numa vinculação (…) relativa de um ao outro, são o Bem enquanto universal preenchido, determinado em si e para si, e a consciência moral, enquanto subjetividade infinita, (…) dentro de si e que determina o conteúdo dentro de si.
[Painting: Good Intentions by Charlotte Foust]